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Conjuntos Bem Ordenados e Números Ordinais

Tratamos a partir daqui sobre a fundamentação dos números ordinais dentro da Teoria dos Conjuntos, nos quais se encontram o conjunto dos números naturais. Provamos o Teorema da Recursão Transfinita, entre outros importantes resultados da Teoria dos Conjuntos referentes aos números ordinais. Salvo menção contrária, baseamo-nos em Hrbacek & Jech (1999) ao longo deste capítulo.

4.1. Conjuntos Bem Ordenados

Relações de ordem sobre um conjunto intuitivamente funcionam como um meio

de comparar os elementos do conjunto por meio de algum critério. Além disso,

Em toda a Matemática, e em particular, para a generalização dos processos de contagem dos conjuntos finitos para os conjuntos infinitos, a teoria da ordem [relações de ordem] ocupa um importante papel. As definições básicas são simples. A única coisa da qual se deve lembrar é que a motivação primária vem da relação ‘menor do que ou igual’ […]. (HALMOS, 1960, p. 54, tradução nossa).

Os dois tipos básicos de relações de ordem foram definidos no capítulo anterior: parcial e estrita. Numa relação de ordem estrita, se 𝑥 está relacionado com 𝑦 diz-se que 𝑥 é

menor do que 𝑦; no caso de 𝑥 estar relacionado com 𝑦 por uma ordem parcial, diz-se que 𝑥 é menor do que ou igual a 𝑦. De fato, enquanto uma ordem parcial permite que um elemento do

conjunto se relacione consigo mesmo, na ordem estrita isso não acontece. Apesar disso, ordens parciais e estritas relacionam-se profundamente, como mostramos no teorema seguinte.

Teorema 4.1. Seja 𝑋 ≠ ∅ um conjunto qualquer, tal que 〈𝑋, ≺〉 é um conjunto

estritamente ordenado e 〈𝑋, ≤〉 é um conjunto parcialmente ordenado. Então 𝑋 é parcialmente ordenado pela relação ≼ e estritamente ordenado pela relação <, tais que

≼= {〈𝑥, 𝑦〉 ∈ 𝑋 × 𝑋|𝑥 ≺ 𝑦 ∨ 𝑥 = 𝑦} e <= {〈𝑥, 𝑦〉 ∈ 𝑋 × 𝑋|𝑥 ≤ 𝑦 ∧ 𝑥 ≠ 𝑦}.

A reflexividade de ≼ é imediata, bem como a transitividade. A antissimetria de ≼ decorre da assimetria de ≺. De fato,

𝑥 ≼ 𝑦 ∧ 𝑦 ≼ 𝑥 ⟺ (𝑥 ≺ 𝑦 ∨ 𝑥 = 𝑦) ∧ (𝑦 ≺ 𝑥 ∨ 𝑥 = 𝑦) ⟺ (𝑥 ≺ 𝑦 ∧ 𝑦 ≺ 𝑥) ∨ 𝑥 = 𝑦 ⟺ ⟺ 𝑥 = 𝑦.

Analogamente mostra-se que < é uma ordem estrita em 𝑋. Q.E.D.

Assim, para uma relação de ordem estrita ≺, escrevemos 𝑥 ≼ 𝑦 para indicar que 𝑥 ≺ 𝑦 ou 𝑥 = 𝑦, de tal maneira que ≼ é uma ordem parcial. Convencionamos a partir daqui que < e ≺ indicam ordens estritas, enquanto que ≤ e ≼ representam as ordens parciais correspondentes, de acordo com o que fizemos no teorema anterior1. Dada tal convenção, formulamos as definições abaixo, referentes a conjuntos ordenados2.

Definição 4.1. Seja 〈𝑊, ≺〉 um conjunto estritamente ordenado e 𝑋 ⊆ 𝑊. (i) 𝑎 ∈ 𝑋 é um menor elemento de 𝐴 ⟺ (∀𝑥)(𝑥 ∈ 𝑋 ⟹ 𝑎 ≼ 𝑥); (ii) 𝑎 ∈ 𝑋 é um elemento mínimo de 𝐴 ⟺ (∀𝑥)�𝑥 ∈ 𝑋 ⟹ ¬(𝑥 ≺ 𝑎)�; (iii) 𝑎 ∈ 𝑋 é um maior elemento de 𝐴 ⟺ (∀𝑥)(𝑥 ∈ 𝑋 ⟹ 𝑥 ≼ 𝑎); (iv) 𝑎 ∈ 𝑋 é um elemento máximo de 𝐴 ⟺ (∀𝑥)�𝑥 ∈ 𝑋 ⟹ ¬(𝑎 ≺ 𝑥)�; (v) 𝑎 ∈ 𝑊 é um limite inferior de 𝑋 em 〈𝑊, ≺〉 ⟺ (∀𝑥)(𝑥 ∈ 𝐴 ⟹ 𝑎 ≼ 𝑥); (vi) 𝑎 ∈ 𝑊 é um ínfimo de 𝑋 em 〈𝑊, ≺〉 se, e somente se, 𝑎 é o maior elemento do conjunto dos limites inferiores de 𝑋 em 〈𝑊, ≺〉;

(vii) 𝑎 ∈ 𝑊 é um limite superior de 𝑋 em 〈𝑊, ≺〉 ⟺ (∀𝑥)(𝑥 ∈ 𝐴 ⟹ 𝑥 ≼ 𝑎); (viii) 𝑎 ∈ 𝑊 é um supremo de 𝑋 em 〈𝑊, ≺〉 se, e somente se, 𝑎 é o menor elemento do conjunto dos limites superiores de 𝑋 em 〈𝑊, ≺〉.

Proposição 4.1. Seja 〈𝐴, <〉 um conjunto ordenado (parcial ou estritamente) e 𝐵 ⊆ 𝐴.

(i) Se existir, o menor elemento de 𝐵 é único, além disso, ele é também o

(único) elemento mínimo;

1

O contexto deixará claro quando 𝑥 ≺ 𝑦 se referir a uma ordem estrita definida em um conjunto e quando se referir à existência de uma injeção de 𝑥 em 𝑦, como estabelecido na Definição 3.30.

2

Tais definições não se restringem necessariamente a conjuntos ordenados. Todavia, neste trabalho focamo-nos em suas aplicações apenas a conjuntos ordenados.

