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No meu exame de qualificação, um dos examinadores se mostrou preocupado em relação à entrevista que realizei com o Diretor de Obtenção de Terra e Implementação de Projetos de Assentamento do Incra. Pertinente, sua preocupação era que meu relato etnográfico pudesse causar prejuízo ao agente público.

A antropóloga Ciméa Bevilaqua reflete sobre o problema da identificação dos in- formantes quando o foco do trabalho de campo etnográfico centra nas instituições e processos relativos à esfera pública (estatal, acrescento). Ela trata especificamente das implicações meto- dológicas e éticas envolvidas em pesquisas que se inserem no campo de estudos em consolida- ção no Brasil (cf. SOUZA LIMA, 2008), a antropologia do Estado.71 Aí, são observadas interações

70 Por prestígio pessoal entenda-se principalmente a situação mais bem “organizada” da família daquela ou daquele que participa ativamente das assembleias e reuniões com agentes externos. Estar bem organizado, nos termos locais, significa ter progredido, ser uma ou um membro de uma família entre as “melhorzinhas de condições”. Por certo, não há necessariamente oposição entre a participação ativa de mulheres em reuni- ões públicas e seu estatudo subordinado nas famílias de trabalhadores do campo no Brasil.

71 Ver Beviláqua, Ciméa B. “Etnografia do Estado: algumas questões metodológicas e éticas” (2003), artigo publicado na Revista Campos, publicação do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Uni- versidade Federal do Paraná (UFPR).

que dizem respeito à interlocução entre funcionários do Estado e cidadãos e maneiras de ser e de agir de agentes públicos estatais, problematizadas. Não raro, a ação, a omissão ou (co)missão de políticos conhecidos, autoridades governamentais, magistrados e funcionários públicos gra- duados são iluminadas. Ora, pondera a autora, se tudo que antropólogas conseguem captar do funcionamento do Estado (de qualquer fato observado) passa necessariamente pelas experiên- cias concretas dos sujeitos envolvidos nas suas pesquisas, a identificação dos nossos informan- tes nos seus relatos etnográficos pode, sim, acarretar-lhes prejuízo, bem como àqueles a quem seus depoimentos se referem. Assim, a opção pelo anonimato tem sido regra geral e unânime na chamada ‘antropologia das sociedades complexas’, ela conclui (ibid., p. 54).

É justamente a adoção mecânica desse procedimento quando estudamos processos e instituições relativos à esfera pública que a antropóloga questiona a partir da sua própria ex- periência de pesquisa junto a agências de proteção ao consumidor no Estado do Paraná. No artigo, quatro episódios são apresentados envolvendo “condutas ilícitas ou moralmente contro- vertidas de autoridades públicas” (ibid., p. 55) que continuam vivas e ativas na vida pública. Alguns ela conhece por depoimentos de indivíduos envolvidos nos eventos, outros por meio da observação direta. Adotar nomes fictícios nas etnografias para proteger informantes e autorida- des acusadas nesses casos é ineficaz, mostra Beviláqua. Pela época em que os eventos ocorre- ram e o cargo que ocupavam, as autoridades assim expostas poderiam ser reconhecidas até mesmo por um leitor desatento que tivesse alguma familiaridade com o contexto local (ibid., p. 56).

Quando os eventos relatados ocorrem na esfera pública, são de conhecimento pú- blico e incluem condutas irregulares de autoridades públicas, lembra-nos a antropóloga, é pos- sível fazer referência a eles pela mediação de outras fontes: documentos, notícias veiculadas na mídia impressa ou televisiva etc. Mas interessa aqui comentar a condição de observação do segundo grupo de eventos que exemplificam o dilema ético colocado às antropólogas – a ob- servação direta de eventos ocorridos na esfera pública nos quais altos representantes do poder público agiram irregularmente no exercício de suas funções. Para Beviláqua, nos casos de con- flitos nascidos no mercado de consumo como os que ela pesquisa, especialmente os que culmi- nam com a intervenção de uma ou mais instituições estatais de defesa do consumidor, não é possível contemplar ao mesmo tempo perspectivas antagônicas, isto é, a dos consumidores e a da instituição contestada. Aí, assumir a perspectiva dos consumidores torna “essencial manter o anonimato diante dos demais protagonistas para que a observação possa se realizar

