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Neste momento, vale retomar a questão do silêncio ou, mais precisamente, a ausência dos professores no debate público sob outro prisma. É notável o fato de que, visto de perto, o silêncio revela-se menos homogêneo: há os vetos e retaliações explícitas mas, também, há variações menos visíveis como o recuo e a busca pela invisibilidade.

Em primeiro lugar, fica evidente que o silenciamento não se trata necessariamente de apatia ou ausência de criticidade. Os professores têm, sim, posicionamentos e opiniões. No entanto, há uma fissura entre o que identificamos como debate público (Capítulo 1) e as análises que os professores fazem de questões educacionais. Confrontados com os problemas do cotidiano escolar, principalmente a indisciplina e as defasagens de aprendizagem, os docentes não evocam em suas falas as políticas públicas apresentadas e discutidas na mídia como soluções para os problemas educacionais – no momento em que esta pesquisa estava sendo produzida, eram temas frequentes na imprensa, por exemplo, a disputa pelo Plano Nacional de Educação, suas metas e seu financiamento – nenhum deles mencionados nas entrevistas. À luz dessa constatação pode-se compreender a percepção, manifestada por vários dos entrevistados, de que a sociedade não conhece a realidade da escola, e que a mídia não reflete os verdadeiros problemas educacionais.

Além desse descompasso, identificamos que o silêncio se manifesta de forma diferente a depender do contexto em que a fala é solicitada – análise que está de acordo com a contribuição teórica de Bernard Lahire, que aborda as variações disposicionais de um mesmo indivíduo em um mesmo momento de sua vida em função dos domínios e contextos em que circula.

Esse quadro teórico permite considerar as propriedades dos contextos em microssituações ou tipos de interação particular. Neste particular, ao menos três variações com relação ao processo de silenciamento puderam ser captadas na análise do material verbal registrado no âmbito desta pesquisa e precisam ser historiadas.

A primeira delas acontece quando se trata do professor ou a professora em interação com colegas na Sala dos Professores e em momentos coletivos de trabalho pedagógico, discutindo problemas de seu cotidiano ou temas educacionais mais amplos. Nesse caso, são ativadas as disposições críticas para o debate e, a depender das relações entre os docentes, para a manifestação de divergências; são vários os professores que

disseram “falar demais na Sala dos Professores”, ou “bater boca” em conselhos de

classe, por exemplo. Essas situações podem indicar a disposição identificada acima

como “recolhimento ao privado”, já que a interação com os pares, muitas vezes, é

colocada explicitamente nessa esfera, como no exemplo a seguir:

– Essas críticas que você tem, assim, a como as coisas estão, né; você

acha, que você tem onde... você costuma conversar, você costuma falar sobre, ou tem um espaço assim que você pode...

– Na escola a gente fala muito. – Na Sala dos Professores...

– Na Sala dos Professores a gente fala muito... Em casa nós

discutimos muito isso, nós falamos muito isso, eu, meu marido e os meus filhos, a gente tem esse espaço.

– Mas levar, assim, para outras instâncias?

– Nunca tive essa pretensão. Nem sei se eles vão me receber, me

ouvir. Não sei se nós seremos ouvidos. [Dalva]

Além da Sala dos Professores e momentos de reunião pedagógica, outros espaços de trocas entre colegas são identificados, como os cursos de formação continuada proporcionados pela rede de ensino. Nesses espaços, considerados como um dos poucos canais institucionais em que a troca sobre as práticas pedagógicas é possível na presença de representantes do estado, os professores veem-se em condições mais favoráveis para manifestar suas opiniões, e muitas vezes o foco das formações é desviado para os relatos e desabafos sobre os problemas do cotidiano. Questionada sobre sua participação em cursos e seminários de formação das redes em que atua, por exemplo, Dalva afirmou estar sempre presente. Não vê esses espaços, no entanto, como fóruns de debate. Caso assim fosse, julga que exporia suas opiniões acerca da atual situação do ensino público:

– E debate, assim, que você possa falar [você já participou]?

– Só se for aqui na escola, nunca num lugar que tivesse que fazer um

debate não, nunca fui; se eu tiver que falar também, eu vou meter a boca, meu marido diz que eu falo demais.

– Mas fala... Meter a boca em que sentido? Assim, de criticar...

– Eu vou falar o que eu penso, o que eu acho, entendeu. Eu tenho

saudade da escola onde o aluno vinha para aprender, que ele sentava no banquinho de escola e ele realmente aprendia, e valorizava aquilo que ele estava aprendendo.

Como segunda variação do processo de silenciamento, podemos destacar o professor ou professora em interação com jornalistas ou outros profissionais que requisitam sua opinião de forma pública. Nessas situações, há uma diversidade de comportamentos identificados. Ele/a pode manifestar insegurança com relação às próprias opiniões e declarar-se não apto/a a falar sobre o assunto requisitado; pode sentir medo de represálias (que ele aprendeu a reconhecer no decorrer de sua experiência profissional) e decidir não se pronunciar; e pode, como tem se apresentado com menor frequência, emitir sua opinião.

Por último, o processo de tornar-se pouco visível revela-se quando o professor ou professora interage com a direção ou coordenação pedagógica de sua unidade escolar. Um mesmo indivíduo pode manifestar-se de forma mais crítica ou não no ambiente profissional a depender da relação desenvolvida com os outros funcionários e o histórico dessa interação. Por exemplo, um mesmo professor relatou comportamentos diferentes em duas escolas que leciona, identificando uma instituição como mais autoritária que a outra. Sobressaem-se, ainda, as falas a respeito de um passado ainda muito vivo: o tempo em que o professor, hoje efetivo, foi eventual e sofria ameaças explícitas ou veladas por essa condição (conforme Cap. 2).

A partir do exposto, poderíamos, portanto, inferir que as condições objetivas vividas pelos professores articularam-se às suas experiências de ordem subjetiva. Foram mapeadas, assim, as condições de possibilidade para a formação de disposições e/ou predisposições para o silêncio e o recolhimento ao âmbito privado.

Contudo, como este se trata de um fenômeno dinâmico, esses mecanismos não acontecem de forma linear. É um processo marcado por tensões e conflitos, a exemplo

do que acontece na construção das identidades pessoais e profissionais – em que, neste caso, os sujeitos rejeitam parte da identidade atribuída na tentativa de reivindicar outra, mais valorizada. Submetidos a essas condições, que hoje se traduzem em um processo de estigmatização, os professores desenvolvem estratégias de autodefesa e preservação de sua autoimagem, o que pode significar fechar-se entre seus pares e evitar a exposição pública por meio de uma imprensa que, hoje, é também responsável pela perpetuação do estigma.

Em síntese, recuperando brevemente as ideias centrais do capítulo, conseguiu-se identificar e analisar como a dialética do social – ou seja, a interiorização, objetivação e exteriorização da realidade –, realizou-se nos casos aqui estudados. Dessa maneira, foi possível revelar como uma realidade objetiva, construída de maneira desfavorável à imagem do professor, articulou-se de maneira oculta, porém insidiosa, na formação de suas identidades, bem como nas diferentes maneiras de expressarem um silêncio.