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Conexões com o surgimento da guitarra barroca

No documento Folias de Espanha: o eterno retorno (páginas 52-58)

46 SALINAS, 1958 47 HUDSON, 1972, p.403.

1.6 Conexões com o surgimento da guitarra barroca

O surgimento de um novo instrumento também parece estar diretamente associado ao surgimento da Folias de Espanha em sua forma definitiva: a guitarra de 5 ordens59.

Durante a Idade Média, existiram guitarras de três, quatro e cinco ordens, sendo que durante o século XV, a de quatro ordens se sobressaiu em termos de popularidade. Uma versão aperfeiçoada da guitarra renascentista de quatro ordens surgiu no século XVII, com a adição de uma quinta corda, talvez introduzida por Vicente Espinel (1550-1624), que abalou consideravelmente a soberania do alaúde como instrumento da classe nobre na Europa e fazendo dela um instrumento indispensável em qualquer corte. O número de compositores, executantes e construtores aumentou consideravelmente.

A primeira evidência da guitarra de cinco ordens provém de uma gravura italiana do século XV. O novo instrumento parece ter o mesmo tamanho dos violões atuais, diferindo apenas no tamanho maior da caixa de ressonância. Sua excelente construção chama a atenção para o artesanato sofisticado pelo qual os construtores italianos eram conhecidos.

A guitarra de cinco ordens foi, portanto, o resultado direto do desenvolvimento daquela de quatro ordens. A afinação da guitarra de cinco ordens era A D G B E. Sendo idêntica à afinação daquela de quatro ordens, a quinta corda foi apenas adicional. Ela emergiu da Itália para uma crescente popularidade no século XVI em toda Europa. O novo instrumento passou rapidamente a gozar de considerável importância na vida musical italiana da época. O grande número de compositores e guitarristas vivendo na Itália, e os

of the several Portugal guitar collections of the early eighteenth century, often present chordal sequences that are very similar to those of the Folia, even when they combine them with non-European rhythmic and melodic patterns. That is the case of an Andean Cachua extracted from the collection of Amerindian songs and dances assembled in the mid-eighteenth century by the Peruvian Bishop Baltazar Martinez Companon, which corresponds to a true reprocessing of the Iberian original model at the hands of Amerindian musicians.”

vários instrumentos remanescentes atestam que este país foi o maior centro guitarrístico no século XVII.

O fator mais importante que conduziu à popularidade da guitarra e ao enriquecimento de sua literatura foi a introdução do estilo dedilhado, proveniente da Espanha. O estilo de toque dedilhado substituiu o rasgueado que dominava a prática italiana no século XVI. A técnica dedilhada, por sua vez, era derivada da escola da vihuela adaptada à guitarra pelos espanhóis60. Por essa razão, a guitarra passou a ser chamada na Itália de Chitarra Spagñuola. Assim que os italianos adotaram o termo “guitarra espanhola”, houve uma gradual consolidação que a tornou padrão em vários países no século XVII, perdurando até hoje61.

Fig.1.15: Dois rascunhos de um guitarrista por Antoine Watteau (1684-1721), início do século XVIII (British Museum, Londres), em que observamos duas técnicas de execução da guitarra: perto do cavalete (para o estilo

punteado) e acima da roseta (para o rasgueado)

Os grandes mestres da guitarra barroca de cinco ordens que publicaram métodos dedicados ao ensino do instrumento, como Gaspar Sanz e Francesco Corbetta (1615-1681),

60 Os estilos dedilhado e rasgueado coexistiram na Itália do século XVII. O dedilhado era escrito em tablatura

e os acordes rasgueados eram indicados através de uma notação especialmente desenvolvida pelos compositores dos séculos XVI e XVII, feita pela conversão de letras maiúsculas por acordes pré- determinados, método hoje conhecido como Cifras.

incluíam instruções detalhadas sobre improvisação e execução em tablatura e notação modernas, em ambos os métodos: dedilhado e rasgueado.

A maioria dos métodos para esse novo instrumento incluía exemplos de acompanhamentos rasgueados baseados em canções conhecidas, e como já vimos, a Folia já era um tema favorito. Desse modo, não apenas a guitarra “espanhola” foi importada da Itália para os demais países, como a própria Folia, que passou a ser designada com o mesmo sufixo: “de Espanha”.

