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Conclusão

Conclusão

Conclusão

No princípio dos anos de 1498, quando Vasco da Gama alcançou a Terra da Boa Gente e o rio dos Bons Sinais, na costa oriental africana, procurava incessantemente um piloto que conduzisse os navios até à Índia. Encontrou a pessoa certa em Melinde e fez a travessia sob os auspícios de alguém que dominava uma outra técnica de navegação, e que conhecia os caminhos do Índico que eram desconhecidos dos portugueses. Inaugurava assim uma nova forma de proceder que se repetiria durante décadas ou séculos tornando-se uma prática corrente. Quando Albuquerque viajou para Malaca em 1511 fez exactamente o mesmo, e após a conquista dessa praça do Oriente, os caminhos que de repente se abriram às navegações portuguesas não podiam ser percorridos sem recorrer aos serviços de homens práticos que conheciam bem os labirintos do mar. A viagem de António de Abreu até Banda levou três pilotos portugueses, é certo, e dela resultaram os desenhos de Francisco Rodrigues que, apesar de tudo, não lhes juntou nenhum roteiro272. O primeiro texto que até nós chegou e que cobre a rota das Molucas

pela ilha de Java (como a fizera António de Abreu) é o que consta no Livro de

Marinharia de João de Lisboa, cuja data não pode ser anterior aos acontecimentos que envolveram Francisco de Sá em 1528 na costa de Sunda. O mesmo documento tem um pequeno texto com a descrição da viagem até ao porto de Bornéu, sem continuidade até Ternate e esse caminho só aparecerá no texto de Bernardo Fernandes, datados do final da década de quarenta. Esta questão levanta, pela certa, algumas susceptibilidades, mas não pode deixar de ser vista com o realismo inerente à condição dos portugueses na Insulíndia e à enorme carência de pessoal que pudesse cobrir as necessidades das próprias viagens oficiais onde o recurso a um piloto malaio, jau ou lução era muito mais fácil e prático porque os havia.273 De outra forma, aliás, nunca teriam os navios

espanhóis da esquadra de Fernão de Magalhães conseguido navegar como fizeram, passando por Bornéu, Ternate, Tídore, porque nem sequer tinham beneficiado de uma experiência inicial como a de António de Abreu. Entendamos portanto que não houve roteiro das Molucas depois da viagem de 1511-12 e que as necessidades de um roteiro

272 E se o tivesse feito parece lógico que estaria com os restantes textos e mapas. Aliás, se analisarmos

bem o caminho das Molucas pelo sul, facilmente concluímos que não é possível, apenas numa viagem, elaborar um documento que tenha em conta todos os dados que constam em J. Lisboa.

273 Apesar não serem em tanta quantidade quanto se poderia esperar e, por vezes, haver até dificuldade em

113 desses eram muito relativas, dada a facilidade de recorrer a práticos locais que conheciam bem os caminhos por entre as ilhas, cuja aprendizagem por estranhos demoraria anos. E aceito com grande naturalidade que o texto de J. Lisboa, datado de perto de 1530, seja o primeiro texto português que possa merecer essa designação.274 E

por maioria de razão não aparece nenhum texto náutico com essas características sobre a derrota para a China, onde, antes dos anos quarenta, os navios portugueses só foram por três vezes (1517-1522) e recorrendo sempre a pilotos chineses, que constam na documentação das viagens. O mais antigo texto que se sabe ser de origem portuguesa e que relata esta derrota é o que foi publicado por Linschoten em 1595, embora seja possível verificar que algumas das suas fontes são dos anos setenta e oitenta. Quer isto dizer que o registo sistemático dos caminhos do mar não se fez da forma tão precoce que conhecemos no Ocidente, fruto talvez da falta da estrutura régia que se preocupava em fazer esses registos para uso futuro.

Esta limitação não nos impediu, contudo, de analisar as três rotas definidas inicialmente, como pudemos ver atrás. As duas rotas das Molucas tinham, apesar de tudo, os seus próprios roteiros que – no caso da de Bornéu – foi copiado por fontes espanholas que também faziam uma parte dessa via para aceder a Manila. E no caso da China verificamos que os tardios roteiros portugueses coincidem com uma das tradicionais rotas do Império, onde apenas se adaptou a linguagem, o tipo de referências e – seguramente – a minúcia descritiva, que não está nas fontes chinesas. Por isso nos parece que a realidade encontrada em algumas das cópias mais tardias não difere no essencial do que se fez algumas décadas antes. Terá pormenores mais circunstanciados – que foram salientados porque estão ditos – mas correspondem a uma linha que foi desenhada nos anos quarenta e cinquenta, na altura da retoma do comércio com a China controlado por Goa e das negociações sucessivas até ao estabelecimento em Macau, em 1557. Dão-nos notícia disso os nomes de pessoas que várias vezes aparecem referenciados no próprio texto.275

Pareceu-nos, portanto, possível entender a forma de navegar naqueles mares pejados de ilhas e escolhos onde tudo é diferente da navegação do Atlântico ou mesmo

274 É o mais antigo que até nós chegou e dado o carácter puramente comercial das viagens efectuadas até

1522 (Jorge de Brito) não me parece que tenha havido muita disponibilidade para efectuar um roteiro.

