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2 ANÁLISE DO DISCURSO: DA TEORIA FUNDANTE AO DISCURSO

3.1 A ‘IDENTIDADE PULVERIZADA’ DA MULHER GUARATIBANA: UM

3.2.2 S ENTIDO PSICODINÂMICO DA CATEGORIA “M ENINA DA F UNDAÇÃO ”

3.2.2.1 Conectadas pelos laços afetivos com o território

Bianca durante a entrevista me conta sobre as origens de sua família e revela que sua mãe, assim como todos os seus tios, nasceu e viveu parte de sua adolescência em Pedra de Guaratiba. Sua mãe saiu aos 14 anos do bairro para trabalhar em um supermercado de Copacabana, na zona sul do Rio de Janeiro, em busca de “uma vida melhor”, e muda seu padrão de vida se tornando modelo. Sobre seu contexto familiar, Bianca relata que:

[...] no finalzinho da vida do meu avô ele se aposenta criando bode, ele vira criador de bode e pescador. E aí um lugar bom para pesca na zona oeste, era Pedra de Guaratiba e ele vai para lá. Pedra de Guaratiba era como se fosse um balneário, era um lugar lindo, com a natureza muito abundante, muita pesca, muito peixe e um lugar muito de roça, né? Uma vila pesqueira! E aí meu avô se identifica com aquele território e compra uma casinha a uma rua da Fundação – na época só existia o terreno, a Fundação só começou a funcionar no local décadas depois – [...] então a minha mãe nasceu ali no território de Pedra de Guaratiba [...] ela estudou só até a 4ª série primária, ela mal sabe escrever [...] aos 14 anos ela sai para trabalhar em um mercado da zona sul do Rio de Janeiro, trabalho infantil mesmo, e vai morar em um pensionato. [...] aos 18 anos ela vira Miss Campo Grande e isso transforma a vida dela em termos de oportunidades. Ela ganhou um curso de datilografia e através desse curso ela foi trabalhar em um escritório e conhece o meu pai, que é um advogado 20 anos mais velho do que ela. E aí ela tem um novo destino de oportunidades a partir da submissão. Esse é o destino que minha mãe consegue como saída para obter os objetivos financeiros e de sonhos que ela tinha, ela é sonhadora até hoje. Ela então casa com meu pai, ele não era nem um cara

120 ricão não, meu pai veio do Pará de uma situação bem de pobreza do Norte, se torna advogado depois de 50 anos de idade. Então eles se identificavam muito nessa questão de luta, da meritocracia. Era um lugar social que não veio herdado de ricos da zona sul. Nisso, eu sou uma última filha de 4 filhos, de um pai que conseguiu pagar escola particular ‘pra’ mim, apartamento próprio ‘pra’ mim, eu nasci em um apartamento da zona sul grande, com escola particular, coisa que nem meus primeiros irmãos tiveram oportunidade de ter. (entrevista realizada em abril de 2019)

Nesse contexto, do que ela mesmo chama de privilegiado, Bianca se forma em psicologia pela PUC Rio e nos primeiros anos de formação trabalha em uma organização da sociedade civil que atuava com crianças que viviam em comunidades em situação de violência armada. Três anos após sua formação, recebe o link da vaga para atuar como psicóloga na Fundação Xuxa Meneghel, enviado por uma professora da universidade que sempre ouviu Bianca discutir sobre a necessidade de olhar para Guaratiba e outros bairros da zona oeste do Rio como um território da cidade onde não chegavam políticas públicas ou tinha visibilidade pela mídia. A profissional afirma que “as pessoas tinham dificuldade até de reconhecer que Guaratiba fazia parte do Rio”. (trecho da entrevista realizada em abril de 2019).

