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Algumas percepções acerca do ideário pedagógico atual: tensionamentos possíveis e necessários para pensar a formação da criança

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Academic year: 2021

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Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul

DHE- Departamento de Humanidades e Educação

Franciele da Silva dos Anjos

ALGUMAS PERCEPÇÕES ACERCA DO IDEÁRIO PEDAGÓGICO ATUAL: TENSIONAMENTOS POSSÍVEIS E NECESSÁRIOS PARA PENSAR

A FORMAÇÃO DA CRIANÇA

IJUÍ (RS) 2016

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Franciele da Silva dos Anjos

ALGUMAS PERCEPÇÕES ACERCA DO IDEÁRIO PEDAGÓGICO ATUAL: TENSIONAMENTOS POSSÍVEIS E NECESSÁRIOS PARA PENSAR

A FORMAÇÃO DA CRIANÇA

IJUÍ (RS) 2016

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Franciele da Silva dos Anjos

ALGUMAS PERCEPÇÕES ACERCA DO IDEÁRIO PEDAGÓGICO ATUAL: TENSIONAMENTOS POSSÍVEIS E NECESSÁRIOS PARA PENSAR

A FORMAÇÃO DA CRIANÇA

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Curso de Pedagogia do Departamento de Humanidades e Educação - DHE, da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul – UNIJUÍ como requisito parcial para a obtenção do título de Licenciado em Pedagogia.

Professor Orientador: Dr. José Pedro Boufleuer

Ijuí (RS) 2016

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Dedico esse trabalho ao meu noivo, melhor presente da vida, meu grande amor e maior responsável por essa conquista, que para além de incentivos, me ofereceu seu ombro amigo e sua alegria de viver.

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AGRADECIMENTOS

Penso que “agradecimentos” é um termo muito simples para expressar a tamanha gratidão que sinto. Sou imensamente grata ao meu professor, orientador e amigo José Pedro Boufleuer, por ter sido o grande responsável por todas as dúvidas que me moveram a pesquisar, por tem semeado, pelos diálogos e tensionamentos, o desejo em conhecer, em pesquisar, em ir além do que jamais imaginei ir. Agradeço por ter acreditado em mim, e ter dedicado seu tempo a me conduzir nesse caminho de pesquisas, reflexões e aprendizados.

Agradeço ao meu noivo Fernando, que não mediu esforços para que esse sonho se realizasse, que sempre esteve presente, apoiando, sendo amigo, companheiro e conselheiro. A ele dedico essa conquista, pois sei que é a pessoa que mais se orgulha deste feito, e que estará sempre ao meu lado, segurando minha mão nos tropeços da vida, e aplaudindo pelas conquistas alcançadas. O nosso amor é o presente mais importante de toda a minha vida!

Agradeço a minha primeira professora da graduação, orientadora de bolsa e amiga, professora Marta Estela Borgmann, pela cumplicidade, pelos ensinamentos, por todas às vezes que escutou meus anseios, dúvidas, problemas e também alegrias. É impossível fazer esse agradecimento a você sem lembrar os momentos em que me encorajou a seguir em frente, e da confiança que depositou em mim. É impossível descrever em palavras a tamanha admiração que tenho por você.

Agradeço também, de uma forma muito especial, a todos os professores do curso de Pedagogia, pelos ensinamentos, pela amizade, e pelo papel essencial que desempenharam nessa jornada. A vocês dedico toda minha admiração, confiança e gratidão, porque se tornaram meu maior exemplo, tanto profissional como pessoal.

Agradeço aos meus pais, a minha irmã Daniele, aos demais familiares e amigos, que acreditaram nos meus sonhos e foram compreensivos durante minha ausência. Todos vocês foram imprescindíveis nessa caminhada, pelo amor e confiança que a mim dedicaram.

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Há momentos na vida em que a questão de saber se podemos pensar diferentemente do que pensamos, e perceber diferentemente do que vemos, é absolutamente necessária se quisermos continuar de algum modo a olhar e refletir.

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RESUMO

A presente monografia nasce de algumas inquietações encontradas ao longo da graduação em Pedagogia acerca de algumas concepções defendidas pelo ideário pedagógico atual. A pesquisa constitui-se em um percurso de investigação bibliográfica, a partir de autores que sustentam as ideias que seguidamente serão apresentadas, sendo os principais Hannah Arendt, Fernado Savater, Jan Masschelein e Marten Simons. Uma dessas questões, a que esse trabalho irá se direcionar, diz respeito à ênfase em um suposto “mundo das crianças”, que parece estar distanciando a escola de sua especificidade própria, e com isso negando às crianças a chance de renovar o mundo, para o que se tornam fundamentais os processos pedagógicos que permitem conhecer este mundo velho. A pesquisa traz alguns entendimentos acerca da tarefa dos adultos enquanto geração com anterioridade pedagógica, compreendendo que educam por amor ao mundo e às novas gerações, e que, por assim ser, as devem conduzir para além das realidades vividas, de modo que possam sair do lugar onde estão, vindo a conhecer este mundo humano comum. Para isso, a autoridade, no sentido de “ajudar a crescer”, se faz indispensável. Compreendendo as dificuldades que a escola vem encontrando para assumir as tarefas que lhe são próprias, será defendida a concepção de escola como “skhóle”, que significa tempo livre de conhecer o mundo, de tornar-se liberto de todas as amarras sociais que limitam e reduzem o universo dos sujeitos. Ao final, propõe-se que somente uma escola recuperada em seu caráter próprio de ser escola pode cumprir com seu papel como única instituição que pode, de fato, oferecer a igualdade. Tendo esse princípio como base, ela acredita que todos os sujeitos são capazes “de”, acredita nas crianças, oferecendo-lhes sua cumplicidade, seu amor e sua confiança, apoiando-as na tarefa que lhes cabe de renovar o mundo.

Palavras-Chave: Criança; Escola como Skholé; Igualdade; Conhecer o mundo; Condução.

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO: A FALTA LEVA AO INTERESSE, E ESSE NOS LEVA A

UMA ESTRADA SEM FIM...9

2 UM MUNDO DAS CRIANÇAS OU UM MUNDO HUMANO COMUM?...15

3 A IDEIA DE CONDUÇÃO (OU CAMINHAR JUNTO)...22

3.1 Para conduzir é preciso ter sido conduzido...24

3.2 Conduzir: uma questão de responsabilidade, otimismo, autoridade e disciplina...25

3.3 Conduzir é andar junto, é tornar-se cúmplice...30

4 O AGIR DA ESCOLA PAUTADO NO PRINCÍPIO DA IGUALDADE: UNIVERSALIZAR É PRECISO...32

4.1 Um tempo livre para a igualdade: a skholé onde todos somos capazes “de"...35

4.2 Relatos de uma experiência que libertou: testemunhando a própria aprendizagem...37

5 CONCLUSÕES: O FINAL QUE APONTA UM RECOMEÇO...39

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1 INTRODUÇÃO: A FALTA LEVA AO INTERESSE, E ESSE NOS LEVA A UMA ESTRADA SEM FIM

“Não podemos tudo querer ao mesmo tempo. Muito menos podemos de fato querer o que não tem ligação com nossa própria vida, o que nela não se enraíza”.

(Mario Osorio Marques) Essa citação de Marques me fez pensar acerca das escolhas e caminhos que percorri durante a graduação, permitindo refletir acerca de minhas aprendizagens e de como foram se constituindo. Durante esses quase quatro anos de formação acadêmica, algumas questões acerca da educação bastante me intrigaram, e esta monografia nasce de algumas delas.

Neste capítulo introdutório, em cujo título menciono o papel da falta como desencadeadora do interesse, e desse interesse como condutor a possibilidades de aprendizagens sem fim, vou me referir tanto ao processo de produção de uma falta que fui capaz de ir construindo ao longo dos semestres de meu curso de Pedagogia, e que agora me fazem interessada nesse processo de busca que é a pesquisa, como também vou me referir à noção de produção de um sentido de falta como dimensão indispensável à educação das crianças. Antecipando o que pretendo dizer, se a escola der a impressão de que a criança já vem repleta de sentidos e saberes ao adentrar à escola, ou de que essa escola não passa de uma extensão do lar ou do seu mundo em que ela já é centro, nada ou muito pouco poderá vir a interessá-la na escola.

