Os mestres de Retórica e Humanidades deviam impor aos seus alunos a «doce mas
indispensável necessidade de falar sempre Latim» (
113) não somente na sala de aula, mas entre
eles e em casa. Para isso, o Padre Francisco Pomey teve como base de apoio o vocabulário
quotidiano em língua “vulgar” para que os seus alunos tivessem os equivalentes latinos na sua
memória. A organização temática que deu a esse vocabulário foi a que a sua formação
escolástica, jesuítica, a par com a tradição lexicográfica lhe ditaram. O seu grande mérito
esteve, provavelmente, na selecção e classificação que soube fazer de todas as palavras e
conceitos. Dividiu-os e encaixou-os em três grandes partes – mundo, homem e cidade –
resultando daí um concentrado de todo o conhecimento existente em meados do século XVII,
uma mini enciclopédia, um indiculo universal.
A lista de assuntos tratados é extensa: começando pela Criação do Mundo, estrelas,
planetas e meteoros, aborda os animais das mais variadas espécies, peixes, aves, insectos,
plantas e flores, cores e odores, pedras e metais, águas, mares e rios, até à minuciosa descrição
do homem, das suas partes exteriores e das suas partes interiores, do seu corpo e da sua alma,
a sua anatomia, a sua memória, os seus vícios e virtudes, o que veste, o que come e bebe.
Seguem-se a cidade e os diferentes tipos de pessoas que aí moram, as suas relações sociais e de
parentesco, os atributos do homem e da mulher, as partes de uma casa, o espaço religioso e os
seus protagonistas, a missa, os sacramentos, as orações, as festas solenes e menos solenes, o
espaço da corte e da nobreza, a justiça, as fortificações e as armas, a guerra, enfim, todas as
artes e ciências mais importantes, a teologia, a filosofia, a lógica, a física, a metafísica, a
jurisprudência, a medicina, as doenças e os remédios, a matemática, a astronomia e a
(113) Como diz Pomey no Prefácio das edições francesas do Indiculus Universalis: «les Maistres de la Langue Latine ne sçauroient rendre à leurs Disciples, un office plus considerable que de leur imposer une douce, mais indispensable necessité de parler toujours Latin, non seulement en Classe & entre eux, mais dans la maison, & par tout ailleurs, & avec toutes les personnes qui n’ignorent pas cette Langue».
astrologia, a aritmética, a gramática, a óptica, catóptrica e dióptrica, os pesos e as medidas, a
geometria, a música, a cronologia e o tempo marcado pelo relógio e pelos diversos ciclos
(lunar, solar, e de indicção), o ano, o mês, a semana, o dia e a noite, a geografia, onde são
mencionadas e brevemente caracterizadas todas as vastas regiões conhecidas da Terra: a
Europa e os seus principais países, a Ásia, a África e a América, a arquitectura, a arte de
navegar, os ventos, a retórica, a poesia, a pintura, a escultura, a caça, a arte da cavalaria, a
tipografia, a numismática, a heráldica, o campo, o jardim, os transportes, os jogos e muito
mais.
Para os filólogos a obra tem interesse linguístico e lexicográfico particular, porque inclui
a tradução de termos latinos “fabricados” expressamente nos anos quinhentos e seiscentos
para designarem novas descobertas de várias “sciencias”. Para todos os estudiosos e
apaixonados pelo conhecimento, tem o interesse de mostrar um pouco (ou muito) do mundo
do século XVII não só linguístico, mas cultural, social, político e religioso. As formas de falar
e os hábitos de vida do tempo são bem evidentes a partir da análise das muitas partes
dialogadas, do vocabulário e das expressões utilizadas para caracterizar, por exemplo, as artes
de navegar, de cavalgar ou de tourear, o jogo da pela ou das cartas, o tratamento das “dadivas”,
enfim, que é o último assunto abordado no volume português.
Em 1697, os estudantes jesuítas de Lisboa e o Padre António Franco aproveitaram toda
a organização temática e estrutural da obra elaborada por Pomey, aproveitaram muito do
vocabulário aí existente, mas também acrescentaram muitas palavras, frases e expressões,
incluindo alguns subcapítulos completamente novos (
114) como sejam os dedicados, por
exemplo, a Portugal e às suas possessões ultramarinas, à arte da pesca, da caça de aves ou do
toureio, os jogos de cartas ou de cavalos, os modos de saudar, entre outros. Algum do
vocabulário de Pomey não é adoptado na versão portuguesa, provavelmente por não ser
condizente com a nossa realidade, e é feito um esforço de vernaculidade que poucos
galicismos deixa passar (
115).
(114) Alguns deles nem sequer são assinalados com o asterisco ou “estrellinha” que Franco anuncia no prólogo como marca de acrescento.
(115) Podemos apontar pouco mais do que “Potagem” (p. 122), “Vinho vermelho” (p. 125), “Chantre” (p. 176), “Bagagem” (p. 208).
Entre outras fontes para a elaboração de tão completa obra, dentro do género, não
temos dúvida em apontar a Prosódia de Bento Pereira e a Amathea de Fr. Tomás da Luz, bem
como outros manuais do género já existentes e a que nos referimos atrás. No entanto, à
excepção talvez da Amalthea, nenhuma outra nomenclatura ou “caderno de apontamentos”
cumpre os objectivos do Indiculo. Assim se entenderá a sua relativa longevidade, ultrapassou
épocas, políticas e sistemas de ensino, sendo adoptado, praticamente sem alterações, ao longo
de, seguramente, mais de uma centena de anos.
A redacção e o estilo de Pomey/Franco são muito agradáveis e aumentam a orientação
didáctica do pequeno dicionário enciclopédico. Deixamos, apenas para amostra, mais três
pequenos excertos onde a metáfora, a hipérbole, a litotes ou a comparação, para além do
diálogo sugestivo, dão graça ao texto:
«Que numero tem as Estrellas? (...)
A sua multidaõ he innumeravel; comtudo as que se podem ver com os olhos, saõ mil e vinte e duas; às quais se haõ de accrescentar mais cento e vinte hüa descubertas pellos Astrologos mais modernos.» (116)
«A geada com o frio da noite se enregella em a infima regiam do ar; porem nam deve ser o frio pequeno, porque entam somente orvalharia, e nam heveria geada.» (117)
«Como pode ser redonda tendo tantos, e tam altos montes, que parese lhe ham de impedir o ser redonda? (...)
Nam impedem os montes por altos que sejam, que a terra nam seja redonda; porque se se cõpararem com a grandeza da terra sam como as verrugas, que tem o corpo humano.» (118)
A versão portuguesa do Indiculo Universal, embora correspondendo, como todos os
textos lexicográficos, a um exercício de continuação de obras anteriores, a verdade é que
oferece elementos de novidade e de especificidade portuguesa que nos dão fundadas razões
para o considerarmos um texto com merecimento de obra original. No Indiculo, António
Franco aproveitou o melhor da fonte francesa – a sua organização estrutural – mas não se
ficou pela simples tradução. O esforço de aportuguesamento e de enriquecimento do texto é
apreciável e faz dele uma obra de referência que bem pode ajudar a desfazer a ideia tão
(116) Indiculus Universalis, 1716, pág. 11. Repare-se na nota de actualidade, num certo sentido de rigor que se pretendia dar ao texto.
(117) Idem, pág. 25. (118) Idem, pág. 29.