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Como já dito, meu trabalho de campo não se restringiu ao PA Formosa ou ao futuro PA Alto

Bonito. Para a descrição etnográfica de diferentes eventos, acompanhei dirigentes da Associa- ção Padre Josimo em diversas ocasiões. Sempre que avisada – na paradinha para o cafezinho

da Lavínia – fui com eles à Araguaína a fim de participar de reuniões no escritório regional da

CPT. Apesar de alguma resistência dos meus parceiros do MAB e da própria CPT – não é sempre

que etnógrafas são bem-vindas,57 consegui acompanhar um dos dirigentes numa viagem à Bra- sília para participar de reuniões com autoridades e técnicos do governo federal no Incra e no Ibama.

Não acompanhei apenas dirigentes, nem me limitei a documentar eventos visíveis e formais, no entanto. Do início de agosto ao início de outubro de 2010, fui e voltei à Ribeira de carona no ônibus escolar ou no ônibus que um assentado novato comprara para explorar a linha do assentamento àquela sede municipal. O ônibus que a prefeitura local cedia para os assentados fazerem compras na cidade uma vez por semana já tinha sido retirado pelo prefeito, talvez um efeito da notícia de que essas pessoas teriam que sair do assentamento antes do final daquele ano, deixando assim de serem eleitoras potenciais naquela jurisdição.58

Por decisão dos próprios assentados, não se construiu uma agrovila no PA Formosa.

As distâncias entre as casas das famílias que deixariam compulsoriamente o assentamento

56 Sua referência foi aos outros onze assentamentos do Incra afetados pela construção da barragem. 57 Retornarei a essa questão mais adiante.

58 Dezembro de 2010 era o prazo máximo planejado pelo Consórcio Ceste para a conclusão das obras de en- genharia e o fechamento das comportas da usina, dando início ao enchimento do reservatório. Esse prazo foi de fato respeitado, independentemente dos custos sociais dessa decisão, é claro.

variavam de cerca de 2 a 18 km. O percurso a pé, no areão e sob o sol, sem a certeza de que encontraria alguém em casa e correndo o risco de encontrar embriagados inconvenientes no trajeto tornaram os 45 km que separavam o assentamento da Ribeira uma possibilidade atraente para viver a intimidade do encontro etnográfico. Conversando e sacolejando no caminho, co- nheci mulheres casadas que estudavam na cidade, consegui mapear os grupos de famílias apa- rentadas no assentamento e aparentemente ganhei a confiança de alguns viajantes. Vi(vendo) a

luta, como uma vez sugeriu Dona Lavínia.

Antes da marcha, em agosto de 2010, comecei uma série de entrevistas semiabertas com as poucas pessoas que permaneciam no assentamento. Já três anos e sete meses proibidas de abrir novos roçados àquela altura, à medida que a criação e o gado iam sendo comidos ou vendidos, as famílias que não podiam contar com aposentadorias rurais ou que não conseguiam se sustentar apenas com a quantia recebida do Programa Bolsa Família lançaram mão das suas redes de solidariedade para sobreviver – parentes e ex-vizinhos e amigos localizados bem além dos limites do PA Formosa. As cestas que o MAB recebia do Ministério do Desenvolvimento

Social e Combate à Fome (MDS) para distribuição entre grupos afetados pela barragem só muito

raramente alcançaram o assentamento naquele ano.59

Nessas entrevistas, tive pela primeira vez acesso às diferenças sutis de posiciona- mento dos assentados quanto às negociações com o Consórcio Ceste. Até então, uma frustração importante que experimentava na condução da pesquisa era a certeza de que estava tratando as pessoas no PA Formosa como uma “comunidade moral” (Scott, 1976) ou como um sujeito po-

lítico – os assentados que insistiam em resistir ao poder de grupos industriais transnacionais e de setores poderosos do Estado. Mas diante do sentimento de privação – quase palpável entre os entrevistados – alguns já começavam mesmo a achar que a Diretoria estava sendo intransi- gente demais com o consórcio e criticavam a quebra da “etiqueta” que deveria ser seguida nas reuniões de negociação, dizendo que não gostavam de bate boca, porque falar agressivo não

resolve questão. Essas pessoas pareciam não saber com quem se aliar, quem enfrentar.60

59 Desconheço que critérios eram usados na distribuição, mas soube e ao final da marcha vi que sacas de fei- jão e farinha eram repassadas para as pessoas que permaneciam no acampamento organizado pelo movi- mento social em julho de 2009, cerca de 1km de distância da entrada do canteiro de obras da UHE Estreito, no Município de Estreito.