(ii) Se existir, o maior elemento de 𝐵 é único, além disso, ele é também o

(único) elemento máximo;

(iii) Se existir, o ínfimo de um conjunto 𝐵 é único;

(iv) Se existir, o supremo de um conjunto 𝐵 é único. Demonstração.

Provamos apenas (i), as demais afirmações se demonstram de maneira análoga. Suponha, por absurdo, que 𝑏1, 𝑏2 ∈ 𝐵 sejam dois menores elementos distintos de 𝐵. Logo, para quaisquer 𝑥 ∈ 𝐵, tem-se 𝑏1 ≤ 𝑥 e 𝑏2 ≤ 𝑥; em particular,

𝑏1 ≤ 𝑏2 e 𝑏2 ≤ 𝑏1.

Como 𝑏1≠ 𝑏2 por hipótese, resta-nos 𝑏1 < 𝑏2 e 𝑏2< 𝑏1o que contraria a assimetria de <, absurdo. Logo, 𝑏1 = 𝑏2. Q.E.D.

As recíprocas das afirmações (i) e (ii) da proposição anterior não são verdadeiras de modo geral. Consideremos, por exemplo, o conjunto ℕ+ dos números naturais positivos, parcialmente ordenado pela relação de divisão |, onde 𝑛|𝑚 ⟺ 𝑛 divide 𝑚, para quaisquer 𝑛, 𝑚 ∈ ℕ. O subconjunto 𝐵 = ℕ ∖ {1} não possui um menor elemento na relação |, pois para qualquer número 𝑎 ∈ 𝐵 pode-se tomar o número 𝑎 + 1 que não é divisível por 𝑎. Ainda assim, qualquer número positivo primo 𝑝 é elemento mínimo de 𝐵, uma vez que não existe qualquer número 𝑥 ∈ 𝐵 ∖ {𝑝} tal que 𝑥|𝑝. Para mais resultados referentes a elementos máximos e mínimos em relações de ordem, bem como sobre supremo e ínfimo, sugerimos Hrbacek & Jech (1999) e Suppes (1972).

A Proposição 4.1 justifica as seguintes simbologias.

Definição 4.2. Seja 〈𝐴, <〉 um conjunto ordenado e 𝑋 ⊆ 𝐴. Se existirem, denotamos os seguintes elementos por:

(i) max(𝑋) é o maior elemento de 𝑋; (ii) min(𝑋) é o menor elemento de 𝑋; (iii) sup(𝑋) é o supremo de 𝑋;

(iv) inf(𝑋) é o ínfimo de 𝑋.

Definição 4.3. Sejam 〈𝐴, <〉 e 〈𝐵, ≺〉 conjuntos ordenados. Um isomorfismo entre 𝐴 e 𝐵 é uma função 𝜑: 𝐴 ⟶ 𝐵 bijetora, tal que

(∀𝑎1)(∀𝑎2)�𝑎1, 𝑎2 ∈ 𝐴 ⟹ �𝑎1 < 𝑎2⟺ 𝜑(𝑎1) ≺ 𝜑(𝑎2)��.

Em tal caso, 𝐴 e 𝐵 são ditos isomorfos, ou ainda 𝐴 é isomorfo a 𝐵, o que denotamos por 〈𝐴, <〉 ≅ 〈𝐵, ≺〉 ou simplesmente 𝐴 ≅ 𝐵. Se 𝐴 = 𝐵, 𝜑 é um automorfismo3

. Teorema 4.2.

(i) Todo conjunto ordenado é isomorfo a si mesmo;

(ii) Se 〈𝑊1,≺〉 ≅ 〈𝑊2,<〉 então 〈𝑊2,<〉 ≅ 〈𝑊1,≺〉;

(iii) Dois conjuntos ordenados isomorfos a um terceiro são isomorfos entre si. Demonstração.

A validade de (i) é imediata: basta tomar a função identidade do conjunto.

Por sua vez, sejam 〈𝑊1,<〉 e 〈𝑊2,≺〉 conjuntos ordenados tais que 𝜑: 𝑊1 ⟶ 𝑊2 é um isomorfismo; então 𝜑−1: 𝑊2 ⟶ 𝑊1 é bijetora e, além disso, para 𝑤1, 𝑤2 ∈ 𝑊2 quaisquer, existem 𝑢1, 𝑢2 ∈ 𝑊1 tais que 𝜑(𝑢1) = 𝑤1 e 𝜑(𝑢2) = 𝑤2. Daí, 𝑤1 ≺ 𝑤2 ⟺ 𝜑(𝑢1) ≺ 𝜑(𝑢2) ⟺ 𝑢1< 𝑢2, mas 𝑢𝑖= 𝜑−1(𝑤𝑖) para 𝑖 ∈ {1, 2}. Assim, 𝜑−1 é um isomorfismo, o que prova que 𝑊2 ≅ 𝑊1. Analogamente, mostra-se (iii). Q.E.D.

Quando a relação de ordem < sobre o conjunto 𝑊 for evidente pelo contexto, diremos apenas que “𝑊 é um conjunto ordenado” em vez de “〈𝑊, <〉 é um conjunto ordenado”. Além disso, para indicar a restrição de < a um subconjunto 𝑋 de 𝑊, indicamos 〈𝑋, <〉 em vez de 〈𝑋, <∩ (𝑋 × 𝑋)〉. Também denotamos 𝑥 ≥ 𝑦 e 𝑥 ≽ 𝑦 para significar 𝑦 ≤ 𝑥 e 𝑦 ≼ 𝑥, respectivamente.

Uma ordem total/linear sobre um conjunto 𝑋 é uma relação de ordem (parcial ou estrita em vista do Teorema 4.1), tal que todo membro de 𝑋 é comparável segundo tal relação de ordem, isto é: dados dois elementos de 𝑋, ou tais elementos são iguais ou um deles é menor (na relação) do que o outro. Em conjuntos totalmente ordenados, vale a seguinte proposição.

Proposição 4.2. Sejam 〈𝑃, <〉 e 〈𝑄, ≺〉 conjuntos totalmente ordenados, e uma

bijeção ℎ: 𝑃 ⟶ 𝑄 tal que ℎ(𝑥) ≺ ℎ(𝑦) sempre que 𝑥 < 𝑦, para quaisquer 𝑥, 𝑦 ∈ 𝑃. Então ℎ é um isomorfismo entre 〈𝑃, <〉 e 〈𝑄, ≺〉.

3 Adotamos tal notação (≅) para indicar o isomorfismo, de Kunen (1980).

Demonstração.

