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5 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS E ANÁLISE DOS DADOS

5.3 Análise e interpretação dos dados: as representações do Morro Santa

5.3.3 A interpretação dos dados

5.3.3.5 Conclusões da Análise

Foram analisados 146 textos de jornal que versam, com maior ou menor centralidade, sobre o mesmo ponto geográfico em Fortaleza. Entretanto, os textos versam sobre lugares diferentes. Folhear essa compilação de notícias coletadas é saltar de um para outro – lugares completamente diferentes, distantes até – sem deixar de olhar, no entanto, para a mesma formação geográfica das dunas do Mucuripe. A questão aponta para a complexidade que envolve as instâncias de produção do espaço – percebida por Lefebvre (1991) ao tentar sintetizá-la na sua concepção espacial “trialética” – e para a possibilidade de exercer poder e definir a produção e a transformação das cidades a partir dos sentidos e do que Haesbaert (2004) define como apropriação, em oposição à dominação, no processo de produção de territorialidades (os elementos concretos e abstratos, materiais e simbólicos que definem um território enquanto tal).

Os resultados da AC permitem visualizar com clareza: duas formas de representação antagônicas, circulam em intensidade semelhante e ao mesmo tempo nas páginas do DN. Uma de um lugar pobre, marginalizado e violento (o Morro) e outra de um lugar pitoresco, turístico, badalado, adequado ao consumo das classes privilegiadas (o Mirante). Representações de territórios que habitam o mesmo ponto geográfico, mas em poucas ocasiões se amalgamam no solo informacional do bios midiático.

O discurso do jornal se estrutura em torno dessas representações antípodas. Outras formas também foram observadas – a representação do espaço como objeto de conflito entre moradores, gentrificadores e ocupantes pobres e outra dignificadora do lugar e da comunidade pobre –, mas são, de maneira geral, sujeitas àquelas, pois são produzidas, afinal, por discursos

49RESTAURANTES abandonam o Morro Santa Terezinha. Diário do Nordeste. Fortaleza, 03 de set. 2002.

165 de negativa do estigma (a dignificação) ou discursos derivados da própria existência dessas territorialidades opostas ou quando estas são ameaçadas por terceiros (o espaço em disputa).

Analisamos o discurso jornalístico visando compreender como essa configuração de representações distintas eram produzidas discursivamente, pois compreender a cisão do espaço em termos de sentidos requer compreender como estes são usados como instrumentos de poder na sua apropriação. Observamos o que sintetizaremos como produção de identidade, a produção da diferença e a negação do externo como principais estratégias de linguagem nesse processo. A produção de identidade corresponde à definição do espaço, dotando-o de nome (“o Mirante”) e relacionando-o a signos arbitrariamente (os usos, os usuários, as experiências, a vocação, outros lugares da cidade). Verificamos essa estratégia na gestação do Mirante, no período de sua consolidação como ponto turístico e point boêmio na virada para os anos 90. A produção da diferença diz respeito à ênfase nas dicotomias que subjazem os textos e operam evidenciando as fronteiras da identidade territorial (alto/base do morro, Mirante/Praça do Mirante, Morro do Mirante/Morro Santa Terezinha, Mirante/Rua do Mirante), realçando, portanto, a classificação dos territórios, dos usos, usuários, eventos, fatos, sentidos distintos associados a cada território. Percebemos a produção da diferença especialmente, mas não só, em momentos de conflito, quando agentes ou discursos evidenciavam o caráter fictício da segregação entre territórios e confundiam as territorialidades sobrepostas. A negação do outro diz respeito ao apagamento ou dissimulação do que é classificado como externo às fronteiras ou de lá procede, ou seja, é o corte de relações, a invisibilização do entorno e o silenciamento dos sinais que evidenciam a existência do que existe fora. Vemos a negação do outro nas representações do Mirante que não o relacionam com o entorno do Morro (além da situação geográfica) e vice-versa (as representações do Morro que ignoram o Mirante), nas negações e dissimulações dos problemas sociais do entorno, na racionalização da contradição social expressa na paisagem, no silenciamento da comunidade des-territorializada em relação ao processo de gentrificação, assim como das suas apropriações do mesmo espaço, enfim, a negação da outra territorialidade que se situava no mesmo espaço geográfico. Ao longo da análise buscamos identificar diferentes tipos de discursos e escolhas linguísticas em que eram operadas essas estratégias.

As representações do Mirante que surgiam no discurso jornalístico produzidas a partir dessas estratégias, entretanto, não eram somente formas simbólicas produzidas para/na imprensa. Segundo Stuart Hall (1997) as representações não procedem os objetos da realidade, mas os constituem, os produzem em termos de sentido como uma força primária da

166 cultura. Dessa forma, representações do Mirante e do Morro os constituíam enquanto territórios em uma relação dialética com as práticas culturais dos usuários que possuíam maior poder simbólico e se apropriavam daquele espaço. Ou seja, eram produto e produtoras da experiência daquele espaço.