275 Foram salientados ao longo do capítulo III e constam das anotações aos roteiros transcritos em

114 do Índico Ocidental. Deve entender-se que mesmo os pilotos experimentados só navegavam de noite em locais abertos, livres de baixos e onde há vento claro que permita bom governo. Nas duas rotas rota do sul – e muito mais na que segue por Java para Banda – abundavam os dias de calmaria em que se andava apenas com as brisas havendo dois expedientes fundamentais a ter em conta: o ferro sempre pronto a largar para evitar que o pouco andamento arrastasse o navio com as correntes, e o prumo sempre na mão. A base fundamental das descrições dos caminhos do sul é feita com a indicação de profundidades e da natureza do fundo, sendo frequente ler-se que deve ir nas 8 braças (por exemplo) guinando para terra se crescer e para o mar se aumentar. A consciência do piloto sobre o que o rodeava era feita dos sinais da água, das variações de cor e de tom, da atenção ao aparecimento de algas ou de certos animais marinhos (v.g. cobras), mas sobretudo de fundos. Os textos dão-nos a visão de um espaço labiríntico que o piloto reconstruía mentalmente com alturas de água e características do material do fundo: laje, fundo teso, vaza solta, vaza mole, areia fina, areia grossa, preta, branca, rocha (que moldou a bola de sebo mas não veio agarrada), conchas, cascalho, etc. No mar aberto, onde o rigor dos cálculos de latitude são grosseiros, faltando o apoio da costa, navega-se por um rumo norte, nordeste, nordeste quarta do leste, ou quaisquer outros, mas sempre a verificar se a corrente não puxou para um lado ou para o outro. Sempre com o prumo dentro de água, porque em todo o percurso se sabe o valor das braças e do tipo de fundo.

Para o norte é um pouco diferente porque se fazem travessias mais longas sem os perigos inerentes ao emaranhado de ilhas com passagens sempre estreitas. Naquilo que diz respeito à condução da navegação os problemas mais importantes tinham a ver com os efeitos das correntes na travessia dos dois grandes golfos (Tailândia e Tonkim) que não são regulares e podem ter revessas contrárias à própria direcção típica de cada época. Aqui as latitudes – mesmo se pouco precisas – voltavam a ser uma indicação útil porque serviam para dar resguardo a obstáculos. Quando alcançavam as ilhas de Cantão voltava a regra do prumo sempre na mão, a navegação com pano reduzido (baixar a velocidade) e, eventualmente, só de dia276. Os próprios textos o dizem ou recomendam o

que se deve fazer com as variantes de “se conheces bem” podes fazer duma maneira, “se não conheces” procede doutra forma. Assim tinha de ser.

276 Esta decisão era pontual e dependia das circunstâncias. Não assumia o carácter de regra determinante

115 A minúcia descritiva dos avistamentos, dando preciosas indicações que deviam ser complementadas por desenhos como os de Francisco Rodrigues,277 contrasta de

forma muito nítida com as grosseiras avaliações de distância. A noção da distância percorrida – na falta de instrumentos adequados para a determinar – era uma avaliação naturalmente imprecisa mas, sobretudo, muito própria de cada piloto ligada a uma sensibilidade pessoal e, provavelmente, às características da derrota. Do que transparece dos textos a navegação não era feita determinando com rigor a posição do navio e comparando-a com a localização dos obstáculos. As travessias eram feitas antecipando os perigos e os avistamentos e as indicações dos roteiros são do tipo “segue o caminho até que vejas isto ou aquilo”, e a definição desse caminho só toma distâncias como referência quando são curtas e fáceis de avaliar, como por exemplo o “navega a 4 léguas da costa”. Esta imprecisão nas localizações faz com que os padrões tenham, sobretudo, um carácter esquemático que teria de ser complementado pelo texto.278

Em qualquer dos casos parece claro que a condução da navegação resultava de uma aprendizagem que incluía o domínio de alguns conhecimentos, mas que tinha uma enorme componente de desenvolvimento da sensibilidade para detectar e ler correctamente uma vastíssima panóplia de sinais da natureza que não estão presentes nos roteiros.

277 Eles aparecem em vários roteiros, mas não nas cópias tardias que foram usadas neste trabalho. Não é

linear, portanto, que existissem sempre.

278 O que está de acordo com as ideias correntes sobre o aparecimento das cartas portulano

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