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Notas sobre a organização da pesquisa

No documento Piadas regionais : o caso dos gauchos (páginas 36-38)

CAPÍTULO QUATRO: GAÚCHOS

6. Notas sobre a organização da pesquisa

A circulação de textos na internet tem características próprias e no caso de um corpus híbrido, algumas observações são relevantes. Há, de fato, um fenômeno discursivo bastante interessante na web. Quando o tópico é piada de gaúcho, a internet privilegia quase totalmente a oposição macho/bicha, enquanto as publicações impressas elegem traços estereotípicos mais dispersos como a rudeza, o machismo, a “cornice” e também a “bichice máscula” (essa última em número bem mais reduzido). Isso possivelmente se deve ao conteúdo mais ofensivo que o tema bichice põe em cena. Mexe diretamente com o orgulho do gaúcho, com o discurso da tradição, bem organizado, defensor de honras heróicas e identidade viril. As conseqüências jurídicas que certos suportes podem provocar pode fazer um editor pensar melhor antes de organizar uma publicação que explore predominantemente o traço mais polêmico. A restrições sobre a circulação, portanto, ficam bastante visíveis com o contraste temático dos suportes.11

Um dado importante para esta hipótese talvez seja a forte reação de um dos supostos movimentos gauchistas a um programa humorístico de televisão. A reação apontou claramente para uma resistência “pouco humorada” do movimento com relação à circulação do estereótipo do gaúcho bicha. A resistência localizada, por sua vez, forneceu material discursivo para que a réplica dos roteiristas fosse mais um golpe de deboche que uma retratação, embora a direção da emissora de TV tenha vetado a reincidência, o que, de passagem, traduz o cuidado tomado com o assunto. Dois discursos sexistas em relação polêmica, virilidade X homossexualismo (que se

10 Pêcheux reformula essa questão durante todo “Les Vérités de La Palice”, deixando entender que certas formas de

resistência, teórica ou prática, reproduzem, paradoxalmente, a ideologia dominante. Deixa entender, também, que há saídas.

11 Isto é, parece haver um certo “acanhamento” editorial para o fenômeno da “bichice do gaúcho” que pode estar

reproduzem no interior do discurso jocoso referente ao gaúcho), portanto, caracterizam um primeiro espaço discursivo que serve de base para a semântica das piadas.

Personagem forte, constituído com base numa rica caracterologia popular, literária e historiográfica, o gaúcho protagoniza um conjunto amplo de piadas. No caso específico do levantamento dessas piadas, a web funciona como um termômetro, um suporte que aponta para a força discursiva da polêmica na circulação das piadas de gaúchos. A idéia de termômetro está relacionada com 4 constatações: a quantidade de páginas especializadas em piadas de gaúchos; a renovação do conteúdo dessas páginas, embora sempre com muita repetição; o lugar de relativo destaque que as piadas de gaúchos ocupam nas páginas de humor mais acessadas; as datas recentes em que o tema aparece como assunto em comunidades de discussão.

Um acervo de piadas de “gaúchos bichas”, portanto, foi montado predominantemente com base em sites da internet. Essa pesquisa revelou dados importantes como a variação narrativa e o agrupamento temático. Esse agrupamento (que distingue, por exemplo, piadas de loiras de piadas de português) situa as piadas sexistas de gaúchos no interior do conjunto de piadas regionais, junto com piadas de mineiros, paulistas, cariocas etc (e nesse conjunto, as piadas de gaúchos são bem mais numerosas). Há, portanto, um campo discursivo específico, relacionado mais estritamente com a circulação de piadas, que atua em outro nível de oposições discursivas, gerando outra rede semântica de identificações e de polêmica: o espaço discursivo das piadas regionais.

Outra consulta sistemática à web tratou de rastrear sites relacionados com os diversos tipos de gauchismo em voga. Essa pesquisa possibilitou uma primeira abordagem à dispersão discursiva específica do movimento gauchista, heterogêneo, mas submetido a uma carta geral de princípios. Mais uma vez a internet funciona como um termômetro apontando para os discursos mais vivos e correntes.

O critério para medir essa temperatura discursiva é basicamente aquele que a análise do discurso usa na pesquisa do arquivo impresso: com base na parafrasagem e fenômenos vizinhos como anaforização e repetição lexical, formular uma semântica específica (cf. Courtine, 1980, Maingueneau, 1987). A quantidade e relativa diversidade dos sites que apresentam textos com

outro lado, não há como “limitar” a web. Se houvesse uma lei nacional vetando um determinado conteúdo, os editores virtuais migrariam para sítios internacionais (usando a língua portuguesa).

uma semântica fundamentada na defesa de certos princípios viris pareceu confirmar a tese de sua presença discursiva no imaginário sobre o gaúcho das piadas.

Este indicador quantitativo do discurso gauchista na web é fundamental para precisar o fenômeno discursivo das piadas e seus níveis principais de relação interdiscursiva, embora não seja suficiente.12

O buscador Google teve papel importante no rastreamento de dados. Há nele um recurso que, com o uso das aspas, permite a busca por enunciados inteiros. Com esse recurso, um enunciado bastante elementar possibilitou o armazenamento de uma grande massa textual de informações referentes à identidade do gaúcho e também de outros personagens importantes para a pesquisa: “ser gaúcho é”. A rigor, os substitutos relevantes para ‘gaúcho’ (como ‘mineiro’ e ‘paulista’, por exemplo), fizeram com que o buscador encontrasse textos bastante interessantes, tipicamente sobre a auto-identificação. Seguindo essa estratégia, foi possível encontrar variações das ocorrências jocosas (colando pedaços de enunciados com leve modificação e fazendo novas buscas) e outros tipos de eventos relacionados com o tema, como uma curiosa sucessão de discussões nos chamados blogs, remetendo basicamente à indignação dos gaúchos com relação às piadas.

É neste ponto da pesquisa, como está mais ou menos claro, que a relevância metodológica da inter-relação constitutiva das piadas regionais como um todo se mostrou decisiva, ampliando um pouco a concepção inicial do projeto, a saber, um olhar dirigido apenas às piadas de gaúcho. Dada a perspectiva discursiva da pesquisa, a observação das piadas regionais em conjunto se impôs, uma vez que a inclinação especial que a AD tem para trabalhar com discursos que se fundamentam no outro, em relações polêmicas de competição e dependência, pareceu encontrar condições mais favoráveis para que o processo de produção do sentido das piadas pudesse ser explicado em particular, ou, como está claro, em blocos. Isso também gerou um efeito colateral: outras séries de análises que primaram em particularizar funcionamentos distintos, com suas regularidades específicas e qualidades ilustrativas para propostas de abordagem.

No documento Piadas regionais : o caso dos gauchos (páginas 36-38)