Nessa relação entre as práticas culturais que ocorriam no Mirante e a produção de sentidos, operam os mecanismos da cultura de consumo, que permeia de significados distintivos as mercadorias – entendidas aqui em sentido amplo como objetos, serviços, estabelecimentos, destinos, cidades, lugares, imagens, etc. – transformando-as em elementos de uma linguagem de diferenciação e pertencimento social, exclusão e inclusão, objetificando capital cultural e simbólico (FEATHERSTONE, 2001) que se torna convertível em capital econômico.

Não é à toa que todos os frequentadores do Mirante oficialmente ou informalmente entrevistados (à exceção dos que fixaram residência ali e criaram outra forma de relação com o espaço) não se recordavam bem do entorno ou das transformações que ocorriam ali, ignoravam as ocupações das encostas, os primeiros indícios de violência urbana, a des-territorialização causada pela gentrificação, as apropriações da praça pela comunidade local, mas se recordavam bem dos bares favoritos por nome, do tipo de público de diferentes estabelecimentos, de diferentes pratos e drinks, dos lugares para comer e dos lugares para beber, dos lugares caros e baratos, dos shows, dos músicos, dos garçons, de outras turmas de jovens, das companhias, de momentos específicos, do pôr-do-sol, enfim, de experiências sociais e afetivas relacionadas ao consumo do Mirante. Todos chegavam e deixavam o lugar em carros, desconhecendo, às vezes, até como chegar ali. Portanto, também eram as representações produzidas pelos próprios usuários (incluindo os empresários) e suas experiências – seus próprios discursos de exclusão e pertencimento – que construíam sentidos do Mirante que chegavam até o discurso jornalístico que as reproduzia, legitimava, usava estratégias de linguagem semelhantes ou as reinventava em um ciclo virtuoso de apropriação do espaço.

A operacionalização ideológica do jornal no processo de apropriação é mais ampla que os usos do sentido na construção da realidade em favor do grupo dominante que se beneficiava da apropriação do Mirante identificados no discurso jornalístico. Além da adoção do discurso dos gentrificadores, identificamos a atuação do jornal como agente que permite a circulação diferencial de certos discursos sobre a cidade ou silencia, reconstrói, deturpa outros. Formas de representação distintas de dois conflitos pelo mesmo espaço foram identificadas a partir da AC e comparadas a partir da ADC, corroborando que o jornal atua

167 como instituição que define a legitimidade das transformações da cidade através da decisão de que discursos são legítimos para constituí-las semanticamente enquanto realidade social. O apagamento dos discursos críticos à apropriação – reconhecido até mesmo por alguns consumidores – são decisões ideologicamente motivadas do jornal enquanto agente social. Dessa forma, o DN torna arbitrariamente a gentrificação do morro um processo legítimo, tornando inválida suas críticas e a ilegalidade dessa apropriação, enquanto torna ilegítima e condenável a transformação do morro pelas ocupações informais das encostas. A matriz social por trás dessas práticas discursivas do jornal é o modo de produção capitalista do espaço urbano, no qual é intrínseca a primazia do valor de troca da terra em detrimento de seu valor de uso, concebendo o espaço primariamente como propriedade privada dedicada à reprodução de capital. A imprensa opera, portanto, chancelando as transformações que ocorrem dentro ou fora dessa matriz, controlando suas existências no bios midiático da cidade inevitavelmente mediada.

Observamos ainda que as representações do Mirante no período de seu declínio passam a ser fortemente produzidas por discursos de dissimulação e persuasivos, utilizando-se de estilo característico do gênero publicitário, indicando um caráter de propaganda – não necessariamente paga – desses eventos discursivos. Evidencia-se, então, o uso estratégico das representações do espaço com o intuito de alterar outros sentidos que eram atribuídos ao lugar pela força do que chamamos de discurso da favelização, coletivamente produzido, que fortalecia o estigma territorial do Morro. A continuação do declínio e posterior abandono do Mirante, pouco tempo depois, assim como a cessão súbita dessas formas de representação do lugar reforçam o indício do que entendemos ser o caráter de propaganda das representações espaciais: aquelas colocadas em circulação no bios midiático da cidade sem o lastro dos sentidos coletivamente produzidos pelas práticas culturais.

As constatações da análise desse estudo de caso nos permitem, finalmente, formular uma resposta positiva para nossa hipótese: o jornal se constituiu como ferramenta e ambiente de construção da dimensão simbólica da territorialidade do Mirante, operando como meio de semantização do espaço, auxiliando sua gestação e manutenção como espaço- mercadoria de valor na lógica cultural do consumo, adequando-o e integrando-o ao que chamamos de cartografia simbólica das classes privilegiadas através de diferentes estratégias de representação do espaço.

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