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O encerramento dessa pesquisa deu-se quase que concomitante ao término do conjunto das pesquisas feitas no âmbito do PROCAD "Paisagens Ameríndias" entre a PPGAS-USP e PPGAS-UFAM. Nos três anos de duração o desenvolvimento dessa dissertação teve todas as suas etapas realizadas na vigência desse projeto.

Em 2009, ainda aluno de graduação, em minha primeira incursão a campo entrei em contato com os Sateré-Mawé em Manaus-AM. Adentrando pela primeira vez um universo de estudo desconhecido, para mim, tão afastado de casa, as novidades muitas foram: a cidade de Manaus, o tema da pesquisa e a experiência da etnografia.

Assim, terminada essa etapa, é possível olhar o caminho percorrido e perceber os avanços do intento coletivo levado a cabo pelos pesquisadores do LabNAU, agora organizados no Grupo de Etnologia Urbana.

O GEU, que começou com três alunos de graduação sob orientação do Prof. José Guilherme Magnani, agora conta com inúmeros participantes de diferentes instituições de ensino superior do Brasil que procuram, sempre, manter a tradicional forma coletiva de condução de produção acadêmica do LabNAU ampliando-a através da experimentação metodológica.

Essa dissertação, como a primeira de uma série iniciada no contexto do projeto "Paisagens Ameríndias", propiciada pelo PROCAD, carrega em suas linhas muitos traços das incertezas do caminho e, também, dos avanços que a jornada, quando realizada com comprometimento e vontade de aprendizado, sempre traz aos caminhantes.

Como abordado na parte introdutória, o discurso midiático e o senso comum são exemplos patentes de como o "pessimismo" a respeito do fenômeno da “aculturação” é disseminado, principalmente quando se trata das populações ditas “tradicionais”. Como já afirmado, no caso de indígenas habitantes das cidades, essas associações são evidentes.

Não apenas os indígenas são alvo desse discurso, pois todo e qualquer habitante de uma grande metrópole estaria sujeito às consequências nefastas que se supõe serem acarretadas pela vida urbana. São discursos nos quais o processo de urbanização exponencialmente crescente é relacionado apenas à existência do caos nas grandes metrópoles e à ideia de que o crescimento desordenado das cidades faz com que seus habitantes tenham que se haver com a ausência de equipamentos urbanos, moradias precárias, crescentes taxas de violência e de poluição visual, sonora e química.

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É bem verdade que o poder público peca constantemente em sua atuação nas grandes metrópoles brasileiras. Ora pelo excesso de intervenções na paisagem urbana com justificativa legalista, mas que parecem apenas defender interesses muito aquém das necessidades dos habitantes em posição de vulnerabilidade nas cidades, ora pela omissão nos casos em que sua atuação se faz necessária para a garantia dos direitos constitucionais dos habitantes da cidade, inclusive e especialmente daqueles aos quais o próprio direito à cidade é negado, como é o caso dos chamados "índios urbanizados", que muitas vezes são postos em situações em que devem escolher entre a vida na cidade e sua identidade indígena.

Magnani (1984; 2002) ao fazer um balanço da produção bibliográfica sobre o tema da urbanização mostra, que a principal via de entendimento desses processos, seja nos países de primeiro mundo ou nos ditos “países emergentes”, passa pela via da “desagregação”.

O autor separa as análises que se alinham com esta “perspectiva desagregadora” em dois blocos; o primeiro associado às mazelas causadas pelos avanços tecnológicos, embaralhando as formas de comunicação e causando um “caos semiológico”, tendo como efeito a desagregação de sociabilidades; e o segundo que procura observar como a urbanização acelerada provoca inúmeras mazelas sociais, em si, desagregadoras. Magnani menciona também a existência de perspectivas que priorizam análises mais macrocontextuais sobre a cidade, onde ela é observada através da chave de sua inserção no mundo globalizado das economias transnacionais.

Tais análises, ao focalizarem a questão da urbanização de forma mais distante, ou “de longe e de fora”, deixam de observar a ação determinante de diversos atores sociais envolvidos nesse processo, os habitantes das metrópoles.