Várias peças escritas entre o final do século XVII e início do XVIII alternavam entre a Folia e a Folias de Espanha, com distinções bem definidas entre os dois padrões. Porém, as obras que continham passagens em estilo rasgueado eram precariamente notadas, o que dificulta uma comparação mais detalhada no aspecto rítmico62.

Richard Hudson propôs uma teoria que pode explicar a transição gradual entre esta e a Folias de Espanha, envolvendo as seguintes etapas63:

a) Redução do andamento: devido às complexas variações melódicas elaboradas sobre o acompanhamento de acordes, especialmente em instrumentos mais graves, como a teorba64, que requeriam um tempo muito mais vagaroso para seu tipo de ressonância. Além

disso, à medida que foram surgindo novas variações para guitarra em estilo dedilhado, por volta de 1640, o aumento da quantidade de notas exigia uma gradual redução do andamento. Não tardou para que aparecessem marcações individuais para variações específicas, como na nona variação da obra Folías para Señora Doña Tarolilla de

Carallenos, de Falconieri, que ostenta a indicação muy despacio;

62 HUDSON, 1982, p.xxv. 63 Ibid., p.xxv-xxvii.

64 Cf. as obras: Folia (1604) de Kapsberger; Partite variate sopra la Folia (1623) de Piccinini, ambas escritas

b) Ênfase do segundo tempo das anacruses no compasso de abertura: um procedimento identificado na maioria das obras em estilo francês. Instrumentistas de outras nacionalidades, como Luis de Briçeño, Antonio Carbonchi e Giovanni P. Foscarini estavam familiarizados com a métrica das danças de corte francesas, que tinha como uma de suas características pontuar o segundo tempo dos compassos ternários, do mesmo modo que o faziam com danças como a passacaglia e a chacona. Duas versões de 1671 da Folias escritas por Corbetta65 já contêm notações precisas de notas pontuadas desde a apresentação do tema, além da redução de andamento devido à abundante ornamentação, também característica do estilo francês;

Fig.1.16: Corbetta: Folias, 1671a.

c) Início de figuração de uma nova variação antes do término da anterior: a lembrança da anacruse inicial pode ser ainda mais obscurecida ao iniciar uma nova variação antes da duração completa do compasso, levando ao ouvinte uma sensação temporariamente irregular da métrica, pois ao ouvir o segundo tempo pontuado, ele

assimila a informação de que o acorde inicial era o tempo forte66. Nas variações de

Kapsberger de 1604, o tema inicia-se como se estivesse incompleto, porém o compositor adicionou uma pausa iniciando cada variação com a intenção de delimitar a duração completa. Numa execução contínua, é evidente que as pausas devem ser emendadas na variação seguinte. Diversas obras a partir de 1640 utilizam desse efeito ilusório-auditivo. Corbetta, em suas variações de 1671, obscureceu ainda mais a apreensão da anacruse com a adição de uma apojatura, seguindo nos compassos seguintes com notas isoladas, resultando num grande contraste em relação aos acordes rasgueados, o que dá uma sensação de grande instabilidade rítmica.

Fig.1.17: Corbetta: Folias, 1671b.

d) Mal-entendimento da estrutura rítmica anacrúsica por quem não lia partitura: um exemplo de notação alternativa ocorre na breve peça de 32 compassos intitulada Folies, localizada no Livre de guitarre publicado em 1671, em Paris, por Antoine Carré67. Trata-se de um raro exemplo de Folia publicada na França. As barras de compasso foram trocadas

66 Cf. a obra Ciaconna BWV 1004 (1720) de J. S. Bach. 67 CARRÉ, 1977.

de lugar para um tempo de semínima adiante, fazendo com que toda a peça contenha o acento forte no terceiro tempo de cada compasso. Entretanto, na escrita da repetição da segunda parte, com a mudança de textura para o estilo dedilhado, os acentos começam a coincidir com as barras, o que reflete a influência da escrita na própria estrutura do tema.

Em suma, o deslocamento do acento pode ter percorrido este caminho:

Fig.1.18: possível transição rítmica da Folia para Folias de Espanha

Para consolidar-se finalmente com a rítmica em estilo francês:

Fig.1.19: rítmica da Folias de Espanha.

Não é de estranhar que a estrutura da Folia, com todas as transformações ocorridas devido às características instrumentais e estilísticas, não soasse ao ouvido dos franceses da mesma forma que os italianos conheciam e escreviam há mais de cinqüenta anos.

No documento Folias de Espanha: o eterno retorno (páginas 52-58)