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Na esteira de seu congênere civil, o direito processual penal dispõe igualmente de medidas cautelares, as quais se destinam inteiramente à tutela da administração da justiça, salvaguardando a atividade jurídico-penal de eventuais riscos que possam comprometer sua efetividade. Não apresentam as cautelares penais, todavia, a feição antecipatória do resultado final do processo - distanciando-se assim de algumas medidas civilistas - justamente pela repercussão e magnitude de sua ingerência na esfera individual do sujeito passivo, especialmente no que tange às medidas de natureza pessoal, cerceadoras do sagrado direito fundamental da liberdade.

Trazendo intrínsecas as noções de acessoriedade, provisoriedade e instrumentalidade, além dos pressupostos fundamentais do fumus boni iuris e do periculum in mora, o uso das medidas cautelares penais em nosso país remontam à época colonial, e mostra-se perfeitamente compatível com as noções de Estado Democrático de Direito, desde que respeitados os vetores fundamentais que regem a matéria, como o favor rei, a dignidade da pessoa humana, a presunção de inocência, a legalidade e a proporcionalidade.

O advento da Medida Provisória nº. 111, em 24 de novembro de 1989, inaugurou uma nova modalidade de providência cautelar no ordenamento jurídico-penal pátrio, a denominada prisão temporária. Motivada principalmente pela escalada da violência urbana e do crime organizado, a custódia tinha como finalidade precípua a tutela da fase pré-processual da persecução penal, oferecendo às autoridades policias um instrumento mais enérgico e eficiente na elucidação de crimes de alto potencial ofensivo e complexidade. A novidade gerou grande controvérsia entre os processualistas pátrios, notadamente quando da convolação da MP na Lei nº. 7.960/89, aos 21 dias do mês seguinte.

Realidade antiga nos ordenamentos jurídicos da Europa Ocidental, a prisão temporária volta-se à instrumentalização do inquérito policial, sendo decretável apenas em face de um dos crimes constantes do inciso III do art. 1º da Lei nº. 7.960/89, e ainda assim somente quando imprescindível para as investigações, ou não possuindo o indiciado residência física nem fornecendo elementos necessários ao esclarecimento de sua identidade. Seus requisitos denotam a presença nos pressupostos fundamentais das medidas cautelares penais - fumus

comissi delicti e periculum in libertatis - e sua duração está limitada ao prazo de cinco dias –

ou trinta, em se tratando de crime hediondo ou assemelhado -, sendo ainda possível uma única prorrogação por igual prazo.

Hostilizada por alguns doutrinadores, que a qualificam como odiosa e desnecessária, a prisão temporária já sofreu inclusive tentativas de expurgação da ordem jurídica nacional, recebendo o estigma de inconstitucional, do ponto de vista formal e material. Tal tese, entretanto, não foi acatada pelo Supremo Tribunal Federal, o qual não conheceu da ADIn nº. 162-1/DF, impetrada pelo Conselho Nacional da OAB visando à suspensão dos efeitos da MP nº. 111, poucos dias após o advento da medida. De fato, a convolação da MP em lei pelo Congresso Nacional e a inexistência, à época, de restrição material à edição das medidas de urgência no texto constitucional, enfraquece o argumento do vício de iniciativa. No que concerne à alegada inconstitucionalidade material, consubstanciada na incompatibilidade entre a custódia temporária e o princípio da presunção de inocência, trata-se de questão há muito superada na doutrina e jurisprudência, diante da necessidade das prisões provisórias na tutela das diversas fases do procedimento penal e da aquiescência da Lei Maior em vigor à sua eventual adoção na falta de medida menos gravosa, respeitadas certas formalidades.

Plenamente consolidada no meio jurídico brasileiro, as prisões temporárias vem desempenhando nos últimos anos um relevante papel nas atividades investigativas das polícias judiciárias, notadamente no combate ao crime organizado. Figura importantíssima nas mega ações da Polícia Federal, por exemplo, a custódia em comento não raramente tem seu uso desvirtuado, o que tão somente mina a legitimidade do instituto e, indiretamente, acaba pondo em xeque a credibilidade da justiça penal. Os meios de comunicação em massa têm papel relevante nessa vulgarização das prisões temporárias, uma vez que atribuem às ações das autoridades policiais um status de verdadeira produção cinematográfica, expondo a intimidade dos sujeitos passivos e manipulando a opinião pública.

Perfeitamente compatível com a ordem constitucional vigente desde que interpretada sob uma perspectiva garantista, é importante que se destaque que a prisão temporária deve ter seu uso inexoravelmente relegado a último caso, fazendo-se necessário, consequentemente, o desenvolvimento de medidas alternativas à medida restritiva de liberdade, a exemplo daqueles adotados pela legislação francesa e dos propostos no Projeto de Lei nº. 4.208/01, atualmente em trâmite no Congresso Nacional.

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