adequadamente, sem mencionar a do adversário na disputa” (ibid., 59). A autoridade faltosa não se comportaria da mesma maneira sabendo-se participante da pesquisa etnográfica. E pro- teger sua identidade apenas comprometeria a inteligibilidade do relato e o desenvolvimento da análise, conclui Beviláqua. Nesse sentido, ela coloca a questão: “seria ético incorporar à etno- grafia um material obtido pela observação anônima, mas que permite a identificação dos sujei- tos observados e implica danos potenciais à sua reputação?”. Penso que não, mas um não qua- lificado.

No contexto da minha pesquisa, outra questão se coloca. Como justificar a obser- vação anônima para os trabalhadores sujeitos da investigação à luz de cujos sentimentos, ex- pectativas e aspirações tento conhecer aspectos do funcionamento da máquina estatal num mo- mento histórico específico?

Entrevistei dois altos funcionários do Estado durante o trabalho de campo. Ambos tinham conhecimento prévio da minha pesquisa. Entrei em contato com o Diretor de Obtenção de Terras do Incra tão logo soube de sua ida ao PA Formosa para a reunião de janeiro de 2010.

Enviei previamente à sua assessoria uma mensagem eletrônica de apresentação, à qual anexei uma cópia do meu projeto de pesquisa e solicitei a entrevista no assentamento. De todo modo, ainda que eu tivesse tentado manter o anonimato, teria sido frustrada. Logo na abertura da reu- nião, Adelino, o presidente da Associação Padre Josimo, agradeceu a presença de todos, em particular das autoridades, o diretor do Incra e seus assessores, o procurador da República e seus assessores técnicos, e a companheira Neila, pesquisadora vinda de S. Paulo, que estava

ali registrando o evento com seus gravadores! A observação anônima aí apenas suscitaria dú-

vida nos trabalhadores a respeito do partido que eu tomava na sua disputa com o Consórcio Ceste.

De qualquer modo, estou certa de que o uso que faço neste trabalho das falas das autoridades entrevistadas e, antes e principalmente, observadas exercendo suas funções, não poderá em qualquer circunstância lhes causar prejuízo. A tática de não as identificar por seus nomes próprios, de outro lado, seria inócua pelas razões que apresento abaixo. Por fim, como lembra Beviláqua, sempre seria possível ao leitor interessado identificar cada um desses funci- onários do Estado pela época e os postos que eles ocupavam no sistema estatal no momento das nossas entrevistas.

Durante o trabalho de campo, uma única vez pensei que poderia ter adotado outra atitude diante de agentes públicos. No caso, assessores técnicos da Diretoria de Licenciamento

Ambiental do Ibama (Dilic). Trata-se de uma situação em que não tive oportunidade de me apresentar e apresentar minha pesquisa a todos os participantes, especialmente aos agentes pú- blicos, antes de iniciada a reunião que documentei – uma reunião realizada na sede do órgão ambiental em Brasília, em setembro de 2010, um dos resultados da marcha “Terra, Água e Direitos”. Meu desconforto deveu-se a uma intervenção que fiz na reunião, da qual participou um grupo de representantes de diferentes categorias de trabalhadores do campo atingidos pela UHE Estreito, liderados por Cirineu e assessorados por um integrante da Coordenação Nacional do MAB,Joceli Andrioli.

Nessa ocasião, barraqueiros que exploravam a temporada de verão nas praias do rio Tocantins questionaram a decisão do Consórcio Ceste de não os indenizar tal como constituídos antes do alagamento das praias. Depois da construção de praias artificiais, o consórcio decidira delegar aos prefeitos municipais pertinentes a prerrogativa de distribuir as novas barracas er- guidas. Nada garantia, segundo o conhecimento daqueles trabalhadores de como decisões são tomadas por governantes locais na região, que aqueles que de fato foram prejudicados com a construção da usina fossem compensados; nada obrigava os prefeitos a fazê-lo. Assim, os bar- raqueiros pediam a intervenção do Ibama no assunto. Aparentemente refratários diante da co- brança, os assessores da Dilic repetiam impassíveis que a exigência da construção de novas praias tinha sido cumprida, nada acrescentando sobre o que de fato movia os reclamantes.

