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Conduzir é levar para um outro lugar. É profanar a realidade e suspender o que prende as crianças a ela. Significa assim fazer a transição de sua condição de criança, que conhece apenas a sua realidade vivida, para a condição de aluno, entrando em um processo de desvendar os mistérios do mundo. Mas é preciso enfatizar: como na dança de salão, que exige mais de uma pessoa disposta a dançar, na educação é preciso mais de uma pessoa disposta a conhecer.

Assim, pode-se afirmar que a educação exige cumplicidade para andar junto em um mesmo caminho e um bom nível de afeto, de entrosamento, de interesse.

Esse interesse deve ser criado pelo professor, assim como na dança, onde o dançarino/condutor, pela maneira majestosa com que se envolve com a música, coloca o outro em interesse. O convida a dançar junto. O condutor, nesse caso, cria a oportunidade para que o interesse nasça no outro sujeito. Do mesmo modo, o educador, ao mostrar aos seus alunos sua relação com os conteúdos de ensino, seu amor e dedicação para com eles, oferece às crianças um tempo que chama para o interesse, e essa é uma das nossas responsabilidades: “estimular o interesse, e isso significa conceder autoridade às palavras, às coisas, e às maneiras de fazer as coisas que estão fora de nossas necessidades individuais e que ajudam a formar tudo o que é partilhado “entre nós” no nosso mundo comum” (MASSCHELEIN; SIMONS, 2015, p. 101-102). Para cumprir com essa responsabilidade é preciso ter clareza de que só se pode criar interesse pelo mundo comum mostrando seu próprio amor por esse mundo, como nos indicam Masschelein e Simons (2015, p. 102).

Exige-se, assim, do condutor/educador um esforço em suscitar o desejo de conhecer em seu aluno, e que a ele solicite cumplicidade, pois sem esse pressuposto será muito difícil, para não dizer impossível, que a atenção para conhecer o mundo aconteça. Além da cumplicidade, a confiança também se faz necessária, uma vez que as crianças não sabem por que estão aprendendo, ou o que esses conhecimentos representam para sua vida. Como lhes pedimos disciplina e atenção, elas poderão ver o educador como um tirano, culpando-o por sua “infelicidade”, alegando que tal esforço é entediante – principalmente porque são crianças e gostariam de passar a maior parte do tempo brincando. Há uma passagem de Savater (2012, p. 90) que reflete muito bem essa questão:

O neófito começa a estudar em certa medida à força. Por quê? Porque lhe é pedido um esforço, e as crianças só se esforçam voluntariamente naquilo que as diverte. A recompensa que coroa o aprendizado é demorada e, além do mais, a criança só a conhece de ouvir falar, sem entender muito bem do que se trata. Os estudos são alguma coisa que interessa os adultos, não a ela. Não é que as crianças não desejem saber, mas sua curiosidade é muito mais imediata e menos metódica do que o necessário para aprender [...].

Justifica-se por esse pensar a necessidade de que haja cumplicidade entre ensinante e aprendente para que a confiança desse elo torne possível a educação, para que o aluno confie que, por mais que esse esforço hoje lhe pareça perturbador, sem dúvidas ele apresentará um ganho no futuro. Como escreve Boufleuer,

A qualidade da ação pedagógica não pode ser confundida com uma satisfação imediata por parte do aluno. Este, geralmente, só mais tarde tem condições de fazer uma boa avaliação do trabalho docente, quando é capaz de reconhecer, por exemplo, que valeu a pena ter tido determinadas aulas, que valeu a pena o investimento e esforços feitos (2013, p. 109).

Quando os alunos conseguirem fazer essa reflexão, de que suas aprendizagens em situação pedagógica lhe trazem conhecimentos que permitem compreender mais e melhor o mundo, ou seja, quando reconhecerem que todo conhecimento é valido, o professor terá cumprido com sua tarefa suicida, de se tornar indispensável para seus alunos. O professor, diante dessa situação, poderá dizer que contribuiu com a formação de sujeitos pensantes em sintonia como uma objetividade do mundo, capazes de compreender as diferentes manifestações culturais, sociais e econômicas que constituem a vida humana, e de refletir criticamente sobre elas.

A formação, nesse sentido, envolve “sair constantemente de si mesmo ou transcender a si mesmo – ir além do seu próprio mundo da vida por meio da prática e do estudo” (MASSCHELEIN; SIMONS, 2015, p. 49). E é para esse ir além que conduzimos nossos alunos para leva-los a um outro patamar, diferente de suas realidades vividas. Mas isso somente se torna possível à medida que libertamos para eles os conhecimentos acerca do mundo, à medida que colocamos algo na mesa, quando oferecemos algo que desperte o interesse deles:

É algo que começa a formá-lo, produz mudanças nele, muda a maneira como a sua vida e o mundo realmente aparecem para ele e lhe permitem começar de uma nova forma “com” o mundo [...] o próprio mundo é tornado aberto e livre e, portanto, compartilhado e compartilhável, algo interessante ou potencialmente interessante: um objeto de estudo e de prática (MASSCHELEIN; SIMONS, 2015, p. 50-51).

4 O AGIR DA ESCOLA PAUTADO NO PRINCÍPIO DA IGUALDADE: UNIVERSALIZAR É PRECISO

“Só voltando à raiz comum que nos faz parentes, nós, os seres humanos, poderemos ser hóspedes uns dos outros, cúmplices de necessidades que conhecemos bem, e não estranhos encerrados na fortaleza inacessível de nossa peculiaridade”.

Fernando Savater em O Valor de Educar defende que o ideal básico que a educação atual deve conservar é promover a universalidade democrática, e isso significa, na educação,

(...) colocar o feito humano – linguístico, racional, artístico – acima de seus modismos; avaliá-lo em seu conjunto antes de começar a ressaltar suas qualidades locais, e sobretudo, não excluir ninguém a priori do processo - educacional que o potencializa e desenvolve (2012, p. 143).

