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2. CENTRO DE ATENÇÃO PSICOSSOCIAL DE SANTA IZABEL DO

3.1. Psiquiatria e Alienação Mental: a loucura como doença

3.1.2. A família do alienado

Ainda que o fim fosse localizar no corpo a herança da loucura, o discurso que o marcava era o da moral da Sociedade, ratificada por Birman (1978) como a moral da Família. Foucault ([1973-74] 2006) destaca a importância da instância familiar como suporte ao poder

disciplinar46, apesar de ter em seu interior a operação do poder soberano, uma vez que, a imposição deste concentra-se na figura do pai, em relação aos filhos e à mãe. Outro aspecto levantado sobre a família se trata do próprio tipo de vínculo, de compromisso e de dependência estabelecidos e demarcados pelas formas de casamento ou nascimento. São princípios consistentes que, para se manterem sob essa característica, se utilizam da vigilância – nesse sistema nuclear, esta última aparece como uma condição acessória e não fundadora, como ocorre no poder disciplinar.

Ainda que assim se fizesse o poder no interior da família, Foucault ([1973-74] 2006) explicita que esta instituição não representa simplesmente um resíduo da soberania. Mais do que isso, aparece como essencial para a operação do poder disciplinar, considerando seus esquemas contratuais dos vínculos, dos compromissos, fossem no nível pessoal ou coletivo. Assim, mesmo que diferente do poder que operava na sociedade moderna e industrial, o poder soberano da família servia de ponte para habilitar seus membros às exigências sociais extra-familiares. E assim nos diz:

Creio que poderíamos dizer o seguinte: a família, na medida em que obedece a um esquema não disciplinar, a um dispositivo de soberania, é a articulação, o ponto de engate absolutamente indispensável ao próprio funcionamento de todos os sistemas disciplinares. Quero dizer que a família é a instância de coerção que vai fixar permanentemente os indivíduos aos aparelhos disciplinares, que vai de certo modo injetá-los nos aparelhos disciplinares. É porque a família existe, é porque vocês têm esse sistema de soberania que age na sociedade sob forma de família, que a obrigação escolar age e que as crianças, enfim os indivíduos, essas singularidades somáticas são fixadas e por fim individualizadas no interior do sistema escolar. Para ser obrigatório ir à escola, tem de agir também esta outra soberania que é a soberania da família. (...) O primeiro papel da família em relação aos aparelhos disciplinares, é portanto, essa espécie de vinculação dos indivíduos ao aparelho disciplinar. (p. 100-1).

46 Poder que se pretende ao controle e domínio dos corpos e que se diferencia do poder soberano localizado, este último, na figura do rei. O poder disciplinar não tem forma ou referência, mas opera na totalidade do ser, de maneira contínua, visando preencher todos os aspectos de sua subjetividade, sendo este o poder característico da sociedade moderna e industrial. Foucault ([1973-74] 2006) refere “que o poder disciplinar pode se caracterizar em primeiro lugar pelo fato de implicar, não uma coleta com base no produto ou numa parte do tempo, ou em determinada categoria de serviço, mas por ser uma apropriação total, ou tender em todo caso, a ser uma apropriação exaustiva do corpo, dos gestos, do tempo, do comportamento do indivíduo. É uma apropriação do corpo, e não do produto; é uma apropriação do tempo em sua totalidade, e não do serviço.” (p.58), e continua: “O poder disciplinar não é descontínuo, ao contrário, ele implica um procedimento de controle contínuo; no sistema disciplinar, não se está à eventual disposição de alguém, está-se perpetuamente sob o olhar de alguém ou, em todo caso, na situação de ser olhado.” (p.59).

Ao mesmo tempo em que a família, em seu sistema de soberania, permitia aos seus sujeitos incluírem-se nos diversos sistemas disciplinares, por outro lado, as falhas que ocorressem nesta inclusão, obrigatoriamente, os levavam a retornar ao seu núcleo familiar, estabelecendo o duplo vínculo existente entre a família e o poder disciplinar, vínculo este tão intenso e dependente que diante dessas falhas, dispositivos disciplinares eram empreendidos para suturar o enfraquecimento desta instituição, fazendo surgir os orfanatos, as casas para jovens delinqüentes e, ainda, os asilos para os alienados47.

Em suma, tudo o que podemos chamar de assistência social, todo esse trabalho social que aparece desde o início do século XIX e que vai adquirir a importância que agora vocês sabem, tem por função constituir uma espécie de tecido disciplinar que vai poder substituir a família, ao mesmo tempo reconstituir a família para possibilitar que se prescinda dela. (Ibidem, p. 105).