Depois de sucessivas repetições, decidi interromper o que já me parecia uma ‘con- versa de surdos’ e um pouco exaltada enumerei os obstáculos à influência dos trabalhadores barraqueiros nas decisões governamentais na esfera local – a centralização de processos de to- mada de decisão e as práticas políticas comuns nos municípios brasileiros, talvez até mais resi- lientes nos pequenos municípios do Nordeste e do Norte, destacando a centralidade das relações clientelistas na cultura política tradicional em municípios de todas as regiões do país, a prática da distribuição de favores e benefícios no interior dos “currais eleitorais” das elites governan- tes.72 Diante do meu gesto inquietador de apontar o descaso, como a criança que apontava “o

rei nu”, uma assessora técnica da Dilic deixou a reunião digitando um número no seu telefone celular. Cerca de vinte minutos depois da ligação, um representante da Secretaria Geral da

72 A identificação sociopolítica e cultural do Tocantins com estados nordestinos é enfatizada pela historiogra- fia oficial tocantinense, a imprensa regional, elites regionais e locais e também pela população do Bico do Papagaio (Cf. Arbués, Margareth P. A Migração e a Construção de uma (nova) Identidade Regional:

Gurupi (1958 – 1988). In: Odair Giraldin (org.), A Transformação Histórica do Tocantins, UFG 2. ed. 2004, pp. 394-442.

Presidência da República (SGPR) entrou na sala da reunião. Sua participação era mesmo espe-

rada por todos desde o princípio, mas me pareceu que a assessora tinha ido certificar-se de que ele estava a caminho. Essa impressão foi compartilhada pelos coordenadores do MAB alipre-

sentes, Cirineu e Joceli.

Confrontados e sem argumentos, os representantes da Dilic recorreram não àqueles que davam corpo ao centro de poder efetivo de onde emanavam as decisões que pareciam nor- tear a elaboração de seus pareceres técnicos e a avaliação das suas condutas como servidores do principal órgão executor da política ambiental nacional – a Casa Civil da Presidência da República –, mas sim àqueles que davam existência ao órgão responsável pela consolidação das negociações (nos diferentes sentidos do termo) do governo Lula com os movimentos sociais de luta pela terra, o MST e o MAB, principalmente. É o que salientam as declarações do histori- ador e ex-ministro do Desenvolvimento Agrário, Afonso Florence, hoje deputado federal,73 e do deputado estadual gaúcho Altemir Tortelli (PT), membro do conselho político da Fetraf- Brasil, a Federação Nacional dos Trabalhadores e Trabalhadoras na Agricultura Familiar. Numa entrevista concedida ao jornal Valor Econômico sobre a Reforma Agrária e a relação do MDA

com movimentos sociais do campo, já no governo da presidente Dilma Rousseff, Florence disse:

Há mecanismos regulares de mediação isonômicos. Os movimentos sociais de luta pela terra e da agricultura familiar encontram no MDA e no Incra mecanismos perma- nentes de mediação. Além disso, a presidenta Dilma determinou a consolidação dos processos de negociação, em todas as áreas, sob a coordenação da Secretaria-Geral da Presidência, do ministro Gilberto Carvalho. A pauta dos movimentos contém muitos itens de responsabilidade de outros ministérios. Não é só terra (grifo meu).

Perguntado pelo jornal se isso não esvaziaria o MDA, o ministro respondeu:

Pelo contrário. O papel do MDA é executar a política pública da reforma agrária e da agricultura familiar, e não negociar com os movimentos. Essa é uma função funda- mental, mas não é atribuição legal da política pública que nós temos. A mediação é da Secretaria-Geral, como o ministro Luiz Dulci já fazia [no governo Lula]74 (Valor Econômico, 22/06/2011, E1].75

73 Ligado à corrente Democracia Socialista do PT, Florence esteve à frente do MDA entre janeiro de 2011 e março de 2012.

74 Luiz Dulci foi ministro-chefe da SGPR durante todo o governo Lula, substituído em janeiro de 2011 pelo ministro Gilberto Carvalho, à frente da Secretaria até janeiro de 2015.