Dentre as várias questões estudadas ao longo do meu curso de formação, a educação das crianças foi uma das que mais me inquietou. Com o tema “Algumas percepções acerca do ideário pedagógico atual: tensionamentos possíveis e necessários para pensar a formação do sujeito criança”, pretendo pensar alguns pressupostos do ideário pedagógico atual que vêm norteando as práticas pedagógicas com crianças. Durante alguns estágios realizados no decorrer do curso de pedagogia, bem como a partir de leituras diferenciadas proporcionadas por alguns componentes curriculares, acerca da educação escolar, principalmente após

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o 5º semestre de graduação, comecei a esboçar um pensamento mais reflexivo acerca de algumas ênfases abordadas pelo curso de pedagogia, principalmente no que tange ao trabalho pedagógico com crianças e ao papel da escola nesse processo.

A partir do entendimento, esboçado em grande parte nos escritos de Hannah Arendt, de que a escola é uma instituição onde a criança inicia sua passagem do privado (família) para o público (mundo), e que, por assim ser, constitui-se em um espaço e tempo distintos de qualquer outra instituição, iniciei um processo de repensar as teorias acerca de como a escola vem organizando e desenvolvendo seus processos para a educação de crianças. Considerando que à escola vamos para ampliar os horizontes de nossas percepções, para sairmos de nossas “subjetividades opinativas” e passarmos para uma “objetividade pensante”, para que possamos aprender sobre o mundo, conhecendo-o de uma forma que não aprenderíamos em casa ou em outro lugar, penso que é cada vez mais urgente olharmos de um modo mais analítico e crítico para as formas como a escola, pautada no ideário pedagógico atual, vem cumprindo com suas razões de ser – se é que ela consegue fazer isso.

Estamos vivendo uma crise na educação, como argumenta Arendt. Uma crise que iniciou há muito tempo, quando a tradição e a autoridade deixaram de pautar a vida da sociedade humana. Nessa crise, a escola já não sabe mais o que ela é, para que existe, uma vez que são tantas as funções que ela assume perante a sociedade que não dá conta mais nem de pensar suas próprias razões de ser. E nisso encontramos um grave problema, pois sabemos que quando desempenhamos várias tarefas ao mesmo tempo, ou ao menos quando tentamos fazer isso, algumas delas ficam à deriva. No caso da escola, penso que a tarefa que está à deriva é justamente a sua razão de ser, que é apresentar o mundo humano comum para as crianças, fazendo a transição delas, de suas realidades vividas no âmbito privado para o mundo enquanto espaço público, e isto somente se torna possível através do estudo, da atenção e do interesse pelo conhecer. Dessa forma, entende-se que a escola deve ter como sua razão básica a formação dos sujeitos para este mundo humano comum.

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No entanto, olhando um pouco mais atentamente para as escolas, percebemos que isto não está acontecendo. Há, sim, um discurso muito enraizado de que é preciso que se desperte o interesse da criança em aprender. Sim, isso é necessário. Porém, na prática, parece que esse ideal não está acontecendo, pois, se assim fosse, encontraríamos as novas gerações interessadas nesse exercício de estudo, de dedicação e de atenção para com o mundo, e isso, infelizmente, não vem acontecendo.

Já há certo tempo ando inquieta e pensando na seguinte questão: em meu curso de formação aprendemos, na maioria dos componentes curriculares relacionados à educação de crianças, que esse interesse deve ser despertado a partir do que a criança manifesta como desejo; que o desenvolvimento de todo e qualquer projeto deve partir de sua espontaneidade; que os percursos para a aprendizagem devem ser trilhados conforme suas manifestações; que para suas aprendizagens serem significativas é preciso partir desse interesse das crianças; e que sempre haja uma estreita relação entre o objeto de ensino e as suas vivencias cotidianas; enfim, que é preciso atentar ao “mundo das crianças”. Consequentemente, o trabalho do professor, seu planejamento e suas ações, deveriam, em virtude dessas concepções, sempre partir desse “mundo das crianças”, permitindo que elas escolham o que querem e como querem aprender, considerando, principalmente, o brincar, por ser a atividade especifica da infância. Segundo o ideário pedagógico atual, essa seria a única forma de permitirmos que as crianças sejam espontâneas, tenham autonomia e protagonismo nesses processos de sua formação. Em a escola reconhecendo essas questões, bem como a ideia de que a aprendizagem só se torna significativa se o estudo for relacionado com suas vivencias cotidianas, essa acaba se tornando uma extensão da família, o que significa, em meu entender, a perda do caráter específico da educação escolar.

Parece-me que com essa ênfase na autonomia de um “mundo das crianças” estamos, de certa forma, “lavando as mãos” em relação à educação delas, as abandonando a seus próprios recursos, deixando que ditem o que fazer, quando e como fazer, esquecendo que compete a nós educá-las, como geração mais velha e com anterioridade pedagógica. Sinto que as crianças precisam cada vez mais, em decorrência deste mundo de urgências e precoces informações, do olhar do adulto

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que cuida e reconhece que é preciso protegê-las desse mundo, educando, para que o mundo também seja protegido, conservado e, talvez, por elas renovado.

Gostaria, aqui, de expor alguns tensionamentos que venho fazendo em relação a essas questões da ênfase no “mundo da criança” e dessa forma de “despertar o interesse”. Parto do entendimento de que, sim, as crianças precisam e são protagonistas de seu próprio processo de aprendizagem, são autônomas na forma como, com suas subjetividades, vão assimilando e acomodando informações, as transformando em conhecimentos, ressignificando seus saberes da vida cotidiana, e também os demais conhecimentos que vai construindo. Entendo que é preciso considerar a gama variada de saberes que a criança já tem, e continua construindo, quando chega à escola e durante o período de formação escolar. Contudo, isso não significa que tenhamos que pautar o currículo escolar, todas as nossas práticas pedagógicas, com base na vida cotidiana de nossas crianças.

A escola, para tornar possível a formação de sujeitos com horizontes de pensamento e de conhecimento alargados, necessita apresentar algo diferente do mundo que até então a criança conhece. É preciso que a escola seja um lugar distinto, que traga conhecimentos diferentes daqueles que as crianças aprendem em casa, na rua ou no mercado. Penso ser urgente rever o que mesmo de específico a escola traz, qual a razão de sua invenção/proposição, qual a sua “essência”, o que a torna indispensável e necessária para as novas gerações. Com base no esclarecimento desses sentidos que lhe são próprios, entendo ser possível a escola “ganhar” as crianças para esse espaço e tempo de atenção para com o mundo, proporcionando-lhes novas e significativas aprendizagens que as transformem em alunos, sujeitos em seu processo de formação.

Mas como despertar o interesse das crianças para aprender e conhecer o mundo, ou melhor, como levar as crianças de sua realidade vivida para um outro mundo? O que de fato coloca alguém em situação de interesse? O que faz com que se deseje buscar conhecer? O que move alguém? Será mesmo que a busca constante em despertar o interesse da criança a partir do que ela quer aprender no momento, ou do uso cotidiano que essa aprendizagem possa ter, pode possibilitar essa ampliação de horizontes? Será que a criança tem em si o sentido da educação, a ponto de saber escolher o que necessita aprender? Será que ela sabe o que a

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vida irá lhe cobrar? E como nasce o interesse? Qual o papel dos adultos nesse processo de formação das crianças? O que deveria a escola representar em suas vidas? Como a escola pode constituir-se em lugar de igualdade, onde todos podem ser capazes “dê”?