Sejam 𝑝1, 𝑝2 ∈ 𝑃 quaisquer e suponha ℎ(𝑝1) ≺ ℎ(𝑝2). Se, por absurdo, tivéssemos ¬(𝑝1 < 𝑝2), então 𝑝2 ≤ 𝑝1, pois < ordena 𝑃 totalmente. Daí, pela hipótese da proposição, se 𝑝1= 𝑝2 então ℎ(𝑝1) = ℎ(𝑝2) e se 𝑝2 < 𝑝1 então ℎ(𝑝2) ≺ ℎ(𝑝1), contrariando a suposição de que ℎ(𝑝1) ≺ ℎ(𝑝2). Portanto, ℎ(𝑝1) ≺ ℎ(𝑝2) ⟹ 𝑝1 < 𝑝2. Q.E.D.

Definição 4.4. Seja 〈𝐿, <〉 um conjunto totalmente ordenado. Um conjunto 𝑆 ⊆ 𝐿 é um segmento inicial de 𝐿 se 𝑆 ≠ 𝐿 e, para todo 𝑎 ∈ 𝑆, 𝑥 < 𝑎 ⟹ 𝑥 ∈ 𝑆, para qualquer 𝑥 ∈ 𝐿. O conjunto dos números reais negativos, por exemplo, é um segmento inicial do conjunto dos números reais ordenado pela relação ≤ usual, bem como o subconjunto {0, 1, 2} dos números naturais é também um segmento inicial dos números naturais. A diferença básica entre esses dois segmentos, além dos conjuntos nos quais estão contidos, reside no fato de o segundo possuir um menor elemento na relação, o que não ocorre no segmento inicial obtido dos números reais.

Uma boa ordem/ordenação sobre um conjunto 𝑋 é uma ordem linear4 em 𝑋 na qual todo subconjunto não vazio de 𝑋 possui um menor elemento, que em vista da Proposição 4.1 (i) é o elemento mínimo de tal subconjunto. Como exemplificado por Aurichi (2011a, p. 3), “uma boa ordem nada mais é que uma fila”.

Com efeito, uma boa ordenação sobre um conjunto pode ser interpretada como um enfileiramento de seus elementos, de modo que um elemento 𝑥 é menor do que 𝑦 se 𝑥 estiver mais próximo do início da fila do que 𝑦. Consequentemente, o menor elemento do conjunto corresponde ao primeiro membro da fila. É o que ocorre, por exemplo, com o conjunto dos naturais, que é bem ordenado pela relação “<” usual. Formalmente, temos a definição seguinte.

Definição 4.5. 𝑅 é uma boa ordem (ordenação) sobre 𝑋 se, e somente se, 𝑅 é linear e todo subconjunto não vazio de 𝑋 possui um menor elemento. Dizemos que 〈𝑋, 𝑅〉 é

um conjunto bem ordenado.

4

Pode-se exigir apenas que a relação seja uma ordem parcial ou estrita sobre 𝑋, pois o fato de todo subconjunto não vazio de 𝑋 possuir menor elemento garante que quaisquer dois membros 𝑥 e 𝑦 de 𝑋 sejam comparáveis: basta considerar o subconjunto {𝑥, 𝑦} ⊆ 𝑋.

A importância dos conjuntos bem ordenados reside a princípio no fato de que conjuntos bem ordenados podem ser comparados entre si, como provaremos posteriormente no Teorema 4.5. Além disso, num conjunto bem ordenado vale o Princípio da Indução, cujo

Princípio da Indução Natural é apenas um subcaso. Provamos tal afirmação abaixo, adaptada

de Miraglia (1991, p. 46).

Teorema 4.3 (Princípio da Indução para Conjuntos Bem Ordenados). Seja 〈𝑊, ≺〉 um conjunto bem ordenado e 𝔓(𝑥) uma condição em 𝑥, possivelmente com

parâmetros. Se 𝔓(min 𝑊) e, para qualquer 𝑦 ∈ 𝑊, 𝔓(𝑤) para todo 𝑤 ≺ 𝑦 for suficiente para 𝔓(𝑦), então 𝔓(𝑎), para todo 𝑎 ∈ 𝑊.

Demonstração.

Seja 𝐴 = {𝑤 ∈ 𝑊|𝔓(𝑤)}. Queremos provar que 𝐴 = 𝑊. Caso 𝑊 = {min 𝑊} então não há o que provar, pois 𝔓(min 𝑊) por hipótese. Seja então {min 𝑊} ⊂ 𝑊 e suponha, por absurdo, 𝐴 ≠ 𝑊; obviamente temos 𝐴 ∖ 𝑊 ≠ ∅.

Como 𝑊 é bem ordenado e 𝐴 ∖ 𝑊 ≠ ∅, existe 𝑢 ∈ 𝐴 ∖ 𝑊 o menor elemento de 𝐴 ∖ 𝑊. É claro que se 𝑥 ≺ 𝑢 então 𝔓(𝑥), do contrário 𝑥 ∈ 𝐴 ∖ 𝑊 o que contestaria a definição de 𝑢 como menor elemento de 𝐴 ∖ 𝑊. Assim, se 𝑥 ≺ 𝑢 então 𝔓(𝑥), donde pela hipótese concluímos que 𝔓(𝑢), isto é, 𝑢 ∉ 𝐴 ∖ 𝑊, absurdo. Q.E.D.

O Princípio da Indução também pode ser formulado como segue:

Seja 〈𝑊, ≺〉 um conjunto bem ordenado e 𝐵 ⊆ 𝑊; se min 𝑊 ∈ 𝐵 e, para qualquer 𝑦 ∈ 𝑊, 𝑤 ∈ 𝐵 para todo 𝑤 ≺ 𝑦 for suficiente para 𝑦 ∈ 𝐵, então 𝐵 = 𝑊.

Se retirarmos a hipótese de que 𝐵 ⊆ 𝑊, obtemos ainda uma nova formulação:

Seja 〈𝑊, ≺〉 um conjunto bem ordenado e 𝐵 um conjunto qualquer; se min 𝑊 ∈

𝐵 e, para qualquer 𝑦 ∈ 𝑊, 𝑤 ∈ 𝐵 para todo 𝑤 ≺ 𝑦 for suficiente para 𝑦 ∈ 𝐵, então 𝑊 ⊆ 𝐵. O resultado seguinte, adaptado de Suppes (1972), nos mostra que, de certa forma, a recíproca do resultado anterior é verdadeira.

