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Confronto do Código de Ética e das técnicas disciplinares

4 AS CULTURAS, A ESCOLA E O CURRÍCULO NO BRASIL

5.2. A centralidade do pátio ou uma arquitetura para a vigilância e o controle

5.3.3 Confronto do Código de Ética e das técnicas disciplinares

Aprofundando as compreensões referentes às práticas de resistência e enfrentamento da perspectiva oficial do currículo, observamos que o Código de Ética se apresenta como um dos alvos preferenciais para os ataques e práticas de contestação e enfrentamento das técnicas disciplinares. Este prescreve, no item 2 (dois), por exemplo, que: “Óculos escuros, bonés e boinas não serão permitidos”. Esta norma de conduta é tomada por alguns grupos como preconceituosa e intolerante, na medida em que a Direção e alguns professores afirmam que “os mesmos são objetos típicos de malandros e vagabundos, para não dizer de marginais” – como dizia boa parte dos docentes em conversas na sala dos professores, no intervalo. Esta visão parece bastante parcial e reflete concepções e compreensões identificadas com o conteúdo elitista da cultura dominante.

Recortando um diálogo com um grupo, localizamos as seguintes falas, que desvelam as percepções que estávamos traduzindo.

- Eu não concordo com esse negócio de não deixar boné, não tem nada haver eu acho que não atrapalha, você estar com um boné vai atrapalhar a aula? Tudo bem não faz parte da farda, mas não tem nada haver.

- Disseram que o boné porque tinha alunos botavam droga debaixo do boné, mas como eles vão evitar?

- Tinha que vir nu, sem caderno e sem nada.

- Tinha também que proibir a mochila porque pode colocar muito bem na mochila, agora só um

negócio desse...

(Alunos do 1º ano – do “grupo dos roqueiros”).

Em algumas entrevistas com grupos de alunos, ouvimos a declaração de que “não é porque alguém usa boné que é marginal”. Para esses alunos, o boné, os óculos escuros ou até a boina, são artefatos identitários próprios de alguns grupos, e pretender exigir que eles sejam abandonados é o mesmo que exigir de uma garota, de 18 anos, que ela abandone seu salto alto ou ainda seus brincos. Para eles, estes artefatos integram a auto-imagem, sua identidade e não podem ser simplesmente retirados ou suprimidos. Os que os proíbem não consideram o valor simbólico atribuído a estes objetos por quem os usa, apenas consideram a sua própria atribuição de valor – que no caso é negativa. Esta exigência do Código tem, na opinião de alguns grupos, poucas possibilidades de ser atendida, pois, para os alunos, “ela não é razoável, não tem fundamento, é meramente autoritarismo; então resta burlar, afrontar, desautorizar” (Alunos do 2º ano – do “grupo dos manos”).

Assim sendo, colocam o boné ou a boina dentro das calças, na parte da frente, e, estando nos corredores ou no pátio, olham para os lados e, não vendo a Pit ou algum seu coordenadores auxiliar, arrastam-no de dentro das calças e o põem na cabeça. Em seguida, saem pelos corredores e pelo pátio, aparentemente felizes por estarem como gostam, vestindo-se com os apetrechos que lhes convêm.

Um aluno do 2º. ano, durante uma entrevista, declarou que

- Não é exatamente para desafiar a direção e a Pit, a questão é estar como se sente bem; sem nosso boné as “minas” não nos olham do mesmo jeito, é como se não nos reconhecesse. Desafiar

a Pit é bom, é desafiar a “dondoca” da diretora, que fica querendo que a gente se comporte como os “babacas” educadinhos dos filhos dela. Ela esquece que nós não estudamos no “7 de setembro” (escola), nem vivemos passeando de Honda Civic, como ela faz com eles. Nós não vestimos as roupinhas de marcas que os filhos dela usam. Nós somos assim, diferentes, e ela precisa saber disto, aceitar isto, por bem ou na marra.

(aluno do 2º ano – do “grupo dos roqueiros”).

Este discurso expressa um sentido claro, por parte do aluno, de resistência a uma ordem diferente, estranha à sua e que busca enquadrá-lo, “dominá-lo” e “subjugá- lo” culturalmente, existencialmente. Dessa compreensão decorrem determinados tipos de comportamento que quase invariavelmente são compreendidos de forma superficial pela direção e pelos docentes, que não compreendem os sentidos e significados em jogo nestes processos.

Presenciamos, noutro momento, a caminhada de um aluno numa das galerias da escola, quando de súbito ele foi interrompido pela aparição da coordenadora de disciplina, a Pit, que logo gritou em tom grave:

- Ei garoto, me dê este boné aqui. Você sabe que é proibido. Você não está em sua casa na hora do almoço!

Quando ela percebeu nossa presença, foi logo justificando:

- Professor, nós aqui temos que fazer dessa forma, botar moral nessa meninada, “colocá-los nos trilhos”; do contrário, amanhã eles vão assaltar o senhor e a nós, amanhã!

Destaque-se nesta fala a compreensão, por parte da funcionária, da existência de dois mundos diferentes – o dos populares (alunos “bárbaros”) e o dos educadores (“civilizados”) – e da necessidade de o segundo dominar o primeiro, sob pena da ordem social existente sofrer as conseqüências. Assim, configura-se, de forma micrológica, uma luta entre mundos diferentes em que o primeiro se articula para colonizar o segundo, com seus significados e valores.