Para tratar acerca destas questões, que tanto me inquietam, irei trazer, nos capítulos que seguem, alguns teóricos que vêm me auxiliando a pensar essas questões, como Hannah Arendt, Fernando Savater, Gert Biesta, Jan Masschelein e Marten Simons. É importante frisar que estou em interesse, ou melhor, que estou interessada por esta pesquisa e pelos diálogos e tensionamentos que serão realizados, mas que esse interesse parte de uma falta, parte de uma crise pela qual venho passando, de perguntas às quais não sei responder sem melhor pensar, sem melhor refletir. Nesse esforço no qual estou me lançando, pretendo, mais do que responder às minhas questões, elaborar argumentos que me permitam refletir melhor acerca das concepções teóricas estudadas durante a graduação, mais precisamente acerca da educação escolar de crianças e do papel da escola como instituição que oportuniza processos de aprendizagem sob o signo da igualdade de sua oferta.

Com este intuito, iniciarei o próximo capítulo trazendo para o debate alguns dos pensamentos de Hannah Arendt que, entendo, possam ajudar a refletir acerca da tarefa da escola para com as crianças, trazendo, também, o seu entendimento a respeito da existência de um pretenso “mundo das crianças”. Na sequência abordarei algumas concepções de Fernando Savater que, também, contribuem para pensar no que consiste a tarefa da educação de crianças. Após esses diálogos, apresento, no terceiro capítulo, alguns tensionamentos possíveis acerca da ideia de condução das crianças a partir do entendimento de que homens educam homens, embasando-me, para isso, nos escritos e em algumas ideias de Savater. Uma de minhas referências será o entendimento de que as crianças não possuem em si os sentidos da educação, e que, portanto, compete ao adulto colocar a criança em interesse para com o mundo, sugerindo-lhes os sentidos possíveis dos aprendizados propostos. Somente mediante a aprendizagem significativa de um mundo, que já existe, essas novas gerações tornar-se-ão aptas a renová-lo, já que ao apreender esse mundo o farão de uma forma necessariamente nova. Por fim, ainda nesse

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mesmo capitulo, revejo alguns pressupostos pedagógicos do movimento da Escola Nova e que, em meu entender, sustentam muitas das práticas pedagógicas que vem retirando, de acordo com Masschelein e Simons, a escola da escola, que a vem domando.

Após esses tensionamentos, e já no quarto capítulo, apresento uma linha de pensamento a qual já venho há certo tempo me dedicando. Trata-se de uma reflexão acerca da razão de ser da escola, o que faço mediante um exercício de testar, pelas interfaces da escrita e da reflexão, se algumas hipóteses que estão na base dos tensionamentos apontados neste escrito são plausíveis de discussão no atual cenário da educação. Trata-se, basicamente, de duas hipóteses. A primeira entende o agir da escola como pautado no princípio da igualdade, ou no princípio da igualdade no começo, onde trago para o diálogo a ideia de universalizar a educação, no sentido de resgatar o que nos faz iguais, que são as nossas raízes humanas comuns. A partir desse entendimento, defendido por Savater, pode-se pensar uma educação igualitária. Quero pensar no alcance dessa hipótese como orientadora dos processos educativos, avaliando o seu possível alcance na educação das crianças e com vistas à sua tarefa, enquanto nova geração, de renovar o mundo. A segunda hipótese que gostaria de pôr à prova, mediante argumentos e reflexões, se refere a uma possível inversão de perspectivas em relação ao trabalho pedagógico com as crianças, ou seja, ao invés de se partir das diferenças, assumir o entendimento de que todas as crianças são capazes “de”, como que suspendendo a realidade social por elas vivida e oferecendo-lhes efetivamente uma escola que, conforme a etimologia grega (skhóle), significa tempo e espaço para ser livre, para libertar-se de todas as amarras que a sociedade lhes impõem. Enfim, ousaria aqui pensar no que aconteceria se a escola que temos hoje realizasse o inverso do que vem fazendo.

Ao modo de uma proposição que vou buscar sustentar, quero pensar numa educação e numa escola que faça jus a seu sentido original de skholé e que, exatamente por isso, tivesse a coragem de “profanar”1

as condições financeiras dos alunos, as suas moradias, as relações por vezes conflituosas com suas famílias, para oferecer-lhes um tempo livre de tudo o que os diferencia, um espaço único em

1“Algo que é desligado do uso habitual, não mais sagrado ou ocupado por um significado específico, e, portanto,

algo no mundo que é, ao mesmo tempo, acessível a todos os sujeitos à (re) apropriação de significado” (MASSCHELEIN; SIMONS, 2015, p. 39).

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que essas questões não importam e que, exatamente por isso, se possa fazer uma verdadeira aposta neles ao interessá-los em relação ao mundo. Assim, seduzidos pelo amor que os educadores têm em relação a eles e ao mundo, oferecer-lhes a chance para serem o que quiserem ser. Penso, enfim, na ideia de uma escola em que os educadores, exatamente pelo seu amor ao mundo, não privem os alunos de conhecerem esse mundo, bem como do direito de se tornarem livres pelo conhecimento.

2 UM MUNDO DAS CRIANÇAS OU UM MUNDO HUMANO COMUM?

A educação é, também, onde decidimos se amamos nossas crianças o bastante para não expulsá-las de nosso mundo e abandoná-las a seus próprios recursos, e tampouco arrancar de suas mãos a oportunidade de empreender alguma coisa nova e imprevista para nós (...).

(Hannah Arendt)

Quando falamos na educação de crianças é primordial buscarmos saber quem são esses sujeitos, o que trazem de específico nessa fase de desenvolvimento, quais são os saberes e as aprendizagens já construídas, entre outras tantas indagações que podem e precisam ser feitas. Mas, em geral, o que não podemos esquecer é que as crianças são sujeitos também históricos, que têm cultura, pensamento, emoção, e que se movem em meio às mais diversas linguagens, aprendendo por elas, porque essas são características de todo ser humano. Esses entendimentos acerca do sujeito criança são conhecimentos que, com as leituras e reflexões, pude ir construindo. No entanto, penso ser uma tarefa muito difícil pensar o que realmente é próprio da criança, pois justamente pela condição de neófita, a criança representa o novo, o desconhecido. A infância é a própria natalidade, segundo Arendt (2002), e a educação só existe em decorrência dessa situação, de que o mundo está sempre recebendo algo novo. Assim, “a educação é o ponto em que decidimos se amamos o mundo o bastante para

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assumirmos a responsabilidade por ele e, com tal gesto, salvá-lo da ruína que seria inevitável não fosse a renovação e a vinda dos novos e dos jovens” (p. 247).

É por amar às crianças e também por amor ao mundo que educamos, no sentido de proteger as crianças das injustiças do mundo e, também, para conservar o que acreditamos haver de melhor no mundo. Hannah Arendt defende que pela educação,

[...] decidimos se amamos nossas crianças o bastante para não expulsá-las de nosso mundo e abandoná-las a seus próprios recursos, e tampouco arrancar de suas mãos a oportunidade de empreender alguma coisa nova e imprevista para nós [...] (2002, p.247)

É por amarmos aos recém-chegados que apresentamos a eles esse nosso mundo comum, que é de todas as gerações, por ter sido uma invenção humana. Fazemos isso por que reconhecemos o sacrifício que seria se tivessem que retornar à “estaca zero” e construir novamente todos os conhecimentos acerca do mundo que aí estão. Assim, um dos objetivos da educação é conservar o mundo. No entanto, não podemos doutrinar as crianças sob as nossas concepções. Devemos, sim, apresentar-lhes o passado e o presente, oferecendo a elas o que é delas, das novas gerações, que é a oportunidade de inaugurarem um mundo novo, se assim elas quiserem. Não podemos também obrigá-las a “salvar” este mundo em ruínas, forçando-as a traçarem caminhos que as gerações mais antigas não foram capazes de percorrer. Para elas, é um mundo novo que se inicia, pautado em um mundo velho que tem muito a ser conservado.

E para que a conservação e renovação do mundo possam acontecer é de suma importância, ao tratarmos da educação dos recém-chegados, considerar a autonomia que têm em relação à construção de suas aprendizagens, sendo que nesse processo de aprender elas são protagonistas, uma vez que são autores de seus processos cognitivos, como a organização de informações, sua assimilação e acomodação, por exemplo. As crianças, por terem construído inúmeros saberes acerca do mundo da vida, possuem subjetividades opinativas, e é esse fato que as permite argumentar e pensar acerca da vida.

