Ao mesmo tempo fino, delicado e bemhumorado, Beyond
Pages de Masaki Fujihata deve ser considerado uma das mais belas ilustrações das "artes da interatividade" emergentes.
Entrase em um lugar pequeno e fechado. Na frente há uma
mesa real sobre a qual encontrase projetada a imagem de um livro. No fundo do aposento há uma projeção da imagem de uma porta
fechada. Sentandose à mesa, pega se uma espécie de caneta eletrônica, com a qual é possível "tocar" a imagem do livro. A imagem do livro fechado é então substituída pela de um livro aberto.
Como se o livro tivesse sido "aberto". Que fique bem claro: não há um livro de papel de verdade para abrir, apenas uma sucessão de
duas imagens controlada por um dispositivo interativo. O livro de Beyond Pages de Masaki Fujihata não é uma imagem fixa clássica, e também não é uma imagem de animação que passa
imperturbavelmente, é um objeto estranho, meio signo (é uma imagem), meio coisa (é possível atuar sobre ele, transformálo, explorálo dentro de certos limites). Estamos acostumados a interagir com telas graças aos videogames, à Internet e aos CD - ROMs, mas nesse caso a imagem interativa do livro encontrase sobre uma mesa de madeira e não em uma tela de vídeo. Ao abrir esse estranho livro, vemos escrita sobre a página direita a palavra "maçã"
em inglês, no alfabeto romano, e em japonês, com caracteres kanji. Até aí, nada demais: signos de escrita sobre uma página. Mas na
página esquerda há a imagem de uma bela maçã vermelha em trompe l'oeil, uma maçã cuja sombra está nitidamente recortada sobre a página imaculada. Mais ou menos como se a página da
direita nos mostrasse signos e a da esquerda uma coisa. A sensação de que a maçã é realmente uma coisa colocada sobre a página e 79
não apenas uma imagem é reforçada pelo que se descobre progressivamente "folheando o livro": a maçã encontrase cortada na página seguinte, sendo progressivamente consumida à medida que
a "leitura" continua, até que só é possível achar, entre as páginas, um caroço. A cada vez que as páginas são viradas, ouvese claramente o som de uma mandíbula que se fecha sobre um pedaço
de maçã, mordendoa. No entanto, em nenhum momento a ilusão é completa. Sabese que tanto a maçã como o som são gravações. É impossível comer a maçã. Comer a maçã surge como uma metáfora
para "ler um livro". Algo foi consumido, foi produzida uma irreversibilidade, ainda que nada tenha sido alterado: as páginas continuam no mesmo lugar, os signos também. Ao contrário das maçãs, o consumo ou o prazer que possamos ter com os signos não
os destroem.
Essa oscilação entre signo e coisa, signo que faz barulho, age, interage e parece esgotarse como uma coisa, coisa impalpável e indestrutível como um signo, essa oscilação continua até que a
"leitura do livro" tenha sido terminada. As pedrinhas que podem ser deslocadas com a caneta rangem sobre a imagem do papel. Acionar
a imagem de uma maçaneta faz com que seja aberta a porta na
parede do fundo, de onde surge uma garota adorável, nua e sorridente, que aparecerá mais de uma vez.
Ao contrário das folhas secas dos herbários, o ramo de folhas verdes que se agita entre as páginas de Beyond Pages ainda é
agitado pelo vento e pleno de seiva. A flor ou a folha seca dos herbários está lá, morta, mas bem real, entre as páginas. Beyond
Pages nos leva para um além da página onde as imagens "vivas" das coisas vivas parecem surgir de imagens de páginas.
No final do livro, os signos aflorados resolvem falar. Os rabiscos transformamse milagrosamente em escrita japonesa de caligrafia perfeita e claramente pronunciada pelo "livro". Desta forma, esse livro "fala". Possui uma voz que o permite ler a si mesmo, e convidanos a contribuir para sua escrita.
Um dos recursos de Beyond Pages é o anel de Moebius, passagem contínua e insensível de uma ordem de realidade a outra:
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do signo à coisa, depois da coisa ao signo, da imagem ao caractere,
depois do caractere à imagem, da leitura à escrita, depois da escrita à leitura. Imagem de um livro (e portanto, duplamente signo) entre as páginas do qual encontramse coisas... que não são nada mais do
que signos, mas signos ativos, vivos, que nos respondem. Não a ilusão de realidade, como o virtual é muitas vezes descrito, já que temos sempre consciência de tratarse de um jogo, de um artifício, mas uma verdade lúdica ou emocional de uma ilusão experimentada como tal.
A INTERATIVIDADE VISTA COMO PROBLEMA
Como a interatividade é muitas vezes invocada a torto e a direito, como se todos soubessem perfeitamente do que se trata, gostaria de
tentar, neste pequeno capítulo, uma abordagem problemática dessa noção.