Já os moradores propriamente ditos, que, em suas múltiplas redes, formas de sociabilidade, estilos de vida, deslocamentos, conflitos etc., constituem o elemento que em definitivo dá vida à metrópole, não aparecem, e quando o fazem, é na qualidade de parte passiva (os excluídos, os espoliados) de todo o intrincado processo urbano. (Magnani: 2002, 16)

Esse olhar, que se volta à observação dos arranjos inventivos que os habitantes das metrópoles criam em sua vida cotidiana, denomina-se “de perto e de dentro”. A presente dissertação, orientada por essa perspectiva e pela forma de produção de etnografias que a caracteriza, apresentou os resultados da realização do levantamento da dinâmica de dwelling (Ingold, 2000) dos Sateré-Mawé em Manaus-AM e arredores e, mais precisamente, os fortes indícios da existência de um circuito Sateré-Mawé que, ao mesmo tempo, constrói e articula as mais diversas formas de fluxos, interações,

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circulações e trocas entre esses coletivos organizados em comunidades na capital manauara.

A identificação desse circuito, e os apontamentos indiciários em direção a um determinado "estilo de habitação" inventado pelos interlocutores da pesquisa, permitiu evidenciar alguns dos mecanismos e estratégias responsáveis por aquilo que optei denominar “indigenização da cidade”, a partir da perspectiva dos Sateré-Mawé que habitam (dwell/ inhabit) a capital manauara e arredores. (Sahlins: 1997; Ingold: 2000, 2007; Magnani: 2002)

Através da exposição da etnografia realizada procurei dar ênfase aos trajetos, carregados e densos de experiência, e às linhas de relações que se criam entre pontos de chegada e de partida do circuito acima delineado. Ao focar a análise no principal evento realizado nas comunidades Sateré-Mawé, a Festa da Tucandeira, apresentei um índice sobre a forma como esses indígenas inventam a sua maneira de lidar com a experiência urbana através do transbordamento de suas linhas de relações ao expandirem-nas para a vizinhança, os pesquisadores, as fontes de financiamento de projetos, os conhecedores tradicionais das aldeias, os moradores de outras comunidades indígenas Sateré-Mawé e de outras etnias, os formigueiros de tucandeiras, a concentração de árvores de buriti, as sedes de instituições governamentais, as árvores de jenipapo no quintal de uma vizinha, os campos de futebol na Universidade Federal do Amazonas etc.

Pensando a partir da construção do corpo do guerreiro Sateré-Mawé, e de todo o processo de realização da Festa da Tucandeira, sugeri a possibilidade de compreensão da singularidade da presença Sateré-Mawé em Manaus, caracterizada pela sua capacidade de articulação, visibilidade e da constante procura por incorporar dentro de sua dinâmica os diversos atores em seu cotidiano, pacificando “inimigos” e recolocando chaves explicativas ocidentais a respeito de sua indianidade.

Para além da realização do ritual, o engajamento em outras atividades que envolvem a formação de seus circuitos também é significativa, como por exemplo, a caça, a pesca e a coleta de sementes; a troca de roupas, de outros materiais e a visita às aldeias da TI Andirá-Maraú; a busca e negociação de e com elementos não humanos necessários para a realização de rituais e medicamentos nas matas próximas às comunidades; os torneios esportivos exclusivos para jogadores indígenas nos campos de futebol e espaços de lazer em Manaus-AM, Iranduba-AM, Manaquiri-AM, além de diferentes comunidades espalhadas pelas redondezas; a circulação em busca de oportunidades de trabalho e para a participação de ações e reuniões promovidas pelo movimento indígena, entre outros.

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Todos esses trajetos compõem um rico circuito constantemente percorrido, que envolve os mais diferentes ambientes, construindo-o através da ação cotidiana dos agentes que perpassam transversalmente espaços geralmente vislumbrados como radicalmente separados: a cidade e a floresta, ou o urbano e o rural.

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