Teorema 4.4. Sejam 𝐴 um conjunto e ≺ uma relação de ordem total sobre 𝐴, tal

que seja verdadeira a sentença

(∀𝐵) ��(∀𝑦) �𝑦 ∈ 𝐴 ∧ �(∀𝑥)�(𝑥 ∈ 𝐴 ∧ 𝑥 ≺ 𝑦) ⟹ 𝑥 ∈ 𝐵��� ⟹ 𝑦 ∈ 𝐵� ⟹ 𝐴 ⊆ 𝐵�.

Demonstração.

Seja 𝑋 um subconjunto não vazio de 𝐴; devemos mostrar que 𝑋 possui um menor elemento. Assumamos, por absurdo, que 𝑋 não possua um menor elemento e consideremos o conjunto 𝐴 ∖ 𝑋. Afirmamos que se 𝑘 ∈ 𝐴 ∖ 𝑋 para todo 𝑘 tal que 𝑘 ≺ 𝑦, então 𝑦 ∈ 𝐴 ∖ 𝑋: de fato, caso 𝑦 ∉ 𝐴 ∖ 𝑋, teríamos 𝑦 ∈ 𝑋 e, como 𝑘 ≺ 𝑦 ⟹ 𝑘 ∈ 𝐴 ∖ 𝑋, para qualquer 𝑥 ∈ 𝑋 restaria necessariamente 𝑦 ≺ 𝑥 ou 𝑦 = 𝑥, ou seja, 𝑦 seria o menor elemento de 𝑋, contrariando a hipótese. Mostramos assim que

(∀𝑦) ��𝑦 ∈ 𝐴 ∧ �(∀𝑥)(𝑥 ∈ 𝐴 ∧ 𝑥 ≺ 𝑦) ⟹ 𝑥 ∈ 𝐴 ∖ 𝑋�� ⟹ 𝑦 ∈ 𝐴 ∖ 𝑋�,

donde obtém-se, pela hipótese do teorema, que 𝐴 ⊆ 𝐴 ∖ 𝑋, o que é absurdo, já que tomamos 𝑋 como subconjunto não vazio de 𝐴. Portanto, 𝑋 possui um menor elemento. Q.E.D.

O bom comportamento dos conjuntos bem ordenados também se reflete nas propriedades de seus segmentos iniciais, como provamos nos dois próximos resultados.

Proposição 4.3. Se 〈𝑊, ≺〉 é um conjunto bem ordenado e 𝑆 é um segmento inicial

de 𝑊, então existe 𝑎 ∈ 𝑊 tal que 𝑆 = {𝑥 ∈ 𝑊|𝑥 ≺ 𝑎}. Demonstração.

Considere 𝑋 = 𝑊 ∖ 𝑆. Como 𝑆 ≠ 𝑊, tem-se 𝑋 ≠ ∅. Uma vez que ≺ é uma boa ordenação sobre 𝑊 e 𝑋 é um subconjunto não vazio, existe um elemento 𝑎 ∈ 𝑋 tal que 𝑎 ≼ 𝑥, para todo 𝑥 ∈ 𝑋, ou seja, 𝑎 = min(𝑋). Se 𝑦 ≺ 𝑎, então 𝑦 ∉ 𝑋, do contrário 𝑎 não seria o menor elemento de 𝑋, logo 𝑦 ≺ 𝑎 ⟹ 𝑦 ∈ 𝑆. Se 𝑎 ≼ 𝑦 então 𝑦 ∉ 𝑆, se não teríamos 𝑎 ∉ 𝑋 uma vez que 𝑆 é segmento inicial de 𝑊. Assim, 𝑦 ∈ 𝑆 ⟺ 𝑦 ≺ 𝑎. Portanto, 𝑆 = {𝑥 ∈ 𝑊|𝑥 ≺ 𝑎}. Q.E.D.

Proposição 4.4. Seja 〈𝑊, <〉 um conjunto bem ordenado e 𝑎 ∈ 𝑊 qualquer. Então 𝒜 = {𝑥 ∈ 𝑊|𝑥 < 𝑎} é um segmento inicial de 𝑊.

Demonstração.

Análoga à demonstração do lema anterior. Notemos que se 𝑎 é o menor elemento de 𝑊, então 𝒜 = ∅. Q.E.D.

Definição 4.6. Seja 〈𝑊, <〉 um conjunto bem ordenado e 𝑎 ∈ 𝑊 qualquer. O

A proposição seguinte apenas formaliza as propriedades básicas dos segmentos iniciais de um conjunto bem ordenado; decorrem imediatamente da definição e, por tal motivo, omitimos sua demonstração.

Proposição 4.5. Sejam 〈𝑊, ≺〉 um conjunto bem ordenado, 𝑊[𝑎] e 𝑊[𝑏]

segmentos iniciais arbitrários para certos 𝑎, 𝑏 ∈ 𝑊.

(i) 𝑊[𝑎] é bem ordenado pela relação ≺; (ii) 𝑊[𝑎] ⊂ 𝑊[𝑏] ⟺ 𝑎 ≺ 𝑏;

(iii) 𝑊[𝑎] = 𝑊[𝑏] ⟺ 𝑎 = 𝑏;

(iv) 𝑊[𝑎] = 𝑊[𝑏] ∨ 𝑊[𝑎] ⊂ 𝑊[𝑏] ∨ 𝑊[𝑏] ⊂ 𝑊[𝑎]; (v) 𝑊[𝑎] ∩ 𝑊[𝑏] = ∅ ⟺ 𝑊[𝑎] = ∅ ∨ 𝑊[𝑏] = ∅.

Definição 4.7. Seja 〈𝑊, <〉 um conjunto ordenado. 𝑓:𝑊 ⟶ 𝑊 é uma função

crescente se 𝑥1< 𝑥2 implicar 𝑓(𝑥1) < 𝑓(𝑥2), para quaisquer 𝑥1, 𝑥2∈ 𝑊.

Notemos que todo isomorfismo é uma função crescente. Além disso, algo eventualmente útil é o seguinte isomorfismo obtido por construção.

Proposição 4.6. Seja 〈𝑊, <〉 um conjunto bem ordenado e 𝑋 um conjunto

qualquer. Se 𝜑: 𝑊 ⟶ 𝑋 é uma bijeção, então a relação definida por

<𝜑= {〈𝜑(𝑥), 𝜑(𝑦)〉 ∈ 𝑋 × 𝑋|𝜑−1(𝑥) < 𝜑−1(𝑦)}

é uma boa ordem sobre 𝑋, tal que 〈𝑋, <𝜑〉 ≅ 〈𝑊, <〉. Demonstração.