É na escola que esses processos vão sendo cada vez mais aperfeiçoados. Pelo conhecimento do mundo, por exemplo, e pelas discussões acerca deste, quer-se que as crianças pasquer-sem de suas subjetividades opinativas para o que chamamos

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de objetividade pensante: um estado onde, pelo alargamento dos horizontes da vida, podem ir construindo novos modos de pensar o mundo, o humano, o complexo, não apenas opinando como alguém que “acha” algo sobre essas questões, mas pensando, de modo muito objetivo, como alguém que reflete sobre tudo isso. Mas, afinal, como tornar possível esse processo, essa transição?

É pela natalidade que as crianças iniciam seu processo de integração neste mundo humano comum. Já pela educação nós, sujeitos com anterioridade pedagógica, vamos apresentando a elas esse constructo humano, contando o passado e permitindo conhecer o presente. Por isso podemos dizer que a escola, para a criança, funciona como uma espécie de representação do mundo, sem ser propriamente o mundo. É ali que a criança passa da esfera privada (família) para a esfera pública, e começa a entender e fazer parte de inúmeros processos que nos fazem sujeitos deste tempo presente. É na escola que a criança inicia essa transição, essa mudança na forma de pensar, de ser e de agir no mundo. Hannah Arendt já defendia que:

Normalmente a criança é introduzida ao mundo pela primeira vez através da escola. No entanto, a escola não é de modo algum o mundo e não deve fingir sê-lo; ela é, em vez disso, a instituição que interpomos entre o domínio privado do lar e o mundo com o fito de fazer com que seja possível a transição, de alguma forma, da família para o mundo (2014, p. 238).

Com base nesse entendimento, pode-se afirmar que a escola não é e não pode ser a família da criança. A escola deve servir justamente para suspender a realidade vivida pela criança (MASSCHELEIN; SIMONS, 2014), como um lugar que necessita se distinguir do seio familiar, para oferecer a elas um tempo de ir além, de ampliar os horizontes e de conhecer esse nosso mundo humano comum.

O que estamos vivendo, no entanto, é o oposto dessa situação. A escola vem se tornando uma extensão da família, principalmente no que tange aos processos pedagógicos: a educação parece estar cada vez mais relacionada com as coisas que as crianças aprendem em casa, sendo que os conteúdos buscam estar intimamente ligados ao suposto “mundo das crianças”, às suas culturas infantis, na perspectiva de que todo o percurso pedagógico seja prazeroso, lúdico e pautado em momentos de brincar. Não estou querendo negar uma cultura da infância, muito pelo contrário, penso que é certo e necessário considerar a cultura dos infantes, mas para levá-los à outra cultura, a cultura dos que pertencem a um mesmo mundo.

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Esquecemos que ser criança é um período da vida, como ser jovem, adulto ou idoso, e que a escola deveria servir justamente para o amadurecimento das crianças, para irem aprendendo sobre o mundo e no que consiste ser sujeito dele. Kant já escrevera que “não se devem educar as crianças apenas segundo o estado presente da espécie humana, mas segundo seu futuro estado possível e melhor, ou seja, de acordo com a Ideia de Humanidade e com seu destino total” (KANT, 1996, p. 22). Porém, com essa demasiada preocupação em satisfazer as crianças – quem sabe até mesmo para não sofrer com a tirania delas – estamos constantemente negando essa indispensável preparação para a vida em sociedade. As crianças devem ir para a escola para um processo de conhecer o mundo, amadurecer progressivamente e constituírem-se sujeitos deste mundo humano comum. Isto porque, conforme aponta Jorge Larrosa (1998),

O nascimento não é nada mais do que o princípio de um processo no qual a criança, que começa a estar no mundo e que começa a ser um de nós, vai se introduzindo no mundo e vai se convertendo em um de nós. Esse processo é, sem dúvida, difícil e incerto. Mas, apesar desse resto irredutível de incerteza, o nascimento coloca a criança em continuidade conosco e com nosso mundo (p. 71-72).

Observe-se que as crianças somente conseguem, de fato, serem um de nós se assumirmos perante elas a nossa autoridade. Quanto à palavra autoridade, compreendo-a a partir do que Savater nos diz: “provém etimologicamente do verbo latim augeo, que significa, entre outras coisas, fazer crescer” (2012, p. 101). E acredito que só fazemos crescer o que amamos, e é por isso que nos tornamos responsáveis por essa tarefa. Assim, ter autoridade significa assumir esse compromisso de amar as crianças. No entanto, nossa sociedade tem negado a autoridade, e, com isso, também nossa responsabilidade com a conservação do mundo, abandonando as nossas crianças, deixando-as à deriva, para criarem um “mundo das crianças”, onde elas são expostas a sua própria autoridade, e por isso sofrem com a tirania umas das outras. Lavamos as mãos em relação à educação delas, deixando que elas escolham o que querem, em que tempo querem e como querem aprender algo, alegando a importância da “autonomia” e do “protagonismo”. Não percebemos, por um bom tempo, que ao banirmos as crianças do nosso mundo, dando a elas um mundo da infância, fomos inconsequentes, pois é tarefa da geração mais velha, pela anterioridade pedagógica que possui, educar os

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recém-chegados. Quanto à anterioridade pedagógica e o que cabe a ela, Boufleuer traz importantes e indispensáveis considerações:

[...] cabe ao educador insistir que o aluno se dedique a aprendizados que este ainda não percebe como importantes e necessários. Na ótica pedagógica, portanto, o educando é sempre um imaturo. Imaturo no sentido de não possuir a dimensão dos aprendizados que a vida lhe cobrará. Enquanto o educando em boa medida percebe sua vida a partir das necessidades do presente, o educador deve sugerir-lhe continuamente o sentido das necessidades futuras (2013, p. 19).

Compete a nós essa tarefa de apresentar o que é o mundo da vida, alertando, em certo sentido, para as exigências que coloca para os humanos. No entanto, não compete à escola instruir as crianças na arte de viver, como bem lembra Arendt (2014). Se a escola fizer isso, estará tirando a novidade que a criança apresenta. É por essa novidade que a criança poderá dar continuidade ao mundo, de um modo sempre original. Em razão disso, é extremamente urgente pensarmos as relações que estão sendo estabelecidas entre adultos e crianças:

A linha traçada entre crianças e adultos deveria significar que não se pode nem educar adultos nem tratar crianças como se elas fossem maduras; jamais se deveria permitir, porém, que tal linha se tornasse uma muralha a separar as crianças da comunidade adulta, como se não vivessem elas no mesmo mundo e como se a infância fosse um estado humano autônomo, capaz de viver por suas próprias leis (ARENDT, 2002, p. 246).

A escola, ao reconhecer esse “mundo das crianças”, começou a pautar-se nas singularidades desse mundo para a organização e desenvolvimento dos processos pedagógicos, e, com isso, as crianças passaram a governar não somente o “seu mundo”, como também o mundo, em seu sentido literal. São frequentes os discursos das famílias em relação à indisciplina das crianças, bem como as falas que as retratam como tiranas, que não aceitam o “não”, e que mandam em suas casas. E esse pressuposto pode ser considerado como um dos fatores que levou à crise na educação que estamos vivendo. No ensaio “A Crise na Educação”, Hannah Arendt aponta três pressupostos básicos dessa crise pela qual essa esfera vem passando, mas aqui cabe destacar o primeiro:

O primeiro é o de que existe um mundo da criança e uma sociedade formada entre crianças autônomas e que se deve, na medida do possível, permitir que elas governem. Os adultos aí estão apenas para auxiliar esse governo. A autoridade que diz às crianças individualmente o que fazer e o que não fazer repousa no próprio grupo de crianças – e isso, entre outras consequências, gera uma situação em que o adulto se acha impotente ante à criança individual e sem contato com ela. Ele deve apenas dizer-lhe que

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faça aquilo que lhe agrada e depois evitar que o pior aconteça (ARENDT, 2002, p. 229-230).

