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Construindo guerreiros(as), criando socialidades

3. Das festas, dos rituais: continuidades e descontinuidades

3.3. Construindo guerreiros(as), criando socialidades

Segundo os Sateré-Mawé contaram-me, a cada festa, os ferrantes que passam pelo ritual adquirem corpos fortes, saudáveis e rígidos, prontos para as atribuições do dia a dia, a fim de que se tornem bons caçadores, pessoas firmes, bons líderes, hábeis no uso da palavra e de “fazer amigos”.

Vê-se aqui a associação entre três funções, os guerreiros (a guerra), os caçadores (a caça) e os líderes (tuxauas), todas configuradas como especialidades na lida com alguma forma de alteridade. São funções diferentes, assim como diferentes são os humanos e não humanos com os quais suas relações se travam. Os ferrantes, portanto, estão sendo habilitados a atuar satisfatoriamente nesses campos de comunicação e negociação.63

Então quando a pessoa mete a mão na Tucandeira, no ritual. O que termina tem uma boa saúde. Ele é bom pra caçar, procurar comida, pescar. Ele tem um bom contato e pode ser uma liderança também. Porque é uma pessoa corajosa, uma pessoa firme. Agora, quando ele não termina, ele adoece. De fato ele adoece porque ele fica assim com uma cor diferente, amarelada. Não tem estado de saúde no corpo. Só problema dentro do corpo dele. Porque, segundo a história, a Tucandeira gera os filhos dentro dele, gera filho e faz com que ele adoeça, fica inchado. E se ele não retornar pra fazer o ritual ele acaba morrendo. Acaba morrendo porque dá um inchaço nele. Isso é verdadeiro, isso é inegável. Aconteceu isso várias vezes na reserva. E todos que meteram uma vez; teve problema, não é sadio. Então isso é perigoso. Se for meter a mão não deixe de fazer todo o ritual. Embora chorando, gritando, tem que terminar. Pra poder ficar sadio. (João em entrevista concedida em janeiro de 2012, Parintins-AM. In: Cadernos de Campo: Compilação III.)

Dona Zorma, atualmente tuxaua da comunidade Waranã Sateré-Mawé, no município de Manaquiri-AM, em depoimento concedido a Santos (2008), apresentou uma analogia da ideia da caça, afirmando que durante as primeiras décadas de presença de sua família na cidade de Manaus, a busca por materiais que poderiam ser revendidos (alumínio etc.) eram parte da “caçada” realizada pelas mulheres indígenas, sentido que pode ser aplicado também à busca por sementes para a produção do artesanato.

Moisés Sateré64 realça que “a primeira amizade construída foi com as árvores, depois dela tivemos acesso a outras pessoas e instituições”. Isso possibilitou a continuação da atividade de extração das sementes, sua manipulação e confecção do artesanato, daí a aquisição financeira para comprar comida e transporte coletivo dos membros da comunidade. (Santos: 2008, 167)

63Outra especialidade, ou “profissão”, como referem alguns Sateré-Mawé, é a dos pajés que, como todas

as outras, trata-se de uma capacidade de negociações cosmopolíticas. Interessante notar que todas essas atribuições são exercidas, em alguma medida, por todos os Sateré-Mawé. São capacidades, maiores ou menores, de lida com a alteridade em suas diversas formas, uma qualidade (e necessidade) desigualmente distribuída entre todos os seres.

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Durante o “V Encontro de Guerreiros” na comunidade Sahu-apé, localizada no município de Iranduba, um dos filhos de tuxaua Baku responsável pela administração dos assuntos mais burocráticos da associação da comunidade, aparecia na pequena televisão instalada no Centro Cultural.

Ele estava sendo entrevistado por um pesquisador que o indagou sobre as dificuldades enfrentadas pela comunidade devido à falta de carne de caça nas matas próximas. Após pequena reflexão, respondeu que os militantes do movimento indígena também eram caçadores e saíam de suas casas para frequentar reuniões e encontros. Quando conseguem que um projeto que beneficie a comunidade seja aprovado é como se tivessem abatido uma paca e a trouxessem de volta à aldeia.

Assim como a ideia da caça continua a ser elaborada pelos Sateré-Mawé mencionados, a guerra e o papel do guerreiro também são considerados como fundamental. Vê-se como a bravura, a força e a coragem dos guerreiros Sateré-Mawé ganham ênfase na própria definição da identidade desses indígenas, por eles mesmos e pelos agentes com os quais se relacionam, como pesquisadores, jornalistas, turistas e a própria vizinhança. Basta ter em mente as lutas que as famílias Sateré-Mawé enfrentaram e ainda enfrentam cotidianamente pela garantia de seus direitos constitucionais.

Em um nível mais geral, o Waumat [Ritual da Tucandeira] é uma das referências maiores dos Sateré-Mawé para afirmar sua autoridade e reforçar sua imagem unitária no contexto das relações interétnicas. É uma carta de visitas e um produto publicitário de apelo, muito utilizado para fins políticos, e é uma fórmula de construção do corpo social face às alteridades mais distantes do Estado e de outras sociedades do mundo. (Figueroa: 1997, 402)

Proponho a possibilidade de se observar a Festa da Tucandeira quase como um dispositivo de criação e ativação de relações que incluem o parentesco , mas não se restringem a ele. A expressiva produção bibliográfica a respeito da presença Sateré- Mawé em cidades amazônicas, assim como sua constante presença em veículos midiáticos, é algo que chama atenção.

Acredita-se que essa forte visibilidade de sua presença é índice de uma forma singular da etnia de elaborar sua experiência urbana. Talvez estes apontamentos possam servir de índices para a compreensão do determinado ethos, ou postura, ou estilo, adotado pelos indígenas Sateré-Mawé ao organizar suas relações, das mais diversas, na cidade de Manaus.

Através desse caminho talvez se possa ter acesso a uma compreensão do porquê de tais relações, como perspicazmente notou o indígena do alto rio negro: “Ah os Sateré... Eles gostam é de aparecer...”.

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Desde o início do trabalho de campo chamou-me atenção as intensas negociações realizadas pelos Sateré-Mawé para o acontecimento da Festa da Tucandeira e me impressionou a mobilização de diversos atores, que se faz necessária: desde a ativação de contatos com lideranças e parentes no rio Andirá para a obtenção da luva da tucandeira e para o transporte dos cantores para a ritual, detentores de um conhecimento específico necessário, o agenciamento de pesquisadores para a obtenção de recursos para a compra de palha e de materiais para a preparação do espaço físico para recepção da festa, ativação de relações com parentes inseridos no poder público para o transporte de materiais e o contato com a imprensa, até a articulação entre as comunidades para a troca de materiais como palha, jenipapo e ferrantes, além da organização entre os moradores em mutirões para limpeza e preparação da comunidade.

A realização da Festa da Tucandeira articula linhas de saberes, de trocas e de parentela em todos os processos de negociação para sua realização, extrapolando seu potencial transformativo do corpo do ferrante, transformando-o e construindo também o emaranhado de seus trajetos e de suas relações, evidenciando, então, o porquê da escolha do Ritual da Tucandeira como um dos principais sinais diacríticos representativo da identidade Sateré-Mawé.

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