Claramente <𝜑 é assimétrica. Com efeito, para 𝑥, 𝑦 ∈ 𝑋 quaisquer, existem 𝑤, 𝑣 ∈ 𝑊 tais que 𝜑(𝑤) = 𝑥 e 𝜑(𝑣) = 𝑦, daí se 𝑥 <𝜑 𝑦 temos 𝑤 < 𝑣, logo ¬�𝑦 <𝜑 𝑥�, pois do contrário teríamos 𝑣 < 𝑤, absurdo. Analogamente prova-se que <𝜑 é transitiva e total.

Para 𝑌 ⊆ 𝑋 não vazio qualquer, considere 𝜑−1[𝑌] ⊆ 𝑊. Da boa ordem de 𝑊 segue que existe min 𝜑−1[𝑌] = 𝑦 ∈ 𝜑−1[𝑌]. Obviamente, min 𝑌 = 𝜑(𝑦). De fato, se existisse 𝑢 ∈ 𝑌 tal que 𝑢 <𝜑 𝜑(𝑦), teríamos 𝜑−1(𝑢) < 𝑦 e, como 𝜑−1(𝑢) ∈ 𝜑−1[𝑌], isso nos levaria a concluir que min 𝜑−1[𝑌] ≠ 𝑦. Portanto, 𝑌 possui um menor elemento. Q.E.D.

Lema 4.1. Se 〈𝑊, <〉 é um conjunto bem ordenado e 𝑓: 𝑊 ⟶ 𝑊 é uma função

crescente, então 𝑓(𝑥) ≥ 𝑥, para todo 𝑥 ∈ 𝑊. Demonstração.

Chame 𝑋 = {𝑥 ∈ 𝑊|𝑓(𝑥) < 𝑥}. Se 𝑋 ≠ ∅, então existe 𝑎 ∈ 𝑋 tal que 𝑎 é o menor elemento de 𝑋. Logo, 𝑓(𝑎) < 𝑎. Mas como 𝑓 é crescente, 𝑓�𝑓(𝑎)� < 𝑓(𝑎) e daí 𝑓(𝑎) ∈ 𝑋, o que contraria o fato de 𝑎 ser o menor elemento de 𝑋. Portanto, 𝑋 = {𝑥 ∈ 𝑊|𝑓(𝑥) < 𝑥} = ∅, o que equivale a afirmar que para todo 𝑥 ∈ 𝑊, 𝑓(𝑥) ≥ 𝑥. Q.E.D.

Corolário 4.1.

(i) Nenhum conjunto bem ordenado é isomorfo a um segmento inicial de si mesmo;

(ii) Para todo conjunto bem ordenado existe um único automorfismo, a identidade;

(iii) Se 𝑊1 e 𝑊2 são conjuntos bem ordenados isomorfos, então o isomorfismo entre 𝑊1 e 𝑊2 é único;

Demonstração.

(i) Seja 〈𝑊, <〉 um conjunto bem ordenado e um segmento inicial 𝑊[𝑎] para algum 𝑎 ∈ 𝑊. Se existir um isomorfismo 𝑓:𝑊 ⟶ 𝑊[𝑎], então 𝑓(𝑎) ∈ 𝑊[𝑎], isto é, 𝑓(𝑎) < 𝑎, o que contraria o lema anterior.

(ii) Seja 𝑊 um conjunto bem ordenado e 𝜑: 𝑊 ⟶ 𝑊 um automorfismo. 𝑓 é tal que 𝑓(𝑥) < 𝑓(𝑦) ⟺ 𝑥 < 𝑦, para 𝑥, 𝑦 ∈ 𝑊 quaisquer. Por sua vez,

𝑓−1(𝑥) ≥ 𝑓−1(𝑦) ⟹ 𝑓(𝑓−1)(𝑥) ≥ 𝑓�𝑓−1(𝑦)� ⟹ 𝑥 ≥ 𝑦,

donde segue que 𝑓−1 é crescente (pela contrapositiva). Daí, pelo lema anterior, 𝑓(𝑥) ≥ 𝑥 e 𝑓−1(𝑥) ≥ 𝑥 para quaisquer 𝑥 ∈ 𝑊, donde segue que 𝑥 ≥ 𝑓(𝑥). Portanto, da antissimetria de

≤, segue que 𝑓(𝑥) = 𝑥, para todo 𝑥 ∈ 𝑊. Daí, pelo Teorema 3.9, 𝑓 = 𝐼𝑑𝑊.

(iii) Sejam 𝑓: 𝑊1 ⟶ 𝑊2 e 𝑔: 𝑊1 ⟶ 𝑊2 isomorfismos. Claramente, a composição 𝑓 ∘ 𝑔−1: 𝑊2 ⟶ 𝑊2 é um automorfismo, pois para 𝑥, 𝑥′ ∈ 𝑊2,

𝑓�𝑔−1(𝑥)� < 𝑓�𝑔−1(𝑥)� ⟺ 𝑔−1(𝑥) < 𝑔−1(𝑥) ⟺ 𝑥 < 𝑥,

e daí, pelo item anterior, 𝑓�𝑔−1(𝑥)� = 𝑥, para todo 𝑥 ∈ 𝑊2, donde segue que 𝑓−1(𝑥) = 𝑔−1(𝑥) para todo 𝑥 ∈ 𝑊

2, isto é, 𝑓−1 = 𝑔−1, e finalmente se obtém 𝑓 = 𝑔. Q.E.D.

Teorema 4.5. Se 〈𝑊1,<1〉 e 〈𝑊2,<2〉 são conjuntos bem ordenados, então

exatamente uma das alternativas abaixo é verdadeira:

(ii) 𝑊1 é isomorfo a um segmento inicial de 𝑊2; (iii) 𝑊2 é isomorfo a um segmento inicial de 𝑊1.

Em todos os casos, o isomorfismo é único. Demonstração.

É imediato do Lema 4.1 e do Corolário 4.1 que (i), (ii) e (iii) são mutuamente excludentes. Assim, para provarmos o teorema, devemos negar dois dos itens e mostrar a validade do terceiro.