Face a essa problemática que Arendt aponta, encontramos uma comunidade formada pelas crianças e autorizada pelos adultos, e essa comunidade vem governando com cada vez mais tirania, escolhendo e definindo os rumos da educação. O professor, a partir de tais circunstâncias, passa a ser apenas um mediador, um instrumento facilitador de aprendizagens, e como se ainda não bastasse, deve desempenhar o papel de “animador”, usando de todos os recursos e atrativos para “agradar” as crianças.

A ênfase no brincar e em situações prazerosas e lúdicas parece ser o cerne das situações de aprendizagem, uma vez que se passou a acreditar que o brincar, por ser a única atividade que nasce espontaneamente de sua existência como criança, é a única forma que possibilita aprendizagens autônomas, e que quaisquer outros métodos de ensino as privam de suas iniciativas lúdicas, de seu protagonismo, como se o professor tentasse coagir essa espontaneidade dos neófitos2, as forçando à passividade (ARENDT, 2002). Ao que parece, a aprendizagem em seu sentido histórico foi substituída pelo brincar, em uma tentativa – que vem dando certo – de infantilizar as crianças. Quanto a esse problemática, Arendt defende: “aquilo que, por excelência, deveria preparar a criança para o mundo dos adultos, o hábito gradualmente adquirido de trabalhar e de não brincar, é extinto em favor da autonomia do mundo da infância” (2002, p. 233).

Em grande medida, a ideia de que só é possível aprender de forma significativa “fazendo”, - ao invés de pelo estudo e pela disciplina - é pautada no Pragmatismo. Arendt pontua que “esse pressuposto básico é o de que só é possível conhecer e compreender aquilo que nós mesmos fizemos, e sua aplicação à educação é tão primária quanto óbvia: consiste em substituir, na medida do possível, o aprendizado pelo fazer”. Esse pensamento logo levou à distinção entre brinquedo e trabalho, onde o brincar passou a ser considerado atividade primeira de toda criança, como a única forma que permite à criança expressar sua espontaneidade, pois brota dela. Arendt (p. 233) segue:

Seja qual for a conexão entre fazer e aprender, e qualquer que seja a validez da formula pragmática, sua aplicação à educação, ou seja, ao modo

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de aprendizagem da criança, tende a tornar absoluto o mundo da infância [...].

Ao criticar a substituição da aprendizagem pelo fazer e do trabalho pelo brincar, Arendt traz uma significativa ilustração:

[...] a criança deve aprender falando, isto é, fazendo, e não pelo estudo da gramática e da sintaxe; em outras palavras, deve aprender uma língua estranha da mesma maneira como, quando criancinha, aprendeu a própria língua: como que ao brincar e na continuidade ininterrupta da mera existência (p. 232-233).

Essa crítica que a autora traz nos remete à ideia, constantemente difundida pelas instituições de formação de professores, bem como pelos cursos de formação continuada, de que aprendemos mais facilmente “fazendo” algo, “mexendo” em algo, construindo algo. Sim, isto é certo, aprendemos mais facilmente desta forma. Mas quero aqui ponderar: a escola deve ser para que aprendamos mais facilmente? É certo que facilitemos as aprendizagens? Acredito que o certo é apostarmos no potencial humano para a aprendizagem, e isso significa que não há barreiras para que ela aconteça, e por isso devemos apostar alto. Mais adiante, a autora enfatiza que “é perfeitamente claro que esse processo tenta conscientemente manter a criança mais velha o mais possível ao nível da primeira infância” (p. 233).

É preciso, portanto, pensar que ao darmos total liberdade para a criação e propagação do mundo das crianças — e com isso fazendo com que todos os processos pedagógicos estejam diretamente relacionados a ele —, estamos abandonando as crianças à própria sorte, nos recusando a ter autoridade, e em razão disso nos recusando “a assumir a responsabilidade pelo mundo ao qual trouxemos as crianças” (ARENDT, 2002, p. 240).

Fernando Savater defende que o ensino “sempre implica uma certa forma de coação, de luta entre vontades. Segundo o autor, “[...] nenhuma criança quer aprender aquilo que lhe dê trabalho para assimilar e que lhe roube o tempo precioso que ela deseja dedicar a seus brinquedos” (2012, p. 86-87). Quanto a essa questão, a própria ideia de ir à escola para brincar é contraditória, considerando que,

[...] a primeira coisa que aprendemos na escola é justamente que não se pode passar a vida toda brincando. O brincar e as coisas que derivam do brincar nós aprendemos sozinhos ou com a ajuda de algum amiguinho; à escola vamos para aprender aquilo que não nos é ensinado em outros lugares (SAVATER, 2012, p. 98-99).

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Essa demasiada ênfase no brincar, bem como as constantes tentativas da escola de tornar-se uma extensão da casa das crianças, vem, além de fortalecer o mundo das crianças, privando-as do direito de irem além, de estarem em contato com o conhecimento poderoso, aquele que transforma qualquer sujeito no que ele quiser ser. Deste modo, penso ser indispensável a compreensão de que a

[...] escola não é (muito) o lugar onde se aprende o que não pode ser aprendido diretamente no próprio mundo da vida, mas sim, o lugar onde a sociedade se renova, libertando e oferecendo seu conhecimento e experiência como um bem comum, a fim de tornar possível a formação (MASSCHELEIN; SIMONS, 2015, p. 161).

Quando fazemos da escola a escola, isto é, quando oferecemos às crianças um tempo produtivo para a atenção e estudo das matérias (MASSCHELEIN; SIMONS, 2014), ou seja, um tempo de formação, estamos oferecendo a elas a oportunidade, talvez única, de serem iguais e de se libertarem das amarras que as condições sociais colocam.

Arendt pontua que “sob o pretexto de respeitar a independência da criança”,

[...] ela é excluída do mundo dos adultos e mantida artificialmente no seu próprio mundo, na medida em que este pode ser chamado de um mundo. Esta retenção da criança é artificial porque extingue o relacionamento natural entre adultos e crianças, o qual, entre outras coisas, consiste do ensino e da aprendizagem, e porque oculta ao mesmo tempo o fato de que a criança é um ser humano em desenvolvimento, de que a infância é uma etapa temporária, uma preparação para a condição adulta (2002, p. 233).

Isso significa que é preciso conduzir as crianças para essa experiência de conhecer e renovar o mundo, e isso não pode se realizar brincando o tempo todo, como o ideário pedagógico atual muito defende. A escola não pode se constituir em um espaço de recreação, e sim como um tempo e espaço para ir desenvolvendo um pensamento crítico, ético e maduro em relação ao mundo, e isso só se torna possível através do engajamento com o conhecimento, que requer adultos responsáveis, que assumam a autoridade necessária para a condução das crianças. É sobre a ideia de condução que pretendo tratar no capitulo que segue.

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“Antes de mais nada, a educação é a revelação dos outros, da condição humana como um concerto de cumplicidades inevitáveis”.

(Fernando Savater) Dentre todas as características que nos fazem humanos, o fato de nascermos com o potencial ilimitado para a aprendizagem é o que permite que nos tornemos seres humanos de forma efetiva. Isso porque somente nos tornamos humanos, com valores e princípios que regem essa condição, por meio da educação, onde os que já são humanos ensinam os recém-chegados a realmente chegar a sê-lo. Por isso o fato de ter aprendido antes é o que nos outorga o direito de ensinar. Outros animais também aprendem, como os chimpanzés, por exemplo, porém, os animais têm um aprendizado limitado, que se dá apenas pela imitação. O aprendizado dos humanos, de início, também se dá pela imitação, porém, por possuirmos subjetividades, vamos reconstruindo essas imitações e transformando-as em conhecimento próprio, sendo que esse processo acontece em todos os dias da nossa existência. É Savater que nos traz tal reflexão, explicando-nos o seguinte:

[...] o chimpanzé – como um dos mamíferos superiores – amadurece antes que a criança humana, mas envelhece bem antes, com a mais irreversível das velhices: já não ser capaz de aprender nada novo. Em contrapartida, os indivíduos da nossa espécie permanecem, até o fim de seus dias, imaturos, tateantes e falíveis, mas em certo sentido sempre juvenis, ou seja, abertos a novos saberes (2012, p. 26).