60 Recentemente li um artigo da antropóloga Clarice Cohn (2010) relatando sua experiência com os índios Xikrin na Terra Indígena Trincheira-Bacajá, confrontados com a construção da mega-hidrelétrica de Belo Monte, em processo de licenciamento ambiental então. As angústias por ela relatadas são muito semelhan- tes às que experimentei no período de trabalho de campo entre agosto e outubro de 2010, quando o desloca- mento das famílias no PA Formosa estava para ser realizado em pouco tempo.

Embora eu fosse considerada de confiança, já que entrara pela primeira vez no PA Formosa por

meio do MAB-TO e sobretudo da CPT, percebi hesitação em algumas delas nos momentos em

que a entrevista ultrapassava os dados biográficos do titular do lote e de seu cônjuge, quando era o caso, ou a trajetória da família. Àquela altura, três meses para o fechamento das comportas da usina, alguns entre os poucos que permaneciam todo o tempo no assentamento tinham dúvida sobre o que expressar e a quem manifestar seu descontentamento. Poderia a pesquisadora levar suas reivindicações para alguém grande que pudesse ajudar a garantir os direitos, a indeniza- ção pelas benfeitorias? O Ministério Público, explicavam, está de braço amarrado já, começou

a perder força com a Casa Civil. Todos contavam com o pagamento das indenizações para

poderem saldar suas dívidas no comércio na Ribeira e retomar suas atividades produtivas no novo assentamento.

Tinham cumprido o acordo feito com o Consórcio Ceste, autorizando a entrada de topógrafos contratados para realizar a demarcação da linha d’água do reservatório da usina, tal como haviam combinado com um representante do consórcio numa reunião realizada em 14 julho de 2010, a última com a presença do Diretor de Obtenção de Terras e Implementação de Assentamentos do Incra. Além disso, todos os que seriam retirados do assentamento já tinham assinado o termo de adesão à opção “reassentamento rural coletivo”, tudo conforme acertado na reunião, que teve a mediação do Ministério Público Federal (MPF-TO). No entanto, os valo-

res das avaliações das suas benfeitorias tinham sido retidos na Justiça Federal em razão da Ação de Desapropriação ajuizada pela Alcoa Alumínio S.A. contra os responsáveis pelas parcelas e chefes de famílias de agregados que perderiam sua terra de trabalho e moradia.

Além disso, a estratégia usada pelo consórcio para quebrar a resistência dessas pes- soas parecia começar a render frutos. Inicialmente, os moradores de dois dos cinco pequenos povoados vizinhos ao assentamento – Brejão e Mato Verde – juntaram-se à Associação Padre Josimo a fim de negociar coletivamente a reparação das suas perdas, inclusive a indenização pela terra. Ante a inexorabilidade da obra e ao poder do consórcio na região, depois de dois anos na luta, as famílias aceitaram deixar os povoados em troca de cartas de crédito ou do acordo para permanecerem nas áreas remanescentes de suas terras, desde que indenizadas as suas perdas materiais.