Definamos a relação 𝑓 = {〈𝑥, 𝑦〉 ∈ 𝑊1 × 𝑊2: 𝑊1[𝑥] é isomorfo a 𝑊2[𝑦]}.

Afirmação: 𝑓: 𝔇(𝑓) ⟶ ℑ(𝑓) é um isomorfismo.

Em vista da Proposição 4.2, basta mostrarmos que 𝑓 é uma função injetora crescente, com 〈𝔇(𝑓), <1〉 e 〈ℑ(𝑓), <2〉 totalmente ordenados.

Primeiramente, 𝑓 é uma função injetora. De fato, se 𝑥𝑓𝑦1 e 𝑥𝑓𝑦2 então 𝑊1[𝑥] é isomorfo a 𝑊2[𝑦1] e 𝑊2[𝑦2], mas pela Proposição 4.5 (iv)

𝑊2[𝑦1] = 𝑊2[𝑦2], 𝑊2[𝑦1] ⊂ 𝑊2[𝑦2] ou 𝑊2[𝑦2] ⊂ 𝑊2[𝑦1].

Contudo, como 𝑊2[𝑦1] e 𝑊2[𝑦2] são isomorfos, obtemos 𝑊2[𝑦1] = 𝑊2[𝑦2] e, por conseguinte, 𝑦1 = 𝑦2 e assim 𝑓 é função. Pelo mesmo argumento, 𝑥1𝑓𝑦 e 𝑥2𝑓𝑦 implicam 𝑥1= 𝑥2, donde concluímos que 𝑓 é injetora. A sobrejetividade de 𝑓 é óbvia. �†1

Tomemos então 𝑥, 𝑥′ ∈ 𝔇(𝑓), tais que 𝑥 <1 𝑥′. Queremos mostrar que 𝑓 é crescente, ou seja, 𝑓(𝑥) <2 𝑓(𝑥′). Para tanto, seja ℎ: 𝑊1[𝑥′] ⟶ 𝑊2[𝑓(𝑥′)] o isomorfismo cuja existência inferimos por 𝑥′ ∈ 𝔇(𝑓); em particular, ℎ(𝑥) <2𝑓(𝑥′). Notemos que ℎ� = ℎ ↾ 𝑊1[𝑥] é um isomorfismo entre 𝑊1[𝑥] e 𝑊2[ℎ(𝑥)].

De fato, como ℎ é injetora, segue que ℎ� é injetora. Se 𝑢 ∈ 𝑊1[𝑥] temos 𝑢 <1 𝑥 e daí ℎ�(𝑢) = ℎ(𝑢) <2 ℎ(𝑥), mostrando que ℎ�(𝑢) ∈ 𝑊2[ℎ(𝑥)] e ℑ�ℎ�� ⊆ 𝑊2[ℎ(𝑥)]. Se 𝑦 ∈ 𝑊2[ℎ(𝑥)] então 𝑦 <2 ℎ(𝑥), donde obtém-se ℎ−1(𝑦) <

1 𝑥, isto é, ℎ−1(𝑦) ∈ 𝑊1[𝑥], e

assim 𝑊2[ℎ(𝑥)] ⊆ ℑ�ℎ��. Logo ℎ�: 𝑊1[𝑥] ⟶ 𝑊2[ℎ(𝑥)] é bijetora e, por conseguinte, é também isomorfismo, haja vista que ℎ é isomorfismo. Enfim, por termos 𝑊1[𝑥] ≅ 𝑊2[𝑓(𝑥)] por hipótese, obtemos 𝑊2[ℎ(𝑥)] ≅ 𝑊2[𝑓(𝑥)] e, consequentemente 𝑓(𝑥) = ℎ(𝑥) <2 𝑓(𝑥′). �†2

Uma vez que 𝔇(𝑓) ⊆ 𝑊1 e ℑ(𝑓) ⊆ 𝑊2, é óbvio que 〈𝔇(𝑓), <1〉 e 〈ℑ(𝑓), <2〉 são ordenações totais (em particular, são bem ordenados). �†3

Segue de �†1�, �†2� e �†3� que 𝑓: 𝔇(𝑓) ⟶ ℑ(𝑓) é um isomorfismo, como afirmamos.

Para concluirmos a demonstração basta mostrarmos que 𝔇(𝑓) e ℑ(𝑓) não podem ser simultaneamente subconjuntos próprios de 𝑊1 e 𝑊2, respectivamente.

Suponha 𝔇(𝑓) ≠ 𝑊1. Vamos provar que 𝔇(𝑓) é um segmento inicial de 𝑊1 e ℑ(𝑓) = 𝑊2. Para 𝑥 ∈ 𝔇(𝑓) qualquer, tome 𝑢 <1 𝑥; se ℎ: 𝑊1[𝑥] ⟶ 𝑊2[𝑓(𝑥)] é um

isomorfismo, então ℎ ↾ 𝑊1[𝑢]: 𝑊1[𝑢] ⟶ 𝑊2[ℎ(𝑢)] é isomorfismo, donde segue que 〈𝑢, ℎ(𝑢)〉 ∈ 𝑓, isto é, 𝑢 ∈ 𝔇(𝑓), logo 𝔇(𝑓) é um segmento inicial de 𝑊1 e, por conseguinte,

𝔇(𝑓) = 𝑊1[𝑎′], para algum 𝑎∈ 𝑊

1. Se por absurdo ℑ(𝑓) ≠ 𝑊2, então por um argumento

análogo ao anterior mostra-se que ℑ(𝑓) = 𝑊2[𝑏′], para algum 𝑏′ ∈ 𝑊2; contudo, teríamos assim que 𝑓: 𝑊1[𝑎′] ⟶ 𝑊2[𝑏′] seria um isomorfismo e pela definição de 𝑓, 〈𝑎′, 𝑏′〉 ∈ 𝑓 e daí 𝑎′ ∈ 𝔇(𝑓) = 𝑊

1[𝑎′], isto é, 𝑎′ <1𝑎′, absurdo. Portanto, ℑ(𝑓) = 𝑊2 e é isomorfo a um

segmento inicial de 𝑊1.

Da mesma forma mostra-se que ℑ(𝑓) ≠ 𝑊2 implica em ℑ(𝑓) = 𝑊2[𝑏] para algum 𝑏 ∈ 𝑊2 e 𝔇(𝑓) = 𝑊1, donde se obtém 𝑊1 isomorfo a um segmento inicial de 𝑊2. Enfim, se 𝔇(𝑓) = 𝑊1 e ℑ(𝑓) = 𝑊2, então 𝑊1 ≅ 𝑊2 são isomorfos. A unicidade dos isomorfismos provém em todos os casos do Corolário 4.1 (iii). Q.E.D.