O aluno referido saiu correndo em direção ao banheiro e a funcionária atrás dele. Quando retornaram, a coordenadora estava segurando-o pela camisa, ao ombro, declarando que “ele iria dar conta do boné na direção ou seria suspenso”. Como o boné desaparecera imaginei que ele estivesse de volta para dentro da calça, na parte da frente, pois, segundo eles, “a Pit não mete a mão aqui”.

Neste instante, como que num gesto sincronizado e de cumplicidade, num

ritual de salvação dos colegas, aparecem mais dois ou três estudantes, em cantos opostos

do pátio, eqüidistantes da Pit, a exibirem óculos escuros e boné. Numa conversa posterior, eles declararam a nós que: “quando um estar em apuros é necessário ajudá-lo, afinal ele não está fazendo só por ele, ele está brigando por um direito que é nosso e não pode ser detonado, precisa ser salvo por seus companheiros, por seus manos”. A coordenadora, visivelmente perturbada com a cena e, certamente, sentindo-se desautorizada em sua função, saiu andando rápido em direção a um deles, largando o primeiro e, olhando para os outros, gritava: “eu conheço vocês, não adianta se esconderem, eu vou buscá-los na sala de aula ou no banheiro, aonde vocês se meterem”. Os alunos saíram em desabalada carreira, cada um para um lado, buscando despistar a funcionária. Como a escola é suficientemente grande, quase sempre eles conseguem êxito neste intento. Em pouco tempo, a Coordenadora retornou, com a respiração forte e ofegante e, visivelmente cansada, declarava que “lembra do rosto deles e que mais cedo ou mais tarde os pegará”.

Alguns alunos do 2º e 3º anos, numa conversa sobre o mesmo tema, declararam.

- Eu acho que os alunos fazem de propósito, quando ela está aqui, os alunos fazem de propósito, saem da sala, quando ela não está, todo mundo normal. Eu acho isso.

F – Você concorda?

- Concordo. Como ele disse. [...].

- Quando ela não vem, que eu acho que são dois dias na semana que ela não vem, a escola fica normal, calma, todo mundo nas salas assistindo aulas. Mas quando ela vem, os alunos implicam, saem logo, ficam correndo, se escondendo dela.

F – Então, ela provoca nos alunos o gosto de fazer exatamente... - O que não é para fazer.

F – Como tu vê isso, por que isso?

- Deve ser raiva do controle, maldade, o gosto de brincar com ela, ver ela correndo atrás dos alunos, chama o guarda: “Pega ele ali, vai ali, ele está ali.” Eu acho é graça dela, uma senhora daquela podendo estar normal não, fazendo aquelas besteiras

(Alunos do 2º e 3º anos – do “grupo dos meninos gays”).

Chamou-nos atenção, ainda, no episódio relatado, a fala do aluno destacando as diferenças sociais entre eles e os filhos da Diretora. Fica evidenciado que ele reconhece as desigualdades e busca assegurar seu espaço dentro da escola, de ser como ele efetivamente o é, com suas diferenças de hábitos e comportamentos que são negados pela diretora e por suas prepostas. Esta atitude de não se acomodar às regras e normas “da” diretora – a “dondoca” de outra classe – pode ser lida como um esforço insubmisso de reafirmar suas diferenças e, ao mesmo tempo, a declaração de uma luta para exigir o direito de ser diferente, de se manifestar como tal.

Outro aspecto a considerar refere-se à disposição de confrontar a ordem burguesa, expressa pela diretora e seus significados e, portanto, o estabelecimento desse ímpeto de resistência, não obstante os riscos evidentes e claros decorrentes destas atitudes.

- É só manter a imagem, essas propagandas velhas enganosa do escola, quer investir mais... a diretora aí com carrão, grêmio com reformas e a gente não vê nada para a melhoria dos alunos.

- Chega de falso luxo, de aparência, cadê os recursos de aula? - O Grêmio não assiste uma aula e passa.

- O Grêmio não faz nada também.

Este aspecto se torna mais forte, quando observamos outros grupos que reclamam da perspectiva oficial da escola e do currículo, mas que em geral se rendem a ela. O ato de afrontar a diretora e suas coordenadoras tem riscos e os discentes insubmissos assumem isto. Eles podem ser suspensos, transferidos e até expulsos, o que significa, entre outras desvantagens, ficar malvisto em casa, ser separado dos amigos e, por último, afastar-se da promessa de que “ser aluno do [nome da escola] é assegurar sucesso na vida”. Assim, é estabelecido um jogo de micropoderes, podendo-se perder e ganhar, estando em cena representações sobre o certo e o errado, o permitido e o proibido, onde as identidades se confrontam, buscando assegurar seus textos e significados, suas possibilidades de existência no cenário curricular. Merece destaque também a cumplicidade dos membros do grupo, o compartilhamento com significados intersubjetivos que colocam a resistência e o afrontamento da ordem oficial, dominante, como algo a ser fortalecido, apoiado e assumido, não obstante seus riscos. Isto porque este jogo pode ser entendido como marcado por lances sutis, que são ensaios de liberdade e autonomia, mas, ao mesmo tempo, podem significar demarcação da subjugação e dominação.