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Configurações técnicas

No documento Piadas regionais : o caso dos gauchos (páginas 31-34)

CAPÍTULO QUATRO: GAÚCHOS

3. Configurações técnicas

Após a publicação do Semantic Mechanisms of Humor de Raskin (1985), a lingüística passou a considerar as piadas mais de perto. Possenti dá uma idéia do que pode justificar esse interesse renovado: Freud concedeu aos chistes um status de grande dado, pois que os

4 Freud também demonstra preocupação com certos efeitos de suas análises: “Se, nesse ponto, um leitor vier a

considerou constituídos pelos mesmos traços básicos da linguagem dos sonhos – a mais típica das linguagens do inconsciente. Creio que os lingüistas poderiam ver neles, também, as propriedades essenciais das línguas naturais, tanto de sua “estrutura” como de seu “funcionamento”. (Possenti, 1998:23). Alguns dos fatores que contribuem para configurar esse

novo campo de estudos lingüísticos são os estudos mais recentes que se realizam em áreas teóricas distintas. A lingüística textual, por exemplo, vem fazendo, há algum tempo (ver Koch, 1990), recurso sistemática aos textos humorísticos, a fim de chamar a atenção para efeitos de coerência e coesão. Destaque-se, ainda, os trabalhos de Figueira (2001) e a problemática da aquisição da linguagem, Veras (1999) e De Almeida (1998) com uma perspectiva mais psicanalítica, Tenani (2000) com uma abordagem de cunho fonológico e Rosas (2002) num trabalho sobre tradução.

Pode-se, também, anotar algumas razões comentadas por Possenti (1998) para que a piada seja devidamente considerada pela lingüística:

“1. Piadas operam fortemente com estereótipos, fornecendo um bom lugar para a pesquisa de representações, por exemplo.

2. Piadas são interessantes porque são quase sempre veículo de um discurso proibido, que não se manifestaria, talvez, através de outras formas de coletas de dados, como entrevistas.

3. As piadas interessam como peças textuais que exibem com bastante clareza um domínio da língua de alguma forma complexo.

4. Qualquer domínio que uma teoria lingüística tematize pode ser exemplificado por uma piada cujo funcionamento depende basicamente de sua análise e interpretação, não havendo necessidade de se utilizar dados forjados ad hoc.” (Possenti 1998:25-27).

As piadas de gaúchos, em especial, por mobilizarem discursos polêmicos – virilidade versus bichice – sugerem um corpus de pesquisa discursivamente rico. Uma das razões para isso é que a análise do discurso tem predileção especial pela polêmica, pelos diferentes tipos de discursos que se confrontam, como se pode observar nos tipos de corpora que permitiram construir sua teoricidade. Os estudos revisitados por Maingueneau em seu trabalho de 1984 (Genèses dus discours), em que jansenismo e humanismo devoto se confrontam de maneira a

provocar uma produção de textos extraordinariamente extensa, contribuíram para gerar toda uma série de categorias teóricas importantes, como semântica global, competência discursiva e interincompreensão regrada.

Tendo como base, por exemplo, alguns pressupostos metodológicos propostos por Pêcheux em seu Análise Automática do Discurso de 1969, em que certas formalizações permitem uma interpretação mais técnica de determinados textos, pode-se agenciar aqui uma série de informações de arquivo diretamente ligadas à questão da cultura e da sociedade como elemento explicativo do espaço discursivo em jogo. Contudo, antes de agenciar como nevrálgicos conjuntos de diferenças sócio-culturais no espaço das identificações regionais, ou pressupor que esse conjunto seja o único responsável pelo fenômeno discursivo aqui posto – as piadas regionais e em especial as de gaúchos – pretendeu-se que as conclusões gerais desta pesquisa fossem garantidas também pelo material lingüístico e pelos jogos de polissemia na relação constitutiva com o discurso.

Tais conjuntos de diferenças, no entanto, podem ser invocados em circunstâncias em que a generalização explicativa não funcione (cf. Possenti, 2002) e, dessa forma, as análises fracassariam. Por exemplo, um aspecto do processo colonizador poderia reforçar uma diferença cultural relevante entre um gaúcho e um carioca numa determinada explicação de piada, e é realmente bem possível que marcas dessa ordem histórica estejam presentes em determinados chistes. Mas o que condiciona o sentido geral daquela piada está numa relação interdiscursiva bem mais complexa em que haverá discursos sobre práticas sexuais, cultura política, identificações de nacionalidade, etc. Todo esse espaço de significações precisa ser minimamente analisado para que o fenômeno discursivo de emergência de uma determinada piada possa ser explicado de maneira a respeitar o rigor imposto por uma teoria do discurso.

A título de exemplo, algumas dessas singularidades sócio-culturais no que dizem respeito ao gaúcho podem ser colocadas, ainda como suposições, da seguinte maneira: i) o processo colonizador do Rio Grande do Sul, em relação ao país como um todo; ii) a origem etno-cultural desses colonizadores; iii) a proximidade geográfica e cultural com a Argentina e o Uruguai; iv) a possível maior afinidade com os vizinhos do sul – e aqui, a profusão de piadas de argentinos pode ser um elemento explicativo auxiliar – ou mesmo com uma cultura de fronteira, o que se poderia comprovar através da literatura gauchesca, em que autores dos três países, Brasil, Uruguai e

Argentina, constituem um gênero literário (Cesar, G., 1994); iv) o desejo separatista, difundido na internet e defendido com contundência por algumas comunidades sulistas.

Tais suposições poderiam não determinar, mas corroborar algumas explicações ou conclusões de ordem lingüístico-discursiva. Poderiam, sobretudo, possibilitar a reformulação de duas perguntas fundamentais: uma sobre esse espaço discursivo e sobre os valores históricos que nele estão em jogo e outra com relação ao fenômeno sobre o qual converge grande parte desses valores. Respectivamente: como entender esse jogo de identificações pelo outro num contexto imaginário de nacionalidade e regionalismo? Por que as piadas regionais dariam margem para esse tipo de reflexão? Ao longo da dissertação tentar-se-á não respondê-las propriamente, mas significá-las na medida em que for se desenhando um determinado funcionamento discursivo.

No documento Piadas regionais : o caso dos gauchos (páginas 31-34)