O Teorema 4.5 nos garante que conjuntos bem ordenados podem ser “comparados” entre si, numa analogia a tamanho ou comprimento, o que condiz com a comparação feita anteriormente referente às filas. Ainda sob tal perspectiva, é natural procurar uma generalização de tal processo de comparação a fim de encontrar, em ZFC, uma definição formal para o conceito de número. É exatamente isso o que fazemos na próxima seção.

4.2. Números Ordinais e a Recursão Transfinita

A primeira questão que se apresenta é tão profunda quanto perguntar-se o que é um conjunto: o que é um número? Muitas respostas já foram dadas por matemáticos e filósofos, em diferentes abordagens. Para Russell,

Número é o que é característico de números, assim como homem é característica de homens. Um trio de homens, por exemplo, é um caso de número 3, e o número 3 é

um exemplo de número; mas o trio não é um caso de número […]. Um número particular não é idêntico a qualquer coleção que tenha tal número de elementos: o número 3 não é idêntico com o trio composto por Brown, Jones e Robinson. O número 3 é algo que todos os trios possuem em comum e que os distingue de outras coleções. Um número é algo que caracteriza certos conjuntos, a saber, aqueles que possuem este número [de elementos] (RUSSELL, 1920, p. 11-12, itálico do autor, tradução nossa).

A postura que adotamos perante tal questão é sintetizada por um exemplo dado por Halmos, que se pergunta

Como um matemático define um metro? O procedimento envolve dois passos […]. Primeiro, seleciona-se um objeto dentre os quais se destina o conceito a ser definido — um objeto, em outras palavras, tal que num sentido intuitivo ou prático mereça ser considerado como tendo um metro de comprimento. Segundo, forma-se o conjunto de todos os objetos no universo que possuem o mesmo comprimento que o objeto selecionado (note que isso independe de sabermos o que é o metro), e define- se o metro como sendo tal conjunto. (HALMOS, 1960, p. 43, tradução nossa).

Importamo-nos então em “como definir um número”, sem necessariamente sabermos “o que” ele é, mesma postura tomada sobre a natureza dos conjuntos. A ideia de definir números naturais na Teoria dos Conjuntos se deve a Frege, em seu Grundlagen der

Arithmetik (Fundamentos da Aritmética), de 1884. O método que utilizamos aqui, muito

diferente do trabalho de Frege, foi desenvolvido inicialmente por Von Neumann em seu trabalho Zur Einführung der transfiniten Zahlen (Introdução dos Números Transfinitos), de 1923.

Hrbacek & Jech (1999) definem primeiramente o conjunto dos números naturais como sendo

ℕ = {𝑛 ∈ ℐ|(∀𝑋)(𝑋 é indutivo ⟹ 𝑛 ∈ 𝑋)},

provando suas propriedades principais e, posteriormente, generalizando-as para os números ordinais. Apesar de basearmo-nos no autor, seguimos a linha contrária e tratamos dos números ordinais para daí “obter” os números naturais como consequência da teoria exposta. Ressaltamos o caráter introdutório do que segue; uma abordagem mais aprofundada pode ser encontrada, por exemplo, no trabalho de Levy (1979) e Jech (2003).

Definição 4.8. Seja 𝑋 um conjunto. ∈𝑋= {〈𝑥, 𝑦〉 ∈ 𝑋 × 𝑋|𝑥 ∈ 𝑦}. Definição 4.9. 𝑋 é transitivo ⟺ (∀𝑥)(∀𝑦)(𝑥 ∈ 𝑋 ∧ 𝑦 ∈ 𝑥 ⟹ 𝑦 ∈ 𝑋).

Definição 4.10. Seja 𝛼 um conjunto. 𝛼 é um número ordinal se 𝛼 é transitivo e 〈𝛼, ∈𝛼〉 é bem ordenado.

Definição 4.11. 𝑥 + 1 = 𝑥 ∪ {𝑥}.

Definição 4.12. Sejam 𝛼 e 𝛽 números ordinais. Denotamos (i) 𝛼 < 𝛽 se, e somente se, 𝛼 ∈ 𝛽;

(ii) 𝛼 > 𝛽 se, e somente se, 𝛽 < 𝛼;

(iii) 𝛼 ≤ 𝛽 se, e somente se, 𝛼 < 𝛽 ou 𝛼 = 𝛽; (iv) 𝛼 ≥ 𝛽 se, e somente se, 𝛽 < 𝛼 ou 𝛼 = 𝛽.

Números ordinais (abreviadamente chamados de ordinais) são os representantes

“canônicos” dos conjuntos bem ordenados, haja vista que, a posteriori, todo conjunto bem ordenado é isomorfo a um único ordinal (Teorema 4.8). De certa forma, podem ser compreendidos como a generalização dos números naturais, os quais se obtêm por um processo de “adição”, dado pela Definição 4.11, que nos dá o sucessor de 𝑥. Sua formulação parte de uma ideia muito simples: adicionar um elemento ao conjunto previamente dado, obtendo um novo conjunto “maior”. De fato, se 𝑥 é um ordinal então 𝑥 + 1 é um ordinal tal que 𝑥 < 𝑥 + 1, no sentido da Definição 4.12. O lema seguinte apenas formaliza as propriedades imediatas dos números ordinais.

Lema 4.2.

(i) Se 𝛼 é um ordinal então 𝛼 + 1 é um ordinal e 𝛼 < 𝛼 + 1;

(ii) Se 𝛼 é um ordinal então 𝛼 ∉ 𝛼;

(iii) Se 𝛼 é um ordinal, então não existe ordinal 𝛽 tal que 𝛼 < 𝛽 < 𝛼 + 1;

(iv) Se 𝛽 ∈ 𝛼 e 𝛼 é um ordinal então 𝛽 é um ordinal;

(v) 𝛼 = {𝛽|𝛽 é ordinal ∧ 𝛽 < 𝛼}, para todo ordinal 𝛼; (vi) Se 𝛼 e 𝛽 são ordinais tais que 𝛼 ⊂ 𝛽, então 𝛼 ∈ 𝛽;

(vii) Se 𝛼 e 𝛽 são ordinais, então 𝛼 ∩ 𝛽 é ordinal. Demonstração.