Universalizar a educação, nesse sentido, consiste em terminar com todas as manobras discriminatórias, e embora que as etapas mais avançadas de ensino possam ser seletivas, “o aprendizado básico dos primeiros anos não deve ser recusado a ninguém, nem deve pressupor que alguém nasceu para muito ou para nada” (SAVATER, 2012, p. 143).

O ensino que vem acontecendo ao longo da história vem perpetuando uma fatal hierarquia socioeconômica, ao passo que deveria oferecer possibilidades de mobilidade social e um equilíbrio mais justo. De fato, a igualdade, principio primeiro

de toda a educação, não vem acontecendo. É recorrente encontramos nas

instituições de ensino discursos que tentam justificar o fracasso da escola, atribuindo este às dificuldades socioeconômicas das famílias, à falta de “estrutura familiar”, ao descompromisso das famílias com a escola e com a educação de seus filhos. Estas falas estão quase que enraizadas, e vem contribuindo para o que podemos chamar de “lavar as mãos” com a educação de crianças.

Sim, é certo que as dificuldades econômicas e sociais das famílias brasileiras vêm influenciando significativamente na vida escolar das crianças, e que este é um problema urgente. É muito triste, desnorteador e preocupante quando nossos alunos vão à aula com fome, ou com poucas roupas no frio, ou sabermos que sofrem abusos de todas as ordens em suas casas. De fato, na prática docente passamos por inúmeras situações desafiadoras que nos fazem pensar acerca da sociedade e do humano. A desigualdade social já é um problema histórico, que tomou enormes proporções e, infelizmente, está em evidencia nas escolas – embora isso jamais pudesse acontecer. Como educadores otimistas e que confiam na educação e em seu papel formador, esse cenário nos indigna e nos faz querer ajudar, da forma que for possível. E vemos muito nas escolas esse olhar sensível que tenta ajudar essas crianças, transformando a instituição num segundo lar, num lugar de proteção. Não

sei se isso é correto ou não, e também não quero aqui me ater a julgar. O que quero com essa discussão é pensar, frente aos dilemas que a educação enfrenta, qual seria o papel da escola, ou melhor, como a escola poderia de fato ajudar essas crianças. Qual seria sua “essência”, seu papel enquanto instituição que deveria – e ainda deve – partir do princípio da igualdade. Pretendo fazer isso através do que Masschelein e Simons (2015) defendem como escola: Skholé (tempo livre).

Inicialmente gostaria de pensar essas questões a partir da pretensão universalizadora da educação democrática. Ela inicia tentando ajudar nessas deficiências sociais, do meio familiar, em que cada um nasce, não as determinando como pretexto de exclusão. Acredita-se assim que nossas raízes humanas, as que nos tornam iguais nessa sociedade das diferenças, precisam ser lembradas por todos nós, pois é nelas que nasce o princípio da igualdade (SAVATER, 2012, p. 148). Quanto a essa questão, Savater pontua que:

[...] nossas raízes mais próprias, as que nos distinguem dos outros animais, são o uso da linguagem e dos símbolos, a disposição racional, a lembrança do passado e a previsão do futuro, a consciência da morte, o senso de humor etc.: em suma, aquilo que nos tona semelhantes e que nunca está ausente onde há homens, o que nenhum grupo, cultura ou indivíduo pode reclamar como exclusivo nem exclusivamente seu, o que temos em comum (2012, p. 148).

O restante – expressões culturais, conquistas políticas, crenças – são nossas folhas, nossos galhos, a diversidade cultural, o modo próprio de expressar a nossa raiz humana comum. Essa nossa raiz comum “deverá ser lembrada nos momentos mais cruciais, quando a convivência entre os grupos distintos se tornar impossível e a hostilidade não puder ser resolvida recorrendo-se às regras internas de nenhum dos “galhos em conflito” (p. 149).

Essa nossa raiz comum precisa, urgentemente, ser lembrada na escola, onde cada vez mais estão se configurando as injustiças sociais, a exclusão, o preconceito. A escola deve ser o lugar por excelência onde todos podem ser iguais, onde se acredita que todos são capazes, por que todos nós possuímos as mesmas raízes. A escola precisa ser um lugar que parte da igualdade, que carrega esse princípio como base, uma vez que, em qualquer outro lugar social, o direito de sermos iguais nos é negado. Se uma criança vai ao mercado, por exemplo, ela só poderá levar aquilo que seu dinheiro permite. Logo, o mercado é um lugar desigual. Já da escola, que parte do princípio da igualdade, a criança poderá levar tudo, todo o

conhecimento sobre o mundo que ela quiser, por que na escola ela pode - e deve - ser o que quiser ser.

Savater também nos lembra que as culturas não são insolúveis e que é justamente por isso que existe a civilização: é pelo contágio entre as culturas. Logo, é a civilização que a educação deve aspirar e transmitir, não simplesmente a cultura. Assim, estaremos ensinando aos neófitos a trair racionalmente, “em nome de nossa única e verdadeira pertença essencial, a humana, o que haja de excludente, fechado e maníaco em nossas afiliações acidentais, por mais confortáveis que estas sejam para os espíritos acomodados [...] (2012, p. 152).

E é com esses ideais de educação universalizadora que a escola poderá ser um lugar para todos, verdadeiramente democrático e igualitário, onde os preconceitos sejam colocados abaixo, e prevaleça a nossa única e verdadeira pertença essencial, a humana. Isto porque “resta à escola como o único âmbito que pode fomentar o apreço nacional pelos valores que permitem a convivência dos que são ditosamente diferentes” (p. 153).

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