• Nenhum resultado encontrado

D A C ONCRETUDE DO S ILÊNCIO

2.6. A Condição Professoral Vista pela Mídia

Os veículos de comunicação refletem como jogos de espelhos as imagens do professor a partir das projeções presentes na sociedade, das distintas e por vezes contraditórias noções a respeito de sua figura – muitas delas produzidas e reproduzidas no interior mesmo da categoria profissional. Conforme buscou-se descrever no Cap. 1, os professores são retratados na mídia como heróis, sofredores, vocacionados, vítimas, missionários, salvadores, de um lado; e não deixam de ser preguiçosos, negligentes, mal formados, desmotivados, acomodados, por outro. Como discutido nos tópicos precedentes, as imagens que carregam traços do sacerdócio não foram substituídas pelas de trabalhador; são modelos que convivem no presente em permanente tensão, tanto no plano individual quanto no coletivo (VIANNA, 1999, p. 29).

Você fala nos lugares que você é professor, os caras olham para você

com pena. “Pô, é do Estado ainda? Está ferrado”. E é isso; ou é como

coitado, ali; ao mesmo tempo, salvador. Você é coitado, está sofrendo todas as contradições possíveis, periga apanhar do aluno, e todas essas coisas assim que criam um imaginário, inclusive, né. O que sai bastante, assim, no debate público sobre o professor, é que a escola na periferia é o pior lugar do mundo, e que lá o carro dele vai ser riscado; e, normalmente, aqueles estereótipos da classe média sobre o que é uma periferia, né. Aí te olham com esse olhar, assim: “Pô, coitado, é professor, não recebe salário direito, precisa fazer mil jornadas para

conseguir se sustentar”. E também, né, colado com isso, vem aquele discurso: “Bem, mas se ele faz tudo isso e ainda está lá, é porque ele é

um cara muito legal, um salvador da pátria, ele é que vai salvar tudo

aí, vai salvar essa meninada”. [João]

Nessa pluralidade de sentidos, a condição de sujeitos dos educadores permanece

fora de foco, em segundo plano, nesse “imaginário social que os secundariza e impregna

as políticas de educação de currículos e até de formação e 'valorização' do magistério” (ARROYO, 2002, p. 11).

Houve momentos na história em que a vinculação da profissão ao “sagrado”

necessariamente, o reconhecimento dos professores como autoridades em educação. Mas os discursos ganham traços acusatórios à medida que o status decai. Hoje a imagem propagada o aproxima mais da condição de culpado pelos maus resultados dos alunos em avaliações e pelos baixos índices de ensino, coexistindo com outras representações que veem nos docentes heróis que se sacrificam por sua missão (o dia do professor, comemorado em 15 de outubro, é o momento por excelência em que se evidenciam mais as imagens desse tipo). Quando é citado individualmente, o professor aparece como vítima de violência, ou ilustra, ainda, reportagens sobre a má qualidade dos sistemas de ensino, sendo retratado como negligente32.

Rodolfo Ferreira (2000) coletou as referências feitas ao magistério no dia 15 de outubro, dia do professor, em um jornal de grande circulação (Jornal do Brasil, Rio de Janeiro) em um período de 60 anos (entre 1940 e 1992). Ele mostra que, durante muito

tempo, o docente foi “comparado a santo, anjo, e visto como herói, capaz de fazer qualquer sacrifício para cumprir sua missão” (FERREIRA, 2000, p. 116). A partir da década de 1960, pela primeira vez, “se teve notícia de que, ao menos, parte da categoria

não estava satisfeita em ter reconhecimento apenas pela dedicação, pelo sacrifício” (p. 119). Esse processo que o autor classifica como dessacralização ocorreu à medida que se acirraram as lutas por melhores condições de trabalho da categoria. Os docentes adotaram, como estratégia de reivindicação de melhores condições a divulgação de suas dificuldades, postura de certa maneira incompatível com os referentes do sacerdócio e do sacrifício.

o problema da remuneração passou a ser anunciado de todas as formas e em todos os lugares: na mídia e fora dela, na escola, na universidade, através dos movimentos reivindicatórios como greves e passeatas, no rádio, em livro, em sala de aula, em casa, na fila do banco, no supermercado [...] [A categoria] Colocou no para-brisa do automóvel

dizeres como “Hei de vencer, mesmo sendo professor”. Vestiu camisa

anunciando a extinção da profissão. Avisou a sequestradores que, por questões econômicas, não valia a pena levá-los para o cativeiro. (FERREIRA, 2000, p. 122)

O autor segue citando situações em que, pela primeira vez, os docentes passaram

32 Sobre as imagens dos professores atualmente veiculadas, apoiamo-nos nas análises de mídia

realizadas pelo Observatório da Educação, da ONG Ação Educativa (2007, 2010), das quais a pesquisadora participou com pesquisa e redação.

a ser ouvidos em reportagens, para denunciar a própria condição. Antes, conforme ele aponta na mesma análise, o professor não havia se manifestado sobre o lugar social em que lhe colocaram, ou seja, com a vinculação de sua imagem a santos, anjos, sacerdotes etc., sequer para dizer que não concordava com ela.

