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3. IDENTIDADE CULTURAL

3.2. Cultura do crime

3.2.2. Conflitualidade e adequação discursiva

Ainda no tema da cultura, mais especificamente em sua relação com a linguagem, farei algumas considerações a respeito do discurso e suas especificidades na cultura estudada. Para tanto, faz-se necessário prestar alguns breves esclarecimentos a respeito do aporte teórico utilizado para a análise dos textos produzidos na oficina temática realizada.

A fala de uma pessoa é compreendida aqui como fazendo parte de uma cadeia enunciativa, o que implica que o significado de uma frase, quando vista como um enunciado, depende do contexto em que ela surge, em dois níveis: tanto nas condições particulares em que o enunciado surgiu quanto no nível ideológico ou cultural (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2012). O enunciado é um acontecimento único e irrepetível, pois tem relação direta com as condições de produção e pode ser compreendido como sendo o produto do processo de enunciação, uma vez que este último imprime no enunciado as marcas axiomáticas da ideologia em vigor (BRAIT; MELO, 2005). Vemos, portanto, que

[...] a enunciação de um signo é também a enunciação de índices sociais de valor, isto é, a enunciação de um signo tem efeitos de sentido que decorrem da possibilidade da sua ancoragem em diferentes quadros semânticos-axiológicos, em diferentes horizontes sociais de valores (FARACO, 2009, p. 54)

No esclarecimento presente, vemos, ainda, que o termo enunciado se confunde com uma possível acepção do termo discurso, em que o mesmo é visto como uma forma de ação interativa para além da frase, imbuído de valores, regido por normas e assumido por um sujeito – o sujeito do discurso. Para fins de desambiguação, discurso também é utilizado para sugerir o conjunto de significados e modos de enunciação de um determinado grupo ou cultura (MAINGUENEAU, 2001).

Ademais, entendemos a expressão pessoal dentro de um contexto que consiste não apenas no ponto de partida (arcabouço cultural), como em um ponto de chegada (intenções para com o interlocutor). Decorre, então que “O eu, considerado centro da pessoa, é o nome de uma relação consigo totalmente dependente do desenvolvimento da função para si do signo social e de seu efeito de constituir a auto-referência” (MELO, 2010, p. 44-45).

Sendo assim, as falas dos jovens a partir das quais buscamos tecer as considerações sobre nosso objeto de estudo são compreendidas dento de um contexto de interação. Por esse motivo, procuramos preservar as expressões específicas de uns com os outros, procurando esclarecer o seu significado quando necessário.

Devido ao cometimento de atos infracionais e a consequente necessidade de não fazer declarações detalhadas sobre a sua vida, sob o risco de sofrer alguma consequência ou, por outra, devido à existência de confrarias rivais e a necessidade de não se expor, parece ter sido desenvolvida uma maneira de “falar sem dizer”. Ou seja: expressões generalizadas que servem ao propósito de continuar a interlocução, sem que detalhes sejam revelados.

A expressão “elemento” é uma delas. Serve para falar de alguém envolvido com a criminalidade, sem necessariamente deixar pistas sobre quem é. É uma expressão também utilizada pelo aparato policial e foi constantemente enunciada durante a oficina. Foi utilizada também a expressão “cara”, “pivete”, ou “vetim”, menos relacionadas com a polícia ou com a criminalidade, mas igualmente genérica, como podemos verificar nos excertos abaixo:

Excerto nº 14

Pequeno – Se a pessoa roubar alguém da família de alguém que é do crime... O cara vai buscar o cara.

I – Acontece, né, também?

Pequeno – Aconteceu com a minha irmã. Ela roubou um cordão de ouro na praia de um irmão de um elemento que era traficante lá nas áreas. Ele bateu na porta dela. Ela teve que entregar, né? Senão ela ia morrer.

Excerto nº 15

Maduro – Pra mim no começo foi assim. Porque eu comecei a ver os elementos assim, comecei a andar com os caras e eles: “tem atitude, acho que ele tem atitude”. Aí eu comecei... fui a primeira vez, gostei... Aí os caras: “tem um vetim aqui que é ladrão. Quando chegar tem um espaço pra ele”, comecei a roubar, traficar...

Então, como explica Mudado, falando sobre a música “A vida é desafio”:

Excerto nº 16

I - E o que vocês acharam dessa música?

Mudado – Falando sobre a vida do elemento aí, né não? I – Falando sobre a vida. A vida dele, né?

Desinteressado – Tinha o sonho de ser jogador de futebol, mas aconteceu foi o crime.

I – E tu acha que tava falando da vida dele...o elemento que tu fala é ele.. [Mudado interrompe]

Mudado – A vida dele, mas a vida dele é parecida com a nossa também.

O elemento, portanto pode ser um em específico, como pode ser qualquer um deles, pois a “via crucis” é muito semelhante, o que justifica o uso genérico do termo. Por outro lado, na construção da história coletiva, houve um diálogo entre Mudado e Contador que esclareceu o uso do termo.

Excerto nº 17

Mudado – Entrou num carro mais quatro elementos e foi se vingar. Contador – Entrou no carro mais quatro companheiros.

I – Elemento ou companheiro? Contador – Elemento, elemento...

Mudado – Elemento é melhor. O bicho era bicho doido.

“Bicho doido”, nesse caso, quer dizer, como explicaram, que ele era altamente envolvido com o crime, o que faz com que a expressão “elemento” seja mais adequada. Além dessa, que exemplifiquei por meio de excertos, também se destaca a expressão “uns e outros/umas e outras”, para designar atos sem especificá-los, como na fala de Contador: “Já me senti culpado também, me arrependendo de umas e outras coisas”.

Tais termos e expressões dão indicações do envolvimento dos socioeducandos com o contexto da criminalidade, que neste estudo, está sendo considerado como a produção e inserção em uma denominada “cultura do crime”. Como foi esclarecido acerca da concepção de cultura que adoto, a linguagem é elemento fundante, pois por meio dela são estabelecidos os modos de agir e interagir entre os que dela compartilham.

Além dessas expressões, também foi possível perceber a presença do “discurso de mudança” e de jargões e ditos populares, demonstrando, o cuidado dos adolescentes com o que “pode” ser dito num contexto institucional em que entendem que a imagem deles precisa corresponder ao esperado pela equipe que os avalia e decide sobre os seus destinos após o cumprimento da medida socioeducativa. Maduro, que ocupava o seu tempo do CEDB de maneira a ter um comportamento exemplar e, com isso, conseguir ser liberado o mais rápido possível, diversas vezes trouxe ditos populares ou letras de música, como “Nada é impossível

para Deus”, “O jogo começou, aperta o start, na vida você ganha, você perde, faz parte”

(música de Marcelo D2), “o importante é o que a pessoa tem no coração”. O uso dessas frases prontas talvez tenha sido uma estratégia para evitar falar algo que, em sua opinião, fosse indevido.

Essa adequação do discurso acontece porque a palavra, segundo Bakhtin/Volochínov (2012, p. 117), é orientada em função do interlocutor, que “constitui

justamente o produto da interação entre locutor e ouvinte6”. Por esse motivo, considero todos

os enunciados aqui dispostos como específicos dessa relação, o que não o torna menos legítimo já que todo e qualquer discurso é produzido na interação. Sendo assim, me autorizo por meio de Bakhtin (2012) a tomar linguagem – discurso – como meio de análise cultural, já que o mesmo é composto tanto pelo meio cultural amplo em que a pessoa está inserida, como pela situação social mais imediata, no caso, o cenário discursivo.