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CONFLITOS DE INTERESSE

No documento DADOS DE COPYRIGHT (páginas 196-200)

E DIVERSIDADE DOS PONTOS DE VISTA

Fora as grandes tendências de virtualização e universalização que

já foram abordadas, não há um "impacto" automático ou predeterminado das novas tecnologias sobre a sociedade e a cultura. Excetuandose a indeterminação fundamental dos processos sóciohistóricos, é preciso notar que há numerosos interesses e que projetos contraditórios defrontamse no terreno da cibercultura. O tema dos conflitos, da diversidade de interesses e de pontos de vista, das críticas e contra

críticas à cibercultura será particularmente desenvolvido nesta terceira parte.

Os Estados se enfrentam entre si para fazer prevalecer seus campeões industriais e suas culturas nacionais. Esse conflito é acrescido por uma oposição entre, de um lado, os interesses próprios dos Estados, ligados a sua soberania e sua territorialidade e, por outro lado, o caráter desterritorializante e ubiqüitário do ciberespaço. As questões da censura e da criptografia — sobretudo depois que qualquer um passou a poder

criptografar suas mensagens na Internet de forma inviolável —

evidenciam bem a oposição entre a lógica do Estado e a da cibercultura. Sabemos que o ciberespaço constitui um imenso campo de batalha

para os industriais da comunicação e dos programas. Mas a guerra que opõe algumas grandes forças econômicas não deve mascarar a outra que coloca em choque uma visão puramente consumista do ciberespaço, a

dos industriais e vendedores — a rede como supermercado planetário e televisão interativa —, e uma outra visão, a do movimento social que propaga a cibercultura, inspirado pelo desenvolvimento das trocas de saberes, das novas formas de cooperação e de criação coletiva nos mundos virtuais.

O melhor uso que possa ser feito dos instrumentos de comunicação

com suporte digital é, a meu ver, a conjugação eficaz das inteligências e 202

das imaginações humanas. A inteligência coletiva é uma inteligência variada, distribuída por todos os lugares, constantemente valorizada, colocada em sinergia em tempo real, que engendra uma mobilização otimizada das competências. Assim como a entendo, a finalidade da inteligência coletiva é colocar os recursos de grandes coletividades a serviço das pessoas e dos pequenos grupos — e não o contrário. É,

portanto, um projeto fundamentalmente humanístico, que retoma para si, com os instrumentos atuais, os grandes ideais de emancipação da filosofia das luzes. Ainda assim, diversas versões do projeto da inteligência coletiva foram defendidas, e nem todas vão na direção que acabo de esboçar. Além do mais, como sua eficácia contribui para acelerar a mutação em andamento e para isolar ou excluir ainda mais

aqueles que dela não participarem, a inteligência coletiva é um projeto ambivalente. Permanece, contudo, como o único programa geral visando explicitamente o bem público e o desenvolvimento humano que esteja à altura das questões colocadas pela cibercultura nascente.

Defendi, no capítulo sobre o pretenso "impacto" das novas tecnologias, que, mesmo que a sociedade não seja determinada pela evolução das técnicas, o destino da cibercultura também não estava completamente à disposição para interpretações e projetos de atores soberanos. Por um lado, é impossível para um ator, mesmo que muito

poderoso, dominar ou mesmo conhecer o conjunto dos fatores que contribuem para a emergência da tecnocultura contemporânea, até mesmo porque há novas idéias, novas práticas e novas técnicas que não param de surgir nos lugares menos esperados. Por outro lado, o devir da cibercultura simplesmente não é controlável porque, na maior parte do tempo, diversos atores, diversos projetos, diversas interpretações estão em conflito.

A aceleração da mudança, a virtualização, a universalização sem

fechamento são tendências de fundo, muito provavelmente irreversíveis, que devemos integrar a todos os nossos raciocínios e todas as nossas decisões. Em contrapartida, a maneira pela qual essas tendências vão se 203

encarnar e repercutir na vida econômica, política e social permanece indeterminada. A luta das forças e dos projetos presentes nos proíbe a ilusão da

disponibilidade total da técnica. Além das restrições econômicas e materiais que os limitam, nossos projetos devem compor com projetos rivais. Mas o próprio fato de que haja conflito nos confirma o caráter aberto do devir tecnológico e de suas implicações sociais.

Podemos implementar uma rede de comunicação informatizada em uma empresa de tal forma que seja mantido, ou mesmo reforçado, um funcionamento hierárquico e compartimentalizado. Mas podemos também

aproveitar a ocasião para favorecer as comunicações transversais, valorizar as competências disponíveis, iniciar novas formas de cooperação, encorajar o acesso de todos à expressão pública e implementar sistemas de "memória empresarial" que estimulem o acúmulo e compartilhamento de experiências. Enquanto ambos são tecnicamente realizáveis, os projetos opostos serão veiculados por grupos diferentes e irão gerar lutas de poder e acordos.