No entanto, se os docentes passaram a ser responsabilizados pelos problemas dos sistemas de ensino, por um lado, por outro a mídia propaga que há um professor que precisa ser resgatado, valorizado, reconhecido: “são bombardeados com uma retórica cada vez mais abundante que os considera elementos essenciais para a melhoria da

qualidade do ensino e para o progresso social e cultural” (NÓVOA, 1999, p. 14). A

percepção e o diagnóstico de que a valorização dos docentes é urgente e fundamental para a melhoria da educação estão certamente presentes no debate público, mas os sentidos dessa valorização são objeto de disputa pela categoria e outros agentes do campo educacional. Em geral, a retórica da valorização é difusa e pouco aprofundada. A

“inflação” retórica em torno do tema tem efeitos muitas vezes contraditórios: em nome da “urgente valorização dos professores”, articulistas e editorialistas acabam por

reforçar velhas tendências observadas na imprensa, tais como a responsabilização e a culpabilização dos profissionais da educação sobre o mau desempenho dos sistemas educacionais em avaliações externas e um certo clamor por abnegação e sacrifícios. Este trecho de editorial publicado após o anúncio de reformulação do currículo do ensino médio pelo Ministério da Educação – anúncio, por sua vez, motivado pelo mau desempenho dos estudantes dessa etapa de ensino no Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) – é bastante ilustrativo desse comportamento:

De nada adianta formular parâmetros curriculares maravilhosos se não tivermos profissionais preparados para ministrá-los […] Um bom educador passa por cima de currículos ruins, supera a falta de infraestrutura, enfrenta a indisciplina e abre oportunidades de vida melhor para seus discípulos. Por isso precisa ser reconhecido e valorizado, mas também acompanhado e cobrado.33

A primeira década do século XXI foi o momento forte desse debate. Nesse período, houve um esgotamento do que o pesquisador Juan Carlos Tedesco (2002)

chama de “discursos tradicionais” sobre a questão docente. São três: 1) a fala, por parte

dos governantes, de reconhecimento da importância dos(as) professores(as) foi dissociada de efetivas medidas para mudar o cenário de desvalorização da profissão – desde a dimensão financeira até as políticas de formação docente; 2) a culpabilização dos docentes pelos maus resultados dos indicadores educacionais, assim como sua vitimização pelas más condições estruturais, que deixaram em segundo plano a discussão sobre sua função educativa; 3) por fim, uma abordagem que subestima o papel docente ganhou espaço nos últimos anos – o professor, nem vítima nem culpado, simplesmente não seria importante para o rendimento escolar. A discussão sobre o uso de tecnologias na escola tende a reforçar este último ponto.

Essa mídia que trata o docente de forma predominantemente negativa; que papel tem, para os professores, como fonte de informação sobre os assuntos do campo educacional? Quando questionados sobre a principal maneira de se informar sobre assuntos da educação, os professores evocam não a mídia, mas a rede de colegas, o

“bate-papo”, a troca de informações na sala dos professores e no horário pedagógico

como a maneira mais eficaz de saber o que acontece. Por outro lado, reforçam o caráter

distorcido, superficial ou mesmo “manipulador” da imprensa, de modo que somente

quem ocupa a posição que eles ocupam estaria em condições de conhecer a real situação da escola.

Acho que elas [as pessoas] não conhecem [a realidade das escolas], eu vejo pela minha família. Outro dia uns professores estavam falando, e eu concordo: só entende de educação quem está dentro da educação. [Nilce]

Aqueles que têm o mínimo de acesso às informações verdadeiras do que realmente acontece na escola, aqueles que têm parentes que trabalham dentro da escola, esses têm um pouco de noção, os outros

só têm ciência do que aparece na mídia […] eu vejo que as

informações são bem manipuladas, bem manipuladas; principalmente, por algumas emissoras. Tem emissora que não divulga nenhuma informação sobre a Educação, tem emissora que divulga informações maquiadas sobre a Educação... Por exemplo, a Rede Globo, ela maquia algumas informações, quem está na rede sabe o quê que está acontecendo, mas como é que você vai contar para um maior número populacional, um maior número de pessoas da população que aquilo

que está sendo dito numa rede de televisão … tão tradicional, que o

que está dizendo é mentira? Como é que você vai desmentir a Rede Globo? [Cilene]

[Os jornalistas] deveriam tentar entender. Porque só quem está dentro da sala de aula é que sabe o que acontece numa escola e dentro de uma sala de aula. As pessoas que estão fora da sala de aula, não sabem; o Governador, o Prefeito, os Vereadores, eles não sabem como que é o mecanismo de uma escola; se ele vier um dia só aqui, ele não vai entender toda a engrenagem, como é que funciona. [Dalva]

Por último, é preciso reconhecer que a própria concepção de educação que a mídia sustenta quando trata do tema influencia no reconhecimento social dos docentes, em suas imagens e autoimagens. Essa concepção costuma ser reduzida a um saber instrumental, à preparação para o mercado de trabalho ou ao treinamento da juventude para concursos, provas e vestibulares; e, segundo Arroyo (2002, p. 194),

onde não há uma visão da Educação Básica universal, da educação como direito humano, formação, não haverá possibilidade de afirmar uma cultura profissional específica. Aí está o cerne de nosso prestígio ou desprestígio social e profissional, na visão estreita ou alargada de ensino ou de educação que afirmemos.