É próprio de nossa espécie o potencial para o aprendizado, o que significa que vamos nos transformando continuamente, conforme vamos construindo novos saberes. Aprendemos a ser humano com humanos. Quanto a essa questão, Savater pontua que “o que é próprio do homem não é tanto o mero aprender, mas o aprender com outros homens, o ser ensinado por eles” (2012, p. 31). Adiante, o autor explica que o nosso professor não é o mundo, as coisas, nem a cultura, mas a “vinculação intersubjetiva com outras consciências”.

A ação de falar com o outro, de expor o que pensamos, é o que nos permite verificar nossas hipóteses, confirmá-las ou revê-las. É pelo diálogo entre a minha subjetividade e a do outro que aprendemos. E o fato de eu estar aqui, neste momento escrevendo esta monografia, somente tornou-se possível à medida que alguém, que já está há mais tempo neste mundo, assumiu a tarefa de me ensinar a

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ser humana, embora essa pessoa, ou essas pessoas, que são a minha família, talvez não tenham tido esse pensamento quando o fizeram.

A questão central que pretendo discutir neste capitulo é a ideia de que aprendemos com alguém, pela vinculação intersubjetiva com outras consciências, e que em algum momento, como aconteceu comigo e com você leitor, alguém (uma ou mais pessoas) assumiu a tarefa de nos conduzir em um caminho que nos levou a sermos o que somos hoje: humanos. Fomos conduzidos para essa aprendizagem, do contrário, não estaríamos hoje aqui, partilhando dos signos que compõem esse mundo humano comum. E vale lembrar que ninguém sabe ao certo como realizar essa condução, e que, portanto educamos as novas gerações conforme o entendimento que temos acerca do que é o humano.

E a quem compete essa tarefa de conduzir os recém-chegados para a humanidade? Levando em consideração que somos todos donos deste mundo, e que por assim ser, temos a responsabilidade de conservá-lo – o que há de mais humano nele – acredito que a tarefa de conduzir para a educação é de todos nós, sujeitos que aprenderam antes, pois somente quem já conhece o caminho pode arriscar-se a ensinar o outro a como chegar ao seu destino, que aqui pode ser considerado como o “chegar a ser humano”. Sobre ser humano, concordo com Savater ao escrever que “consiste na vocação de compartilhar com todos o que já sabemos, ensinando os recém-chegados ao grupo o que devem conhecer para se tornar socialmente válidos” (2012, p. 29). É isso que queremos com a educação.

Considerando que a pedagogia relaciona-se com o termo condução, e que essa é a nossa tarefa enquanto educadores e enquanto geração mais velha, gostaria de discutir aqui três aspectos que acredito serem primordiais para essa tarefa complexa de conduzir os recém-chegados: a) só pode conduzir quem antes já foi conduzido, quem já aprendeu antes; b) a condução exige um espírito otimista, responsabilidade, autoridade e disciplina – esta última por parte dos recém chegados; c) é impossível conduzir alguém para o conhecimento sem o desejo desse sujeito aprendente, sem que entre aquele que ensina e aquele que aprende haja uma cumplicidade. Conduzir implica, portanto, estar junto, andar junto e, para isso, é preciso interesse.

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3.1 Para conduzir é preciso ter sido conduzido

Gostaria de pensar o primeiro aspecto, o de que é pré-requisito para conduzir ou para educar alguém ter sido conduzido, ter aprendido antes, fazendo uma comparação com uma pessoa que conduz em uma dança, e que está a ensinar alguém a dançar. A pessoa que conduz a dança necessita, obviamente, saber dançar, deve conhecer os movimentos, os passos, e com isso fazer com que a música passe por seu corpo, para colocá-lo no ritmo certo. No entanto, saber dançar não significa que essa pessoa possa ensinar alguém a dançar, do mesmo modo que saber sobre um conteúdo escolar não significa que o professor saiba ensiná-lo a seus alunos, mas sem dúvida, sem saber o conteúdo de ensino não é possível ensiná-lo. Apenas quem já aprendeu antes pode causar no outro um sentimento de falta, e é esse que gera o interesse. Por isso, produzir o sentimento de falta é nossa tarefa principal enquanto educadores.

Assim, para nos interessarmos pelo estudo de algo e para aprendermos é preciso de alguém que nos conduza, e que esse alguém, por regra, já tenha aprendido antes, que já tenha sido conduzido, como bem lembra Savater: “o primeiro título requerido para poder ensinar, formal ou informalmente e em qualquer tipo de sociedade é ter vivido: a veteranice sempre é um grau” (2012, p. 29). Quem ainda não viveu – seja viver a vida como viver a experiência de conhecer determinado conteúdo ou uma determinada cultura – não pode saber como ensinar.

Por isso acredito que a tarefa de educar as novas gerações compete aos adultos, e com isso entendo que a ideia esboçada no capítulo anterior, de que deixar as crianças governarem um mundo da infância, com regras definidas por elas mesmas, acreditando que assim constituem-se sujeitos independentes, significa que não fomos capazes de assumir a tarefa de conduzi-las, de caminhar junto com elas nesse nosso mundo.

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3.2 Conduzir: uma questão de responsabilidade, otimismo, autoridade e disciplina

O segundo aspecto significa que a ideia de condução exige responsabilidade, e pode-se ilustrá-la pela ideia de alguém conduzindo um veículo. Sabemos que para conduzir um veículo é preciso conhecer seu funcionamento, como é sua engrenagem, o momento em que devemos acelerar, frear ou trocar de marcha. Sem isso, corremos o risco de ocasionar sérios acidentes, do mesmo modo que quem conduz a educação de crianças e jovens, pois todas as nossas ações estão carregadas de significados, desejos e crenças, e são eles que marcam tanto de forma positiva como de forma negativa nossas vidas. No processo de condução de crianças acontece um processo similar – é importante destacar que não estou querendo comparar veículos com crianças, apenas o que significa conduzir. Se o educador/condutor não conhece o sujeito a ser conduzido/educado, pode causar danos irreversíveis. Mas o “conhecer” aqui se apresenta com outro sentido: Biesta defende que envolver-se em relações educacionais, ser um professor, implica “a responsabilidade por alguma coisa (ou melhor, por alguém) que não conhecemos e

não podemos conhecer” (2013, p. 51 – grifo nosso). E é justamente por não

podermos conhecer aquele a quem conduzimos que é preciso ter responsabilidade, principalmente por que estaremos conduzindo a formação de sujeitos, de suas subjetividades.

Conduzir significa também assumir, estando ciente de que suas ações, suas palavras, suas atitudes, de fato direcionam os seus aprendizes.

O educador deverá compreender o melhor possível as características e aptidões peculiares do neófito para ensinar-lhe de maneira mais proveitosa, porém, isso não implica que aquilo que a criança já é deva pautar o que se pretende que ela venha a ser. A autonomia, as virtudes sociais, a disciplina intelectual, todos os elementos que irão constituir o “ele mesmo” do homem maduro ainda não se encontram no aluno, mas devem ser propostos a ele – e, de certo modo impostos – como modelos exteriores (SAVATER, 2012, p. 91-92).

E é por estas razões que a condução exige responsabilidade, por que estaremos conduzindo, forjando, servindo de modelo para que as crianças consolidem suas personalidades autônomas ou não, disciplinadas ou não, éticas ou não. É preciso, inevitavelmente e de forma imprescindível conhecer as crianças as

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quais iremos conduzir, jamais esquecendo que são crianças, e o que essa fase do desenvolvimento humano significa. Como bem lembra Savater (p. 63-64), “as crianças – essa obviedade é frequentemente esquecida – são educadas para serem adultas, não para continuarem crianças. São educadas para crescerem melhor, não para não crescer [...]”. E é com o intuito de que cresçam melhor, que recorremos à autoridade, para “ajudar a crescer”. Como também argumenta Arendt (2014, p. 239), a autoridade do professor “se assenta na responsabilidade que ele assume por este mundo. Face a criança, é como se ele fosse um representante de todos os habitantes adultos, apontando os detalhes e dizendo à criança: - Isso é o nosso mundo”.

