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2 ANÁLISE DO DISCURSO: DA TEORIA FUNDANTE AO DISCURSO

3.1 A ‘IDENTIDADE PULVERIZADA’ DA MULHER GUARATIBANA: UM

3.2.2 S ENTIDO PSICODINÂMICO DA CATEGORIA “M ENINA DA F UNDAÇÃO ”

3.2.2.2 Conectadas pela trajetória de vida e pela situação de violência

Em um contexto bem diferente, Rosa também reconhece que poderia ter sido uma “Menina da Fundação” e durante toda a sua narrativa se identifica na história de vida das “Meninas da Fundação”, fato que faz com que ela se emocione diversas vezes durante a entrevista. Rosa sempre viveu na região de Guaratiba, mas quando se mudou para Pedra de Guaratiba, região em que está situada a Fundação Angélica Goulart, ela estava se preparando para cursar o ensino médio, relatou que tinha muitas tarefas e os horários não permitiam que ela fizesse nada além dos compromissos escolares. Desse modo, ela nunca foi uma usuária dos serviços da Fundação, mas seu contato com a instituição começou ainda em sua juventude, quando aos 18 anos passou em um processo seletivo para ser estagiária de informática em um projeto oferecido pela Microlins às crianças e adolescentes dos projetos da Fundação. Ela desempenhou a função de estagiária por um pouco mais de um ano, período em que passou no vestibular para cursar educação física na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ).

123 [...] eu vivi em uma família, em um contexto familiar que era, que é conservador, que eu passei por violência dentro de casa. Para você entender [voz trêmula, começa a chorar], meu pai agrediu minha mãe por muito tempo, teve uma época que ele quase chegou a matar ela e... a gente saiu de casa, só que meu pai trabalhava o dia inteiro, e eu também não aguentava ver o rosto da minha mãe da forma como ela ‘tava’ [...] eu não ficava com meu pai, e eu não sabia lidar com aquela situação toda. E eu não queria que minha mãe voltasse para o meu pai, e eles voltaram. E no final, eu fiquei muito magoada, porque a resposta dela foi que ela voltou por causa da gente, e eu falei que: "não, e não foi por causa dela". Hoje em dia, eles estão juntos, meu pai mudou muito (muito). Mas, a realidade é que muitos homens não mudam da forma como meu pai mudou. Hoje minha mãe poderia estar morta. E eu iria culpar meu pai eternamente. Eu queria que ela continuasse com o processo aberto, porque ela também retirou a queixa. Mas não foi por uma questão de eu não gostar do meu pai, é porque o que ele fez ‘tava’ errado, ele tinha que pagar. E ela retirou. [...] a gente [ela e os irmãos] teve que amadurecer muito rápido em relação a várias situações [...] e quando eu vou para a Rural [UFRRJ], eu começo a me desenvolver um pouco, fico mais crítica em relação a várias coisas e tudo mais. Quando eu retorno para a casa, as pessoas falavam: "nossa, como você ‘tá’ diferente, Rosa!". Eu: "não gente, eu não ‘tô’ diferente, eu só desenvolvi certas capacidades, habilidades, comecei a me conhecer enquanto pessoa, enquanto mulher mesmo, de uma forma que eu não teria se eu continuasse aqui dentro [em casa]". Se todas as dificuldades que eu passei para ir para a faculdade, para me deslocar, que aqui [em Pedra de Guaratiba] é tudo-, aqui é longe de tudo, se eu não tivesse vivenciado isso, eu não saberia a capacidade que eu tenho para conquistar o que eu posso conquistar, sabe? É difícil, é difícil. Talvez no futuro eu seja muito pobre, mas eu sei que eu sou capaz de continuar. E quando eu retorno para cá, para Guaratiba, a realidade de muitas meninas é essa, só que elas também não têm uma referência, um referencial. Quando a gente trabalhava [no programa de empoderamento] com as meninas de uma idade mais avançada e elas traziam essas questões: "que eu quero, mas não dá, e tal...". Eu sempre entendia elas, e sempre me dava uma vontade de chorar quando eu falava nas sessões [do programa], e falava "vai ser sempre muito difícil, não vou ser muito utópica com vocês, mas é possível". E eu começava a chorar, e quando eu começava a chorar era um tal de "caramba! A Rosa era menina daqui da... Da região de Guaratiba, começou aqui na Fundação, e olha como ela ‘tá’, como ela fala, sabe?" E elas começavam a se colocar nesse mesmo perfil que eu me enquadrava. Ah, gente! Não é fácil. Você vai para uma faculdade, as pessoas esbanjam muito