75 Citado pelo geógrafo e professor Ariovaldo Umbelino de Oliveira no artigo “A aquisição de terras por es- trangeiros no Brasil – um retorno aos dossiês” (2010, p. 94). O grifo no início da resposta à segunda per- gunta ao ex-ministro, da segunda frase até a frase “mas não é atribuição legal da política que nós temos” é do geógrafo. O restante é meu.

Já Altemir Tortelli, falando ao Valor Econômico sobre a relação do MDA com movimentos de

luta pela terra e apoio à agricultura familiar, declarou:

A relação entre os movimentos do campo e o ministério é tensa. Algumas organiza- ções, como o MST, têm buscado auxílio direto no Palácio do Planalto, com o ministro Gilberto Carvalho, como forma de acelerar o atendimento de suas demandas. Se o MDA não se impõe, o espaço vazio fica. Se o ministro não avança, a gente procura outro. Quando o Rossetto76 não conseguia, a gente procurava o Zé Dirceu. Se esperar sentado, e não der "peitada", não abre as portas. Se o santo não resolve, a gente pede pro anjo falar com Deus (Valor Econômico, 04/11/2011).77

Nos capítulos III e IV retornarei à relação “governo federal-movimentos sociais” nos dois mandatos presidenciais de Lula. O que quero destacar aqui é que meu desconforto com relação à minha conduta na reunião com os assessores técnicos da Dilic deveu-se ao fato de eu apenas ter participado do ritual de apresentações que em geral inicia reuniões de movimentos sociais e comitivas de trabalhadores com agentes públicos. Exceto por esses assessores e, de certa forma, pelo juiz federal que presidiu as audiências de conciliação entre o Consórcio Ceste e as trabalhadoras e trabalhadores deslocados doPA Formosa, todos os participantes dos eventos registrados em áudio e/ou vídeo ou através de anotações no meu caderno de campo tinham conhecimento prévio da natureza da minha pesquisa. Mais importante: nenhum ignorava meu posicionamento quanto aos interesses em tensão na situação concreta da implantação da UHE

Estreito, nem tampouco que seria impossível uma entrada nessa situação pelos dois lados. Re- jeito, como muitos cientistas sociais, a possibilidade da adoção de uma atitude neutra ou im- pessoal diante da oposição entre, de um lado, trabalhadores assentados e ameaçados pelo des- locamento forçado e, de outro, um consórcio de grandes grupos econômicos, inclusive um grupo brasileiro beneficiado por um forte processo de centralização e concentração de capital promovido pelo governo federal. Não há como cientistas sociais desconsiderarem que conduzir uma investigação entre trabalhadores do campo ameaçados de perder a posse da terra em que moram e produzem implica ter a experiência do seu sofrimento. Isso, por seu turno, como bem coloca Michael Herzfeld (2011),78 implica tomar posições e por vezes fazer intervenções base-

adas no conhecimento que adquirimos e na afeição que sentimos a partir dessa experiência.

76 Miguel Rossetto foi ministro do Desenvolvimento Agrário entre janeiro de 2003 e março de 2006. Em ja- neiro de 2015, ele assumiu o cargo de ministro-chefe da SGPR,substituindo Gilberto Carvalho.

77 Disponível para assinantes em: http://www.valor.com.br/politica/1082284/movimentos-sociais-criticam- ministro. Acesso em: 25 jan. 2013.

78 Na entrevista concedida à iniciativa do antropólogo britânico Alan Macfarlane, Filmed Interviews with Lea- ding Thinkers. Disponível em: http://www.sms.cam.ac.uk/media/1296870. Acesso em: 22 set. 2012.

Por último, quanto ao uso das falas do diretor do Incra e dos técnicos do Ibama nesta tese, entendo que não corro risco de quebrar o compromisso ético que deve existir entre antropólogas e os sujeitos de suas pesquisas, pois elas refletem posições conhecidas e ampla- mente difundidas nos níveis subordinados do aparelho estatal brasileiro, pouco ou nada privi- legiados pelos sucessivos governos liberais e trabalhistas nas duas últimas décadas, como o Incra, o Ibama e a Funai.

2. Ah, mas o meu sonho é a terra!