Quanto a essa responsabilidade incumbida aos que conduzem, corroboro com as ideias de Savater e a leitura que este traz em relação ao pensar de Arendt, pois:

Quem pretende educar torna-se, de certo modo, responsável pelo mundo diante do neófito, como bem observou Hannah Arendt: se lhe repugna esta responsabilidade, é melhor dedicar-se a outra coisa e não atrapalhar. Ser responsável pelo mundo não é aprova-lo como ele é, mas assumi-lo conscientemente porque ele é e porque só a partir do que é pode ser emendado (2012, p. 140).

Entende-se, assim, que é uma tarefa muito séria e necessária contar o mundo às novas gerações, sendo que nessa ação devemos considerar o passado, que permitirá às novas gerações tomarem conhecimento dos desfechos que a humanidade foi tomando, bem como apresentar-lhes o presente, repleto de possibilidades, apesar deste mundo se encontrar em ruínas. Assim, “para que haja futuro, deve-se aceitar a tarefa de reconhecer o passado como próprio e oferecê-lo aos que vêm depois” (ARENDT, 2002, p.140).

Nessa tarefa de andar junto com as novas gerações, denominada aqui de condução, apresentando-lhes um caminho já trilhado e uma encruzilhada nova com várias direções, é imprescindível que haja otimismo, pois sem ele não poderemos educar, visto que isso implica confiar nas novas gerações, sabendo que renovar o mundo somente pode se tornar possível através delas. É preciso ser otimista, acreditar que ainda há neste mundo coisas valiosas, e que precisam ser conservadas, e é por isso que Arendt compreende que a educação necessita ser

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conservadora, para preservar a novidade que cada criança traz consigo. Savater nos lembra dessas questões, ao escrever que:

[...] o ensino pressupõe o otimismo, tal como a natação exige um meio liquido para ser exercida. Quem não quer se molhar, que abandone a natação; quem sente repugnância diante do otimismo, que deixe o ensino e que não pretenda pensar em que consiste a educação. Pois educar é crer na perfectibilidade humana, na capacidade inata de aprender e no desejo de saber que anima, é crer que há coisas (símbolos, técnicas, valores, memórias, fatos...) que podem ser aprendidos e que merecem sê-lo, que nós homens, podemos melhorar uns aos outros por meio do conhecimento (2012, p. 21).

Já destacamos que conduzir a aprendizagem de alguém, ou melhor, conduzir alguém para o conhecimento, para que esse sujeito que aprende possa conhecer o mundo, exige autoridade, mas penso que ainda há muito que ser dito em relação a esse termo tão polêmico. Assim, gostaria aqui de pensar também a autoridade no sentido de fazer uso da palavra, para poder contar o mundo às novas gerações. Ela é essencial na condução das crianças, considerando que toda criança é um recém-chegado nesse mundo, e que por mais que já tenha construído alguns conhecimentos acerca deste, ainda é imatura, no sentido de não saber o que propriamente é o mundo.

É pela autoridade que exercemos a condução desse processo de apresentar o mundo às novas gerações, e é por ela que somos autorizados a usar as palavras para cumprir com essa nossa tarefa. Para podermos fazer com que as crianças se interessem por conhecer o mundo, é preciso que usemos de nossa autoridade, uma vez que a criança não se interessa pela sua educação, nem poderia, pois a educação é de interesse dos adultos, para conservar o mundo e proteger as novas gerações.

É importante lembrar que as crianças não se interessam por coisas que não conhecem, e os conhecimentos que pretendemos ensiná-las na escola, são de fato desconhecidos. Por isso que a autoridade se faz indispensável, pois com ela somos autorizados a conduzir as crianças para esses conhecimentos, somos autorizados a fazer uso das palavras, a ensiná-las. Digamos que a criança “não sente falta dos conhecimentos que não tem [...] é o educador quem dá importância à ignorância do aluno, porque valoriza os conhecimentos que lhe faltam” (SAVATER, 2012, p. 90). Valendo-se deste pensar, nós, educadores/condutores de nossas crianças

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insistimos na educação, porque reconhecemos a importância do que queremos ensinar, e sabemos que o esforço para que as crianças o aprendam é sempre valido. Deste modo, é preciso considerar que “não se pode exigir que a criança anseie por conhecer aquilo que ela nem sequer vislumbra, a não ser por um ato de confiança nos adultos e de obediência à sua autoridade” (SAVATER, 2012, p. 90).

A atenção exigida para que se aprenda sobre o mundo, para que se alfabetize, para que aprendamos a dirigir, não pode ser alcançada sem que se exija de quem aprende certa disciplina. Ter disciplina é essencial na tarefa de se ater ao estudo de algo. Porém, devemos levar em consideração que o ensino, justamente por exigir disciplina, será visto por qualquer criança como chato, enfadonho, e até mesmo como uma forma de coação. Só à medida que os anos passam as crianças poderão entender que essa disciplina foi fundamental e que sem ela não teriam chegado a ser o que são, ou, então, arrependerem-se de não estarem como gostariam de estar.

Por essas razões não podemos negar a importância de exigirmos essa disciplina necessária para os estudos, porque nós sabemos o quão essencial e indispensável ela é em nossas vidas adultas, e por isso aceitamos essa tarefa de exigi-la, pelo bem de nossas crianças. Isso porque, como veteranos, sabemos que a prática e o estudo não existem sem alguma forma de disciplina, sem seguir e obedecer algumas regras (MASSCHELEIN; SIMONS, 2015, p. 64).

Com as muito defendidas teorias da Escola Nova, abrimos mão inteiramente da disciplina indispensável ao estudo, para apostarmos todas as nossas fichas nas teorias cognitivistas da aprendizagem prazerosa, “significativa”, e no “aprender a aprender”. Assim, abrimos mão da autoridade, pois ela passou a ser vista como sinônimo da educação tradicional, sendo que todos os processos e tudo o que era considerado tradicional foi dispensado. Ao dispensarmos a autoridade dispensamos também tudo o que ela significa, ou seja, abrimos mão de nossa responsabilidade com o mundo e com as novas gerações.

Sabemos, porém, que ter autoridade e exigir a disciplina de nossas crianças não é tarefa fácil, uma vez que ambos os termos parecem remeter ao ensino

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tradicional. No entanto, é preciso entendermos que eles representam o esforço dos adultos em formar sujeitos livres. Savater já dizia que:

O paradoxo de toda formação é que o eu responsável se forja a partir de escolhas induzidas, pelas quais o sujeito ainda não se responsabiliza. O aprendizado do autocontrole inicia-se com as ordens da mãe, que a criança interioriza mais tarde numa estrutura psíquica dual que a torna ao mesmo tempo emissor e receptor de ordens: ou seja, ela aprende a mandar em si mesma obedecendo aos outros. As crianças crescem em todas as latitudes como hera na parede, ajudadas por adultos que lhes oferecem ao mesmo tempo apoio e resistência. Se não tiverem essa tutela nem sempre complacente, poderão deformar-se até a monstruosidade (2012, p. 101).

Quando li essa ideia pela primeira vez, pensei ser algo revolucionário, pois nos dias atuais, o fato de que a criança aprende a mandar em si mesma obedecendo aos outros, embora seja uma grande verdade, não é levado em consideração. Com a ideia de que devemos deixar as crianças serem “livres” e que a autoridade dos adultos impede que se tornem sujeitos autônomos, parece-me que estamos nos negando a conduzir nossas crianças, que estamos nos eximindo dessa tarefa. Nesse sentido, recorrer ao seguinte pensamento de Savater permite analisar melhor o que defendemos como autoridade: “a autoridade dos adultos se propõe às crianças como uma colaboração necessária para elas, mas em certas ocasiões também deverá se impor” (2012, p. 101). Visto desta forma, o termo assume um sentindo muito pertinente, pois vem carregado do sentido de cumplicidade, de cuidado e, portanto, de condução.