124 dinheiro, e elas têm uma bolsa que você sabe que é necessária para você, só que elas viram para você e falam: "ah, minha bolsa chopada!". Para você é sua bolsa de vida, para elas é a bolsa chopada. "Você compra livros com a sua bolsa?", e eu "aham", "ah, eu compro perfume [com a voz trêmula, Rosa começa a chorar]". E quando eu retorno para Guaratiba e eu trabalho em um projeto assim, a minha realidade é a realidade delas, e o que eu mais quero é que elas sigam e evoluam comigo, sabe? Da mesma forma, com todas as oportunidades que eu tenho, que elas consigam também [choro]. Então é isso o que eu vejo na Fundação, sabe? De uma forma, ela une as meninas que passaram, que veem uma luz no fim do túnel, sabe? De progresso, de sair desse contexto de violência que eu passei, que elas passam. (Entrevista realizada em outubro de 2019)

Rosa também identificou que poderia ser uma “Menina da Fundação”, nesse sentido ela afirma que:

[...] eu acho que eu poderia ter sido uma menina da Fundação. Quando eu entrei na Fundação com o vínculo já empregatício de estágio eu tinha ciência de várias questões por ter vivido né? Casos de agressão dentro de casa, e tudo mais, só que eu não tinha desenvolvido realmente habilidade para verbalizar, para buscar auxílio de uma forma mais verbal e tudo mais. E aí na Fundação eu fui conhecer, né? Estive em um ambiente onde além de ter pessoas que viabilizassem a busca, dentro de questões mais burocráticas, a Fundação nessa época era muito, muito, muito rígida assim em relação a questões burocráticas para auxílio de situações de violência. Então eu poderia ter tido esse contato um pouco maior e um espaço em que realmente eu fosse me sentir confortável sabe? Sem me sentir exposta e um espaço que eu pudesse desenvolver outras habilidades, de arte e tudo mais e eu pudesse de uma certa forma não dissipar, mas controlar toda a minha angústia. Toda a angústia que eu tinha naquela época, toda a raiva por não saber processos realmente. De manejo, com quem eu posso falar tudo o que eu sinto e tudo mais. E aí quando eu vejo as meninas da Fundação com as mesmas questões que eu tinha na época, eu fico pensando “imagina realmente se eu estivesse aqui antes [como usuária dos serviços]. Então não só pela particularidade, mas pela semelhança que eu vejo das meninas com a minha trajetória, então, eu sim, poderia ter sido uma menina da fundação. (Entrevista realizada em outubro de 2019)

125 Diferente de Bianca, a Rosa não apresentou em sua fala uma identificação emocional com o território, com o vínculo familiar de pertencimento. No entanto, a profissional apresenta uma forte identificação com a trajetória de vida das meninas atendidas pelos projetos e programas da Fundação.

Ao longo do trabalho de campo, pude perceber que as práticas institucionais contribuem para que essa conexão emocional apareça, uma vez que é o discurso da instituição busca construir relações mais horizontalizadas do que aquelas estabelecidas em outras instituições, como a família e a escola, ainda que existam hierarquias institucionais. Existe ainda uma cultura organizacional da Fundação em contratar ex-alunas/alunos e profissionais que vivem na região, segundo o relato das profissionais entrevistadas e a análise do quadro de funcionários. Além disso, as categorias institucionais que organizam o trabalho da Fundação acionam sentidos de vínculo comunitário, de pertencimento e valorização do território local. Apesar de a identificação psicodinâmica com a categoria “Menina da Fundação” não representar um modo de identificação institucionalizado, ele nos permite compreender os processos ambivalentes e modos de identificação alternativos envolvidos nas práticas cotidianas, como apresentado por Brubaker e Cooper (2000) que não seriam possíveis compreender a partir de uma análise totalizante de “identidades”.

3.3 O OLHAR DE DENTRO. “MENINAS DA FUNDAÇÃO”: SUJEITO

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