Considerando a importância da família para o sistema disciplinar, no que tange à alienação mental, implica dizer que se um membro da família enlouquecesse isso se daria porque esta se encontrava em estado de decadência em relação aos valores morais, o que, obrigatoriamente, resultaria na alienação de seu ente. “A alienação mental é uma marca do fracasso dos novos costumes instituídos e das relações morais, no nível da instituição familiar” (BIRMAN, 1978, p. 81). E ainda, “a alienação mental é o lugar através do qual se reconhece a alienação moral do discurso familiar, nas suas distâncias das normas morais estabelecidas pelo

discurso da Sociedade” (p. 82).

A partir de tal compreensão, louco e família tornam-se objetos de intervenção psiquiátrica: o alienado como alvo de cura da instituição psiquiátrica e a família como objeto de intervenção preventiva por meios psiquiátricos e pedagógicos, que, posteriormente, seriam autorizados pela própria sociedade. Destaca-se, acerca disso, o vínculo entre a ideia de prevenção e de hereditariedade, esta última sendo a via para estabelecer o discurso psiquiátrico na instituição familiar, determinando, a partir de então, as normas de convivência desta entidade social para evitar o enlouquecimento de seus membros. Se o entendimento é que a alienação é

47 É partindo da importância da família para o sistema disciplinar, estruturado no século XIX, e da criação dos dispositivos substitutos que nasce, o que Foucault nomeia de função-psi, incorporada na função psiquiátrica, psicológica, psicossociológica, psicocriminológica, psicanalítica. “E quando digo “função”, entendo não apenas o discurso, mas a instituição, mas o próprio indivíduo psicológico; qual é ela, senão ser os agentes da organização de um dispositivo disciplinar que vai se ligar, se precipitar onde se produz um hiato na soberania familiar?” ([1973-74] 2006, p. 105-6).

hereditária, é preciso identificar quais aspectos dessa relação familiar estão relacionados com essa enfermidade, para fazer operar um discurso preventivo incidente sobre a relação entre os pares que compõem este núcleo. Eram entendidos como causas morais da loucura, que poderiam agir isoladamente ou de forma combinatória, e deveriam ser objetivados pela moralização da instituição familiar para evitar a alienação mental, os seguintes pontos: “desgostos domésticos, amor contrariado, acontecimentos políticos, fanatismo, pavor, ciúme, inveja, cólera, miséria e reverso da fortuna, amor-próprio ferido, ambição enganada, excesso de estudo e misantropia” (Idem, p. 83). Esses são pontos que eram entendidos como originais de três ordens: a ordem do amor, a ordem social e aos sentimentos intensificados, além de certos limites. A família, então, operaria no seio dessas ordens para a produção de sujeitos moralmente normalizados, a fim de suprimir a alienação.

Birman faz ainda considerações a esse respeito em outro texto48, ao referir o importante lugar ocupado pela família para o discurso psiquiátrico, retomado em meados do século XX pela chamada psiquiatria comunitária e preventiva que propõe, a esse tempo, expandir seus efeitos não apenas sobre o enfermo, mas também sobre as diversas instituições compreendidas como corresponsáveis pela produção da doença mental.

Dessa forma, é possível perceber os efeitos do discurso psiquiátrico erigido no início e ao longo do século XIX, fazendo frente a uma das hipóteses que cercam o referido autor nesse trabalho, a propósito de que os movimentos reformistas iniciados no século XX49 visavam resgatar a era moderna do alienismo. Nesse sentido, a família volta a figurar como alvo de intervenção psiquiátrica, movimento que transborda a estrutura asilar, uma vez que, visa atingir um núcleo exterior ao asilo, o que indica uma ruptura com o século do isolamento. Por outro lado, o extravasamento da intervenção psiquiátrica para esta estrutura pretendia a readaptação social, assemelhada ao tratamento moral que era o objetivo único da intervenção psiquiátrica daquele período: “Assim, cabia cuidar do sistema familiar, tanto para possibilitar a incorporação do internado no quadro familiar que o expeliu, quanto para impedir que outros elementos deste grupo viessem a enlouquecer” (Idem, 1978a, p. 213).

Avançando na questão das causas da loucura, para além da instituição familiar, associaram-se também suas origens ao espaço social, por julgar que o ser humano não habita

48 “Demanda psiquiátrica e saber psicanalítico” In: Sociedade e Doença Mental (GOFFMAN et al, 1978). 49 Tal como a Reforma Psiquiátrica.

solitariamente o mundo e, desta forma, além de depender, constitui-se como um ser a partir de suas relações interpessoais.