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O desenvolvimento desta dissertação abriu possibilidades inimagináveis desde o início da pesquisa. Não pensei que teria tempo para contar com a dimensão histórica que precisa ser problematizada, pelo menos no meu ponto de vista, para sustentar alguma interrogação acerca da Reforma Psiquiátrica e dos serviços que operam essa nova versão sobre a loucura. Tampouco acredito que tenha esgotado as dúvidas que cercam a temática, ao contrário, isto representa apenas um recorte possível a partir do que se pode admitir dentro do tempo em que o realizei. Nem mesmo pensei que a história fosse tomar tanto espaço destas linhas, e ainda de minha vida.

Ainda que apenas um breve recorte, espero que tenha sido importante e que possa somar à realidade tão temida e tão obscura da loucura, retirando em alguma medida e, mesmo que momentaneamente, esse lugar marginal ao qual destinamos a essa experiência subjetiva. Pois, se nos é comum falar de loucura, de alienação, de psicose, de saúde mental, entre os círculos acadêmicos e profissionais, que se ocupam desta experiência e de seus saberes, pouco parece importante para a sociedade em geral, que rapidamente precisa saber se é doença e se tem cura, bem como, qual o caminho mais distante para não ter que cruzar com esse fantasma, como se nada tivesse a ver com sua construção.

No percurso da pesquisa, como não poderia ser diferente, algumas dificuldades apareceram: a primeira e mais importante, talvez, foi conseguir superar o vínculo afetivo que

101 Aproprio-me de sua expressão que intitula um artigo, “A vida dos homens infames”, e na referida entrevista, Foucault refere-se à homossexualidade, e forma como social e historicamente nos relacionamos com essa categoria, importando destacar os incômodos gerados pelo modo de vida que os sujeitos referidos homossexuais adotam. 102 Parafraseando o bordão psicanalítico a respeito da psicose, que Soler (2007) também traz como título de seu livro, “O Inconsciente a céu aberto”.

estabeleci com as pessoas que atuavam no lugar onde pesquisei e passar às críticas, à análise dos dados, mesmo que o objetivo não se assentasse sobre a “crítica pela crítica”, e mesmo supondo que as questões que levantei e elaborei podem auxiliar transformações, quem sabe, e superar impasses poucos esclarecidos para a equipe. Esse era um lugar de insistente questionamento, pois às vezes acreditava que, como pesquisadora, era muito confortável apontar as dificuldades que apareciam na dinâmica do serviço ou as ressonâncias de uma época que se pretende superar.

Sobre isso, penso: se eu estivesse na condição de funcionária deste serviço, as mesmas questões teriam aparecido? Que outras interrogações teriam sido feitas, se não apenas como pesquisadora eu figurasse nessa assistência? A pesquisa feita por alguém que compusesse a equipe da assistência poderia ter dado outro direcionamento ao aspecto revelado a mim.

Outro impasse foi exposto a mim no último dia da pesquisa: alguns profissionais, ao longo do período em que estive no Serviço, perguntavam se eu iria ao CAPS, tal ou qual dia, anunciando suas preocupações em serem “vigiados” por mim, e se assim precisariam, além de contar com a própria demanda do serviço, ter que se haver com um olhar estranho que, para eles, parecia julgar as ações como certas ou erradas.

De forma alguma o objetivo deve se apoiar nessa prerrogativa do “certo e errado”. Elaborar as questões que trouxe para a dissertação pretendia analisar como o saber que se construiu sobre a loucura, especificamente, no período referente ao século XIX e do qual me ocupei diretamente, ainda reverbera não apenas nos manicômios ou unidades hospitalares que mantém leitos de internação, mas também nos serviços substitutivos que visam romper com o modelo asilar, não por negarem preocupação em relação aos preceitos da reforma psiquiátrica, e sim porque não apenas num ato libertário se consegue restituir um novo lugar. Ou mesmo, assim como os próprios preceitos que resgatam os direitos à cidadania e à dignidade, também podem representar o avesso disso e, operar, mais uma vez, como um discurso regulador da moral, que impede que a experiência da loucura tenha existência decente.

Por isso, com preocupação em não cair na armadilha da categorização simplista de que o serviço funciona certo ou errado, mantive cuidado nas vezes em que me referi ao CAPS onde pesquisei. Em certos momentos em que fazia referências, algumas pessoas costumavam dizer: “não sei onde tu pesquisaste, não sei como é lá, mas onde trabalho não é assim”, e parecia como se minha fala fosse uma acusação e uma denúncia da era moderna em pleno século XXI.

Mais que isso, espero ter conseguido sustentar minha problemática e mostrar que mesmo banhados pelos ideais reformistas, estamos à beira e, talvez, encharcados de um discurso que não se encerrou, que ainda nos cerca e que nos parece confortável adotar por pretender responder a tudo que surge. Por que cair no risco de permitir que o sujeito faça uma nova crise, se é possível dopá-lo com medicações tão avançadas e evitar esta incômoda experiência? Mas, como sempre aconteceu, a loucura dá seu jeito e não há medicação que consiga calá-la para sempre. E é a isso que faço atenção e pretendo incitar com o fim dessa primeira etapa, a partir das respostas que consegui dar nesse primeiro momento: por que se precisa calar tal experiência? Seja através da construção do saber médico sobre a loucura como doença mental, seja através da reforma psiquiátrica que tece novas estratégias para sustentar o comprometimento com um sujeito idealmente reabilitado.