Em alguns dos municípios que perderam áreas rurais e urbanas com a formação do reservatório, o consórcio construiu novas sedes para batalhões da polícia militar, fóruns de jus- tiça e até novos prédios para a prefeitura municipal. Isso fez a população afetada pela usina

ainda mais descrente quanto à possibilidade de procurar os direitos na justiça. Embora todos nesses povoados se considerassem donos, por oposição aos assentados, nunca tinham tentado a titulação das terras que ocupavam tradicionalmente. Ameaçadas pelos empregados do consór- cio de serem expropriadas sem qualquer compensação pela terra nua – empregados que acio- navam com maestria os mecanismos usuais de poder nesses casos, ameaças e rumores –, as famílias terminaram por aceitar cartas de crédito. A maioria avaliou positivamente a transação. Algumas compraram terras não muito distantes da beira do lago e já começavam a recompor as suas atividades produtivas. O esvaziamento desses povoados solapava aos poucos a determina- ção de alguns dos chefes de família no PA Formosa de ficar na luta. Eles atribuíam o sucesso relativo dos seus vizinhos ao fator sorte, que uns têm outros não, já que sabiam de outros pos- seiros que tinham sido retirados à força dos seus povoados sem receber qualquer compensação. Arriscar a sorte, entretanto, já parecia atraente diante da situação em que se encontravam e do medo e vergonha que alguns antecipavam sentir, caso viessem a apanhar da polícia na frente

dos filhos ou netos.

Minha ida ao PA Formosa em agosto daquele ano pode ter contribuído para conter

o esmorecimento dessas pessoas. Antes de partir para o Tocantins, decidi passar por Brasília para uma visita à Diretoria de Obtenção de Terras e Implantação de Assentamentos do Incra. Na ocasião, soube que as casas no novo assentamento já estavam em construção. Quando en- contrei com dois dos três diretores da Associação Padre Josimo em Araguaína, no dia mesmo em que cheguei à cidade, perguntei a eles se já tinham visitado essas obras. Elpídeo e Samuel ficaram perplexos com a notícia de que o consórcio decidira construir as casas sem que os casais ou chefes de família fossem consultados sobre o local onde elas deveriam ser erguidas nas parcelas. A própria divisão definitiva das parcelas ainda era desconhecida por todos no PA For-

mosa – Diretoria e povo! Já no assentamento, eles pediram que eu fosse com eles vistoriar as obras para filmar as casas em construção, de modo que todos no assentamento pudessem vê- las.

No nosso retorno, cada um que me pedia para mostrar as filmagens ficava seduzido com o que via – casas novas, pintadas, com banheiro dentro e um compartimento separado que poderia servir de galpão, ainda que muito pequeno. A indignação com a decisão do consórcio de levar adiante as construções sem consulta prévia permanecia, contudo. Eles nos tratam feito

bicho bruto, querem remanejar a gente como se remaneja porco – o sentimento de desrespeito

as casas destinadas às famílias de agregados foram erguidas bem próximas umas das outras. Todos anteciparam os problemas que enfrentariam com vizinhos, afinal as cercas não tinham sido construídas e ninguém sabia se um dia seriam. Ainda que fossem, nada impediria que a pequena criação de uns invadisse a horta ou os roçados de outros. Mesmo assim, pareceu que o

sofrimento da luta era percebido como recompensado com a certeza da conquista da terra e das

casas. Até os mais atormentados pela dúvida, como Seu Paulo Augusto, quando viam as foto- grafias das casas comentavam com orgulho que só no PA Formosa tinha ficado todo mundo, nos outros [assentamentos e povoados] era tudo resto, pouca gente [resistindo à pressão para

aceitarem carta de crédito].

Funcionários do consórcio acompanharam oficiais de justiça quando da entrega da inicial para que os interessados no assentamento se manifestassem nos autos do processo mo- vido contra eles pela Alcoa Alumínio S.A. e as demais empresas reunidas no Consórcio Ceste. Na ocasião, ameaças foram renovadas – ou deixavam o assentamento antes do final das obras civis no novo assentamento ou sairiam despejados com ordem judicial e uso da força policial. A dúvida logo assomou novamente nos rostos das pessoas e o medo, filho da dúvida, provocou ainda mais em mim um enorme sentimento de impotência.