3.3 Conduzir é andar junto, é tornar-se cúmplice

Conduzir é levar para um outro lugar. É profanar a realidade e suspender o que prende as crianças a ela. Significa assim fazer a transição de sua condição de criança, que conhece apenas a sua realidade vivida, para a condição de aluno, entrando em um processo de desvendar os mistérios do mundo. Mas é preciso enfatizar: como na dança de salão, que exige mais de uma pessoa disposta a dançar, na educação é preciso mais de uma pessoa disposta a conhecer.

Assim, pode-se afirmar que a educação exige cumplicidade para andar junto em um mesmo caminho e um bom nível de afeto, de entrosamento, de interesse.

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Esse interesse deve ser criado pelo professor, assim como na dança, onde o dançarino/condutor, pela maneira majestosa com que se envolve com a música, coloca o outro em interesse. O convida a dançar junto. O condutor, nesse caso, cria a oportunidade para que o interesse nasça no outro sujeito. Do mesmo modo, o educador, ao mostrar aos seus alunos sua relação com os conteúdos de ensino, seu amor e dedicação para com eles, oferece às crianças um tempo que chama para o interesse, e essa é uma das nossas responsabilidades: “estimular o interesse, e isso significa conceder autoridade às palavras, às coisas, e às maneiras de fazer as coisas que estão fora de nossas necessidades individuais e que ajudam a formar tudo o que é partilhado “entre nós” no nosso mundo comum” (MASSCHELEIN; SIMONS, 2015, p. 101-102). Para cumprir com essa responsabilidade é preciso ter clareza de que só se pode criar interesse pelo mundo comum mostrando seu próprio amor por esse mundo, como nos indicam Masschelein e Simons (2015, p. 102).

Exige-se, assim, do condutor/educador um esforço em suscitar o desejo de conhecer em seu aluno, e que a ele solicite cumplicidade, pois sem esse pressuposto será muito difícil, para não dizer impossível, que a atenção para conhecer o mundo aconteça. Além da cumplicidade, a confiança também se faz necessária, uma vez que as crianças não sabem por que estão aprendendo, ou o que esses conhecimentos representam para sua vida. Como lhes pedimos disciplina e atenção, elas poderão ver o educador como um tirano, culpando-o por sua “infelicidade”, alegando que tal esforço é entediante – principalmente porque são crianças e gostariam de passar a maior parte do tempo brincando. Há uma passagem de Savater (2012, p. 90) que reflete muito bem essa questão:

O neófito começa a estudar em certa medida à força. Por quê? Porque lhe é pedido um esforço, e as crianças só se esforçam voluntariamente naquilo que as diverte. A recompensa que coroa o aprendizado é demorada e, além do mais, a criança só a conhece de ouvir falar, sem entender muito bem do que se trata. Os estudos são alguma coisa que interessa os adultos, não a ela. Não é que as crianças não desejem saber, mas sua curiosidade é muito mais imediata e menos metódica do que o necessário para aprender [...].

Justifica-se por esse pensar a necessidade de que haja cumplicidade entre ensinante e aprendente para que a confiança desse elo torne possível a educação, para que o aluno confie que, por mais que esse esforço hoje lhe pareça perturbador, sem dúvidas ele apresentará um ganho no futuro. Como escreve Boufleuer,

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A qualidade da ação pedagógica não pode ser confundida com uma satisfação imediata por parte do aluno. Este, geralmente, só mais tarde tem condições de fazer uma boa avaliação do trabalho docente, quando é capaz de reconhecer, por exemplo, que valeu a pena ter tido determinadas aulas, que valeu a pena o investimento e esforços feitos (2013, p. 109).

Quando os alunos conseguirem fazer essa reflexão, de que suas aprendizagens em situação pedagógica lhe trazem conhecimentos que permitem compreender mais e melhor o mundo, ou seja, quando reconhecerem que todo conhecimento é valido, o professor terá cumprido com sua tarefa suicida, de se tornar indispensável para seus alunos. O professor, diante dessa situação, poderá dizer que contribuiu com a formação de sujeitos pensantes em sintonia como uma objetividade do mundo, capazes de compreender as diferentes manifestações culturais, sociais e econômicas que constituem a vida humana, e de refletir criticamente sobre elas.

A formação, nesse sentido, envolve “sair constantemente de si mesmo ou transcender a si mesmo – ir além do seu próprio mundo da vida por meio da prática e do estudo” (MASSCHELEIN; SIMONS, 2015, p. 49). E é para esse ir além que conduzimos nossos alunos para leva-los a um outro patamar, diferente de suas realidades vividas. Mas isso somente se torna possível à medida que libertamos para eles os conhecimentos acerca do mundo, à medida que colocamos algo na mesa, quando oferecemos algo que desperte o interesse deles:

É algo que começa a formá-lo, produz mudanças nele, muda a maneira como a sua vida e o mundo realmente aparecem para ele e lhe permitem começar de uma nova forma “com” o mundo [...] o próprio mundo é tornado aberto e livre e, portanto, compartilhado e compartilhável, algo interessante ou potencialmente interessante: um objeto de estudo e de prática (MASSCHELEIN; SIMONS, 2015, p. 50-51).

4 O AGIR DA ESCOLA PAUTADO NO PRINCÍPIO DA IGUALDADE: UNIVERSALIZAR É PRECISO

“Só voltando à raiz comum que nos faz parentes, nós, os seres humanos, poderemos ser hóspedes uns dos outros, cúmplices de necessidades que conhecemos bem, e não estranhos encerrados na fortaleza inacessível de nossa peculiaridade”.

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Fernando Savater em O Valor de Educar defende que o ideal básico que a educação atual deve conservar é promover a universalidade democrática, e isso significa, na educação,

(...) colocar o feito humano – linguístico, racional, artístico – acima de seus modismos; avaliá-lo em seu conjunto antes de começar a ressaltar suas qualidades locais, e sobretudo, não excluir ninguém a priori do processo -educacional que o potencializa e desenvolve (2012, p. 143).

Universalizar a educação, nesse sentido, consiste em terminar com todas as manobras discriminatórias, e embora que as etapas mais avançadas de ensino possam ser seletivas, “o aprendizado básico dos primeiros anos não deve ser recusado a ninguém, nem deve pressupor que alguém nasceu para muito ou para nada” (SAVATER, 2012, p. 143).

O ensino que vem acontecendo ao longo da história vem perpetuando uma fatal hierarquia socioeconômica, ao passo que deveria oferecer possibilidades de mobilidade social e um equilíbrio mais justo. De fato, a igualdade, principio primeiro

de toda a educação, não vem acontecendo. É recorrente encontramos nas

instituições de ensino discursos que tentam justificar o fracasso da escola, atribuindo este às dificuldades socioeconômicas das famílias, à falta de “estrutura familiar”, ao descompromisso das famílias com a escola e com a educação de seus filhos. Estas falas estão quase que enraizadas, e vem contribuindo para o que podemos chamar de “lavar as mãos” com a educação de crianças.

Sim, é certo que as dificuldades econômicas e sociais das famílias brasileiras vêm influenciando significativamente na vida escolar das crianças, e que este é um problema urgente. É muito triste, desnorteador e preocupante quando nossos alunos vão à aula com fome, ou com poucas roupas no frio, ou sabermos que sofrem abusos de todas as ordens em suas casas. De fato, na prática docente passamos por inúmeras situações desafiadoras que nos fazem pensar acerca da sociedade e do humano. A desigualdade social já é um problema histórico, que tomou enormes proporções e, infelizmente, está em evidencia nas escolas – embora isso jamais pudesse acontecer. Como educadores otimistas e que confiam na educação e em seu papel formador, esse cenário nos indigna e nos faz querer ajudar, da forma que for possível. E vemos muito nas escolas esse olhar sensível que tenta ajudar essas crianças, transformando a instituição num segundo lar, num lugar de proteção. Não

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