Em uma escola, é possível limitar a rede de comunicação ao estabelecimento e favorecer prioritariamente o uso de programas de ensino assistido por computador. É possível também abrir a rede local para a Internet e encorajar as compras de equipamentos e programas

adequados para sustentar a autonomia e as capacidades de colaboração dos alunos. Aqui, mais uma vez, projetos pedagógicos contraditórios (que talvez encubram conflitos entre facções dentro da instituição) poderão traduzirse por configurações técnicas diferentes.

MERCADO ABSOLUTO

Em grande escala, o devir do ciberespaço é também uma disputa

de projetos e interesses em luta. Para alguns, seus inventores e primeiros promotores, a rede é um espaço livre de comunicação interativa e comunitário, um instrumento mundial de inteligência coletiva. Para outros, como Bil Gates, presidente da Microsoft, o ciberespaço deve tornarse 204

um imenso mercado planetário e transparente de bens e serviços. Esse projeto objetiva o advento do "verdadeiro liberalismo", tal como foi imaginado pelos pais da economia política, já que exploraria a possibilidade técnica de suprimir os intermediários e de tornar a informação sobre os produtos e os preços quase perfeita para o conjunto dos atores do mercado, produtores e consumidores.

Para outros ainda, vendedores de "conteúdo" de todas as espécies (grandes estúdios de Hol ywood, cadeias de televisão, distribuidores de videogames, fornecedores de dados etc.), o ciberespaço teria vocação para acolher uma espécie de banco de dados universal onde poderiam

ser encontrados e consumidos, mediante pagamento, todas as mensagens, todas as informações, todos os programas, todas as imagens, todos os jogos imagináveis.

Para os grandes atores econômicos, operadores de

telecomunicação ou vendedores de informações, de programas e de serviços, as grandes questões gravitam em torno do mercado. Haveria

um público ávido por consumir determinado serviço? Qual será o volume de negócios para uma dada categoria de informação? Quando? As firmas de consultoria, trabalhando na ótica de seus clientes, trabalham quase exclusivamente com esse tipo de questões. É inútil sublinhar a limitação desse ponto de vista, mesmo que ela possua evidentemente seu quê de

legitimidade.

Se Bil Gates, com outros, interpreta o ciberespaço como um shopping center em escala mundial concluindo o último estágio do liberalismo econômico, é evidentemente porque vende ferramentas de acesso ao supermercado virtual bem como os instrumentos de transação correspondentes. Por trás da interpretação mercantilista do ciberespaço, aparece o projeto de redefinição do mercado em proveito de atores que dominam certas tecnologias e em detrimento (ao menos no ciberespaço) dos intermediários econômicos e financeiros habituais, aí incluídos os bancos. Os pequenos produtores e os consumidores, que podem beneficiarse com a transparência do cibermercado, estão convidados a partilhar ao mesmo tempo desse projeto e da leitura dos fenômenos que ele controla.

O PONTO DE VISTA DAS MÍDIAS: COMO FAZER SENSACIONALISMO COM A NET?

Outro ponto de vista, outro poderoso provedor de interpretações

sobre a ciberespaço é o sistema das mídias de massa. A televisão e a grande imprensa há muito apresentam o ciberespaço fazendo chamadas

sobre sua infiltração pelo serviço secreto e a máfia, amotinando o público contra as redes de pornografia pedófila que ele abriga, sobre os estímulos ao terrorismo ou ao nazismo encontrados neste ou naquele site da Web, sem esquecer de fantasiar sobre o cibersexo. Demoremonos um pouco

sobre esse último ponto. Chamase de "cibersexo" uma relação sexual à distância por intermédio da rede e de combinações de realidade virtual, compreendendo óculos estereoscópicos, sensores de movimento e apalpadores sobre as zonas eróticas. Uma espécie de telemasturbação

usando equipamentos de aparência sadomasoquista. Ora, a não ser em algumas demonstrações durante salões tecnológicos especializados ou

em determinadas instalações de artistas, que por sinal são feitas com auxílio de equipamentos muito caros e sempre em público, ninguém pratica cibersexo. O que não impede que os jornalistas continuem a falar disso, nem tampouco que alguns pensadores de renome rabiscassem a

esse respeito dezenas de páginas lamentáveis. Ao contrário do cibersexo, a máfia, os terroristas e as fotos para pedófilos existem de fato na rede (assim como em outros lugares), ainda que de forma muito minoritária.

Mas os malfeitores, os terroristas e os pedófilos usam os aviões, as estradas e o telefone (que obviamente aumentam seu campo de ação)

sem que ninguém pense, por conta disso, em associar essas redes tecnológicas à criminalidade.

O ponto de vista propagado pelas mídias é ditado por seu interesse.

Para interessar, devem anunciar notícias sensacionais, mostrar imagens espetaculares. Ora, o ciberespaço é especialmente fraco nesse sentido, pois abriga essencialmente processos de leitura e escrita coletivos, distribuídos e assíncronos. Não há nada para ser visto, nada para ser mostrado. Filmese uma pessoa lendo, depois, mais tarde, uma pessoa

No documento DADOS DE COPYRIGHT (páginas 196-200)