O termo "interatividade" em geral ressalta a participação ativa do beneficiário de uma transação de informação. De fato, seria trivial mostrar que um receptor de informação, a menos que esteja morto, nunca é passivo. Mesmo sentado na frente de uma televisão sem controle remoto, o destinatário decodifica, interpreta, participa, mobiliza seu sistema nervoso de muitas maneiras, e sempre de forma diferente de seu vizinho.
Além disso, como os satélites e o cabo dão acesso a centenas de canais diferentes, conectados a um videocassete permitem a criação de uma
videoteca e definem um dispositivo televisual evidentemente mais
"interativo" que aquele da emissora única sem videocassete. A possibilidade de reapropriação e de recombinação material da mensagem por seu receptor é um parâmetro fundamental para avaliar o grau de interatividade do produto. Encontramos esse parâmetro também em outras mídias: Podemos acrescentar nós e links a um hiperdocumento?
Podemos conectar esse hiperdocumento a outros? No caso da televisão, a digitalização poderia aumentar ainda mais as possibilidades de reapropriação e personalização da mensagem ao permitir, por exemplo, uma descentralização da emissora do lado do receptor: escolha da câmera que filma um evento, possibilidade de ampliar imagens,
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alternância personalizada entre imagens e comentários, seleção dos comentaristas etc. Estamos querendo dizer, ao falar de interatividade, que o canal de
comunicação funciona nos dois sentidos? Neste caso, o modelo da mídia interativa é incontestavelmente o telefone. Ele permite o diálogo, a reciprocidade, a comunicação efetiva, enquanto a televisão, mesmo digital, navegável e gravável, possui apenas um espetáculo para oferecer.
Mas ainda assim temos vontade de dizer que um videogame clássico
também é mais interativo do que a televisão, ainda que não ofereça, estritamente falando, reciprocidade ou comunicação com outra pessoa.
Mas em vez de desfilar suas imagens imperturbavelmente na tela, o videogame reage às ações do jogador, que por sua vez reage às imagens presentes: interação. O telespectador pula entre os canais, seleciona, o jogador age. Ora, a possibilidade de interromper uma seqüência de informações e de reorientar com precisão o fluxo informacional em tempo real não é uma característica apenas dos videogames e dos hiperdocumentos com suporte informático, mas também uma
característica da comunicação telefônica. A diferença é que, neste último caso, estamos em comunicação com uma pessoa e, no primeiro, com
uma matriz de informações, um modelo capaz de gerar uma quantidade
quase infinita de "partidas" ou de percursos diferentes (mas todos coerentes). Aqui, a interatividade remete ao virtual.
Tentemos abordar as diferenças entre telefone e vídeo por outro
aspecto. Para que todas as coisas sejam iguais no restante, vamos supor que um jogo em rede permita a dois adversários jogar um contra o outro: essa situação aproxima ao máximo o videogame do telefone. No videogame, cada jogador, ao agir sobre o joystick, dataglove ou outros controles, modifica em um primeiro tempo sua imagem no espaço do
jogo. O personagem vai evitar um projétil, avançar rumo a seu objetivo, explorar uma passagem, ganhar ou perder armas, "poderes", "vidas" etc.
É essa imagem modificada do personagem reatualizado que modifica, em um segundo tempo lógico, o próprio espaço do jogo. Para envolverse de verdade, o jogador deve projetarse no personagem que o representa e, portanto, ao mesmo tempo, no campo de ameaças, forças e oportunidades em que vive, no mundo virtual comum. A cada "golpe", o jogador envia a seu parceiro uma outra imagem de si mesmo e de seu
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mundo comum, imagens que o parceiro recebe diretamente (ou pode descobrir explorando) e que o afetam imediatamente. A mensagem é a
imagem dupla da situação e do jogador.
Por outro lado, na comunicação telefônica, o interlocutor A transmite ao interlocutor B uma mensagem que supostamente deve ajudar B a construir, por inferência, uma imagem de A e da situação comum a A e B.
B faz o mesmo em relação a A. A informação transmitida a cada "golpe"
de comunicação é muito mais limitada do que no jogo em realidade virtual. O equivalente do espaço de jogo, ou seja, o contexto ou a situação, compreendendo a posição respectiva e a identidade dos parceiros não é compartilhada por A e B sob forma de uma representação explícita, uma imagem completa e explorável. Isso se deve ao fato de que o contexto, aqui, é a priori ilimitado, enquanto é circunscrito no jogo; mas também se deve à diferença entre os próprios dispositivos de comunicação. Com o telefone, a imagem reatualizada da situação deve
ser constantemente reconstruída pelos parceiros, cada um por si e separadamente. O videofone não muda absolutamente nada, já que o
contexto que importa, o universo de significações, a situação pragmática (os recursos, o campo de forças, de ameaças, de oportunidades, o conjunto de coisas que podem afetar os projetos, a identidade ou a sobrevivência dos participantes) não será muito melhor compartilhada se acrescentarmos uma imagem da aparência corporal da pessoa e de seu
ambiente físico imediato. Por outro lado, sistemas que permitam o acesso compartilhado e à distância a documentos, fontes de informação ou espaços de trabalho nos aproximam progressivamente da comunicação
por um mundo virtual, até aqueles que admitem uma ou mais imagens
ativas das pessoas (agentes de software que filtram, infobots, perfis de busca personalizados e outros).