Outra dificuldade se impôs: a mudança do problema de pesquisa que se deu ao longo do percurso, que a princípio se assentava na teoria psicanalítica e que foi superado como questão. Quando isso se deu, pensei em como sustentar um trabalho que se vinculava à linha de pesquisa que tem a Psicanálise como referência principal e que ganhou uma dimensão histórica importante e expressiva. Não que esta dimensão exclua a Psicanálise, mas penso que não se dê sem consequências, principalmente, nas críticas que Foucault faz à psicanálise ao longo de seu pensamento e que também apareceu na bibliografia à qual mais me reportei, O Poder Psiquiátrico, quando inclui o saber psicanalítico no rol das funções-psi, que serviam ao saber médico para sustentar esta verdade.

Não tive tempo nem mesmo para aprofundar tais críticas, mas tomei a Psicanálise aqui como um discurso que resiste ao saber medicalizado e, sobretudo, pretende restituir ao sujeito um lugar próprio. Porém, mesmo não tendo podido aprofundar nessas críticas e ir às suas últimas consequências, destaco o entendimento de que, ao mesmo tempo em que parto de uma Psicanálise que se pretende nesse lugar de resistência, esta só pode existir dentro de qualquer serviço como uma possibilidade, e não como uma verdade imperativa que supõe deter um saber melhor do que aqueles que circulam, ou que tentam circular num serviço de assistência psiquiátrica, por exemplo. Mas resgato a tradição compromissada que a Psicanálise mantém nas investigações acerca da loucura, ou, mais especificamente, acerca da psicose, tal como referi ao final do item que se destina à exposição da contribuição de Freud sobre as psicoses, e que refiro Birmam (1978a) enfatizar o reconhecimento do papel importante da Psicanálise, por devolver e

apostar num sujeito capaz de construir sua própria verdade, em tempos de pura exclusão do sujeito.

À Reforma Psiquiátrica Brasileira é preciso dar seu valor e importância dentro do que se construiu ao longo dos séculos. Representa uma quebra triunfal com o modelo asilar do claustro, dos mortos-vivos, fazendo operar a pena que lhes era encerrada por assombrarem os lugares por onde passavam. Mais do que derrubar os muros dos asilos, coloca-se como a possibilidade de destituir o saber médico de seu lugar supremo, incluindo outros saberes que há muito tempo questionavam as verdades cristalizadas que ignoravam qualquer possibilidade de restabelecer uma existência digna ao sujeito identificado como louco. Mais que isso, a Reforma Psiquiátrica representa, como refere Lins (2007), a possibilidade de dar uma nova reposta à loucura, junto com ela, e não aquém de seus sujeitos.

Porém, esse é o momento do início, momento de ruptura com os ardis anos minuciosamente costurados pelo saber médico. E assim me refiro ao momento do começo do movimento reformista, no final da década de 70, mas também ao período que nos encontramos hoje. E é por reconhecer que as amarrações das verdades erigidas são muitas e complexas, que penso ser indispensável não recuarmos das questões que se impõem no dia-a-dia da assistência.

Como, por exemplo, conciliar o lugar que deve ser dado ao sujeito, considerando seu tempo e suas escolhas, com as exigências legais que se impõem para o serviço se manter em pleno funcionamento? É preciso, por exemplo, que o sujeito tenha um número “x” de atendimentos (médicos, principalmente), para garantir que os recursos financeiros sejam depositados para o CAPS. E ainda, com quais moedas pagar o preço de se adequar à lei e às portarias que prescrevem como se deve operar uma unidade de assistência? Sim, pois ainda que assegurem um lugar de direitos, podem engessar ações.

Se devo sugerir algo, com cuidado, e de forma geral, acredito que além das supervisões, que aconteceram, por exemplo, em um período no CAPS onde pesquisei e parecem ser frequentes e solicitados por outras instituições – vejo tal intervenção como o lugar para expor e dissipar, na medida do possível e do necessário, os impasses clínicos que se estabelecem na assistência –, os grupos de estudos também podem aparecer como uma possibilidade para repensar as práticas, para historicizar as intervenções, contextualizar os serviços. Não me refiro aqui aos “cursos de capacitações” que parecem ter caído num modismo, mas na formação

continuada que pretende dar lugar, também, às questões que se impõem no caminhar da assistência e que podem auxiliar nas dissoluções dos problemas, bem como incitar à produção de trabalhos teóricos que possam ser publicizados e, assim, tomados por outras assistências que reconheçam dificuldades semelhantes. E assim, mais do que simplesmente acreditar que exista um modelo ideal de serviço, pôr-se em questão constantemente, movimentando, problematizando e inventando sobre temas tão caros e complexos à nossa história.