FIGURA 9: Samuel (esq.), um dos três líderes da Associação Pe. Josimo, e Pedrinho, corretor independente, vis-

FIGURA 10: Fachada principal da casa. Lote 50, agosto de 2010

Quando decidi estudar um encontro de interesses aparentemente antagônicos em torno da instalação de uma hidrelétrica de grande porte, um dos meus interesses foi entender o modo como esse encontro era vivido pelos trabalhadores atingidos antes e depois do seu deslo- camento compulsório. Que significados ele portava para essas pessoas e quais os efeitos desse encontro nas suas vidas (cf. MARQUES, COMERFORD e CHAVES, 2007, p. 34)? Dois pressupostos

estiveram sempre subjacentes a essas preocupações. Em primeiro lugar, como já dito, o de que o curso dos acontecimentos, nos casos dos grandes projetos de barragem, “depende não apenas da decisão de geração de energia, mas das relações reais que se estabelecem entre as empresas, a população e os grupos de interesse” (SIGAUD, 1992, p. 25). Em segundo, o de que esse curso depende também do modo como estão estruturadas as relações dos segmentos sociais afetados e dos universos de valores que dão sentido a essas relações (REIS, 1996, p. 595). Daí a impor- tância de se compreender as diversas formas de sociabilidade e solidariedade locais, o modo como o projeto é implementado e como são estabelecidas as relações entre os responsáveis pelo empreendimento, as populações afetadas, seus aliados e outros interessados no projeto. Numa investigação socioantropológica essa compreensão passa pelas percepções, ações e representa- ções dos nossos interlocutores no campo. Um medo, desta vez meu, assombrou meu trabalho de campo por muito tempo, cada vez que eu tentava articular os resultados parciais da pesquisa, a advertência do sociólogo Loïc Wacquant reverberava. Ele diz:

And the task of social science, ethnography included, is not to exonerate the character of dishonored social figures and dispossessed groups by “documenting” their

everyday world in an effort to attract sympathy for their plight. It is to dissect the social mechanisms and meanings that govern their practices, ground their morality (if such be the question), and explain their strategies and trajectories, as one would do for any social category, high or low, noble or ignoble. (WACQUANT, 2002, p. 1470)

Wacquant foi irrepreensivelmente criticado pela antropóloga Claudia Fonseca (2006, p. 23-30) por suas representações de vidas nos guetos negros em Chicago que homoge- neizam a variedade de pessoas e deixam de mostrar “a pluralidade de visões e as ambiguidades vividas por alguns moradores” (ibid., p. 28). Mas no trecho citado acima, ao contrário, ele ad- verte quanto aos riscos do deslizamento da moralidade para o moralismo e do descolamento entre a análise e os dados etnográficos.

A correlação positiva entre o deslocamento forçado e o empobrecimento das pes- soas que vivem essa experiência é amplamente demonstrada por etnografias que tratam das implicações sociais da política de geração da indústria de eletricidade brasileira desde os anos 70. Aparentemente, as mudanças de contexto social e político no país desde os anos 80 em quase nada alteraram o conjunto de procedimentos que repercutem negativamente nas vidas das populações afetadas por barragens (cf. SIGAUD; MARTINS-COSTA; DAOU, 1987; SIGAUD, 1996; ALMEIDA, 1996; VIANA, 2003; PINHEIRO, 2006; MAGALHÃES, 2005, 2007). Num curso de lei- tura com o professor Carlos Rodrigues Brandão, ainda em 2009, lembro de ter dito a ele que não queria que minha tese fosse recebida como um “inventário de perdas” de atingidos por barragem. Concordo com Claudia Fonseca: é tentando levar o leitor para dentro das vidas das pessoas cujas vidas estudamos que podemos realizar a denúncia das condições injustas que elas enfrentam.

Muito mudou no meu relacionamento com essas pessoas ao longo do trabalho de campo. Algumas ficaram bem próximas e com elas vivi com certeza experiências de amizade. Outras se distanciaram, talvez pensando a pesquisadora como parecem pensar seus assessores na CPT – em geral, os agentes de pastoral são atentos para os casos de trabalhadores que perse-

guem invariavelmente seus interesses egoístas. Se eu tiver alcançado ao menos esse objetivo de levar o leitor para dentro das vidas de umas e de outras neste estudo empírico, terei cumprido boa parte da tarefa a que me propus.