A comunicação por mundos virtuais é, portanto, em certo sentido,
mais interativa que a comunicação telefônica, uma vez que implica, na mensagem, tanto a imagem da pessoa como a da situação, que são
quase sempre aquilo que está em jogo na comunicação. Mas, em outro
sentido, o telefone é mais interativo, porque nos coloca em contato com o corpo do interlocutor. Não apenas uma imagem de seu corpo, mas sua
voz, dimensão essencial de sua manifestação física. A voz de meu interlocutor está de fato presente quando a recebo pelo telefone. Não 83
escuto uma imagem de sua voz, mas a voz em si. Por meio desse contato corporal, toda uma dimensão afetiva atravessa "interativamente" a comunicação telefônica. O telefone é a primeira mídia de telepresença.
Hoje, numerosos projetos de pesquisa e de desenvolvimento tentam estender e generalizar a telepresença a outras dimensões corporais: telemanipulação, imagens tridimensionais dos corpos, realidade virtual, ambientes de realidade ampliada para videoconferências sem impressão de restrição etc.
Reteremos dessa breve reflexão que o grau de interatividade de
uma mídia ou de um dispositivo de comunicação pode ser medido em eixos bem diferentes, dos quais destacamos:
— as possibilidades de apropriação e de personalização da mensagem recebida, seja qual for a natureza dessa mensagem,
— a reciprocidade da comunicação (a saber, um dispositivo comunicacional "umum" ou "todostodos"),
— a virtualidade, que enfatiza aqui o cálculo da mensagem em tempo real em função de um modelo e de dados de entrada (ver
o terceiro sentido no quadro sobre o virtual, página 74),
— a implicação da imagem dos participantes nas mensagens (ver o quarto sentido no quadro sobre o virtual), a telepresença.
Como exemplo, o quadro que se segue cruza dois eixos entre todos os que poderíamos destacar na análise da interatividade.
Mídias híbridas e mutantes proliferam sob o efeito da virtualização
da informação, do progresso das interfaces, do aumento das potências de cálculo e das taxas de transmissão. Cada dispositivo de comunicação diz respeito a uma análise pormenorizada, que por sua vez remete à necessidade de uma teoria da comunicação renovada, ou ao menos a uma cartografia fina dos modos de comunicação. O estabelecimento dessa cartografia tornase ainda mais urgente, já que as questões políticas, culturais, estéticas, econômicas, sociais, educativa e até mesmo episternológicas de nosso tempo são, cada vez mais, condicionadas a configurações de comunicação. A interatividade assinala muito mais um problema, a necessidade de um novo trabalho de observação, de concepção e de avaliação dos modos de
comunicação, do que uma 84
característica simples e unívoca atribuível a um sistema específico. Quadro n° 3
Os diferentes tipos de interatividade
DISPOSITIVO DE Mensagem linear Interrupção e reorientação do Implicação do
COMUNICAÇÃO
nãoalterável em fluxo informacional em tempo participante na tempo real real mensagem RELAÇÃO COM A MENSAGEM Difusão unilateral
Imprensa Rádio — Bancos de dados multimodais — Videogames com um Televisão Cinema — Hiperdocumentos fixos
só participante —
— Simulações sem imersão nem Simulações com imersão possibilidade de modificar o
(simulador vôo) sem modelo
modificação possível do modelo
Diálogo,
Correspondência — Telefone — Videofone Diálogos através de
reciprocidade postal entre duas mundos virtuais, pessoas
cibersexo
Diálogo entre vários — Rede de — Teleconferência ou
— RPG multiusuário no Participantes
correspondência videoconferência com vários ciberespaço
— Sistema das participantes — Videogame em
publicações em — Hiperdocumentos abertos "realidade virtual" com
uma comunidade acessíveis online, frutos da vários participantes
de pesquisa
escrita/leitura de uma — Comunicação em
— Correio comunidade mundos virtuais, eletrônico
— Simulações (com negociação contínua dos
— Conferências possibilidade de participantes sobre suas
eletrônicas
atuar sobre o modelo) como de imagens e a imagem de suportes de debates de uma
sua situação comum comunidade
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V. O CIBERESPAÇO OU A VIRTUALIZAÇÃO DA