Sobre sua identificação com o território e com as “Meninas da Fundação”, Bianca diz que:

[...] na verdade, Guaratiba é um lugar da minha história de vida familiar e afetiva, é o meu lugar e meu território também porque minha mãe cresceu em Pedra de Guaratiba. Quando eu me formo na PUC, uma faculdade particular, com 23 anos, alguns anos depois, uma professora de psicologia comunitária que sabia toda minha trajetória no trabalho social, ela me envia uma vaga na Fundação Xuxa Meneghel escrevendo assim: “esse lugar é seu, essa vaga é para você”. Aquilo bateu muito forte em mim no sentido de que eu tinha um compromisso de desenvolver aquele território com um pouco de privilégio que eu pude acessar. Por isso são tantos anos de tanta dedicação, porque eu tento devolver para aquele território, eu seria uma menina da Fundação. A minha mãe poderia ser a mãe de uma Muriel, assim, as minhas primas são Pedra de Guaratiba, as minhas tias estão em Pedra de Guaratiba. Eu sou uma filha nata [com ênfase] de Pedra de Guaratiba. O presidente da

121 Fundação que é nascido lá [em Guaratiba], ele fala: “A Bianca é a pessoa mais raiz que a gente tem na Fundação, porque ela é dos anos 40 de Pedra de Guaratiba [alusão aos avós que chegaram nessa época]. Meu avô chegou lá para morar quando não tinha nada lá naquela região. Ele botou o nome dos filhos dele em homenagem ao padroeiro daquela região. Eu lembro o quanto que lá quando eu visitava a minha avó eu me sentia pertencente e no meu condomínio de grades na zona sul eu não me sentia pertencente. Para mim, quando eu estava ali eu era uma criança igual os meus primos, eu me sentia como eles. (Entrevista realizada em abril de 2019)

Bianca continua relatando suas memórias de quando retornou para o território de Guaratiba para realizar a entrevista para ocupar a vaga na Fundação. Enquanto Bianca fala parece que ela está revivendo a memória:

[...] foi muito emocionante para mim fazer aquele trajeto de volta para o território. Já adulta, já formada. Eu acredito que eu estava com mais ou menos 25 anos e já tinha mais de 10 anos sem ir na Pedra [Pedra de Guaratiba]. Então foi muito emocionante fazer esse trajeto de volta, né, eu pegar o mesmo ônibus. Eu lembro que lá nos anos 90 só tinha um ônibus para ir para Guaratiba que era um frescão [ônibus executivo] que se chamava Pégasus. Ele era um frescão assim grande e quando retorno para fazer a entrevista continuou sendo a única forma de chegar na Pedra, era o mesmo frescão. Lógico que mais atualizado, mas era o mesmo ônibus e aí eu me senti na infância, voltando para aquele território, para aquela região tão bonita, entrando de novo naquele bairro de Guaratiba. Eu lembro que quando eu fui parecia que o tempo tinha parado, que não tinha passado mais de uma década, porque parecia a mesma região. Muita pouca coisa construída, eu lembro que eu fiquei bem impressionada com isso. Quando eu atravessei a serra, porque ainda não tinha o túnel da Barra da Tijuca ‘pra’ lá, quando eu atravessei a Serra da Grota Funda eu lembro que parecia que eu estava entrando no portal do tempo. Eu cheguei lá [em Pedra de Guaratiba] estava amanhecendo e ainda estava muito cedo, aí eu senti, não sei, fui visitar a casa da minha avó. Eu subi assim, antes da entrevista, eu vivi esse momento de conexão com a comunidade, eu vi a igreja de São Pedro, subi na rua e achei a casa dos meus avós, abandonada, olha só que barato, lá em cima. Aí eu visualizei a Fundação toda de cima e aí eu sei, Jane, que antes de entrar para a entrevista eu falei: “eu vou trabalhar aqui e eu vou devolver ‘pra’ esse território, de alguma forma, o privilégio que eu pude

122 usufruir”. Eu senti meio que como um propósito mesmo, assim, como um propósito profissional, algo que me engajava. Trabalhar, devolver ‘pra’ aquele território de alguma forma as oportunidades que eu tinha conseguido acessar. (Entrevista realizada em abril de 2019)

Pela narrativa da profissional, suas lembranças da infância e os laços afetivos construídos com a região por meio dos vínculos familiares faz agir um sentido psicodinâmico da identificação a qual, mesmo sendo de uma origem socioeconômica oposta à das usuárias dos serviços da organização, reconhece que poderia ser uma “Menina da Fundação”, pois se reconhece no território de Guaratiba o seu lugar de pertencimento. Pelo seu sentimento de pertencimento, ela relata que se sente no compromisso de desenvolver o território.

3.2.2.2 Conectadas pela trajetória de vida e pela situação de violência doméstica

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