Provamos apenas (v) e (vii), as demonstrações dos demais itens podem ser encontradas em Hrbacek & Jech (1999), Suppes (1972) e Kuratowski & Mostowski (1976).

Se 𝛼 = ∅, então por vacuidade ∅ é um número ordinal. Além disso, ∅ = {𝛽|𝛽 é ordinal ∧ 𝛽 < ∅}, uma vez que não existe 𝛽 ∈ ∅. Para um ordinal 𝛼 ≠ ∅ qualquer, se 𝛾 ∈ 𝛼

então pelo item (iv) deste lema segue que 𝛾 é ordinal e assim 𝛾 ∈ {𝛽|𝛽 é ordinal ∧ 𝛽 < 𝛼}. Reciprocamente, se 𝛾 é ordinal e 𝛾 < 𝛼, segue em particular que 𝛾 ∈ 𝛼. Assim, (v) está provado.

Provemos (vii). Se 𝛼 = ∅ ou 𝛽 = ∅ então não há o que provar, pois ∅ é ordinal. Se 𝛼 ∩ 𝛽 ≠ ∅, então em particular a restrição de ∈𝛼 a 𝛼 ∩ 𝛽 é uma boa ordem: todos os membros de 𝛼 ∩ 𝛽 são comparáveis, uma vez que são também membros de 𝛼; também todo subconjunto não vazio de 𝛼 ∩ 𝛽 possui menor elemento, haja vista que tais subconjuntos são também subconjuntos de 𝛼. Além disso, 𝛼 ∩ 𝛽 é transitivo, pois se 𝑥 ∈ 𝑣 e 𝑣 ∈ 𝛼 ∩ 𝛽 então 𝑥 ∈ 𝛼 e 𝑥 ∈ 𝛽, pois tanto 𝛼 quanto 𝛽 são transitivos, logo 𝑥 ∈ 𝛼 ∩ 𝛽. Portanto, 𝛼 ∩ 𝛽 é ordinal. Q.E.D.

A demonstração acima torna pertinente a definição a seguir. Definição 4.13. 0 = ∅ e 1 = 0 + 1.

Teorema 4.6. Sejam 𝛼, 𝛽 e 𝛾 ordinais quaisquer. (i) 𝛼 < 𝛽 ∧ 𝛽 < 𝛾 ⟹ 𝛼 < 𝛾;

(ii) 𝛼 < 𝛽 ⟹ ¬(𝛽 < 𝛼); (iii) 𝛼 < 𝛽 ∨ 𝛽 < 𝛼 ∨ 𝑎 = 𝛽;

(iv) Todo conjunto de ordinais é bem ordenado;

(v) Se 𝑋 é um conjunto de ordinais, então ⋃ 𝑋 é ordinal;

(vi) Para todo conjunto de ordinais 𝑋 existe um ordinal 𝛼 tal que 𝛼 ∉ 𝑋. Demonstração.

(i) Se 𝛼 < 𝛽 e 𝛽 < 𝛾 temos 𝛼 ∈ 𝛽 e 𝛽 ∈ 𝛾, mas como 𝛾 é transitivo inferimos que 𝛽 ⊂ 𝛾 e, por conseguinte, 𝛼 ∈ 𝛾, isto é, 𝛼 < 𝛾.

(ii) Se por absurdo 𝛼 < 𝛽 e 𝛽 < 𝛼 fosse verdadeiro, seguiria pelo item anterior que 𝛼 < 𝛼, isto é, 𝛼 ∈ 𝛼, o que contraria o Lema 4.2 (ii).

(iii) Sejam 𝛼 e 𝛽 ordinais. Pelo Lema 4.2 (vii), 𝛼 ∩ 𝛽 é um ordinal. Se 𝛼 ∩ 𝛽 = 𝛼, então 𝛼 ⊆ 𝛽 (pois 𝛼 ∩ 𝛽 ⊆ 𝛽) e daí 𝛼 ∈ 𝛽 ou 𝛼 = 𝛽 pelo Lema 4.2 (vi). Da mesma forma, se 𝛼 ∩ 𝛽 = 𝛽, segue que 𝛽 ∈ 𝛼 ou 𝛼 = 𝛽. Se 𝛼 ∩ 𝛽 ≠ 𝛼 e 𝛼 ∩ 𝛽 ≠ 𝛽, então 𝛼 ∩ 𝛽 ∈ 𝛼 e 𝛼 ∩ 𝛽 ∈ 𝛽, donde teríamos 𝛼 ∩ 𝛽 ∈ 𝛼 ∩ 𝛽, o que contraria o Lema 4.2 (ii).

(iv) Seja 𝒪 um conjunto de números ordinais. Se 𝒪 = ∅ não há o que provar. Considere então 𝒪 ≠ ∅ e a relação ∈𝒪. Claramente ∈𝒪 é uma ordem total em 𝒪, haja vista que como todos os membros de 𝒪 são números ordinais, todos são comparáveis segundo ∈𝒪.

Mostremos inicialmente que 𝒪 possui um menor elemento segundo ∈𝒪. Tome um ordinal 𝛼 ∈ 𝒪. Se 𝛼 ∩ 𝒪 = ∅, então 𝛼 é o menor elemento de 𝒪: de fato, para qualquer 𝛽 ∈ 𝒪, se 𝛽 ∈ 𝛼 (ou seja, 𝛽 < 𝛼) teríamos 𝛼 ∩ 𝒪 ≠ ∅, absurdo, logo 𝛼 ≤ 𝛽, para todo 𝛽 ∈ 𝒪. Se 𝛼 ∩ 𝒪 ≠ ∅, então existe 𝛾 ∈ 𝛼 ∩ 𝒪 ⊆ 𝛼 o menor elemento de 𝛼 ∩ 𝒪. Tal 𝛾 é o menor elemento de 𝒪, caso contrário, existiria 𝜉 ∈ 𝒪 com 𝜉 < 𝛾, isto é, 𝜉 ∈ 𝛾 ∈ 𝛼 e assim 𝜉 ∈ 𝛼 ∩ 𝒪, o que contraria o fato de 𝛾 ser o menor elemento de 𝛼 ∩ 𝒪. Em ambos os casos, 𝒪 possui um menor elemento.

Como 𝒪 é um conjunto de ordinais arbitrário, segue que todo conjunto 𝑋 de números ordinais é bem ordenado, pois qualquer subconjunto de 𝑋 é em particular um conjunto de ordinais.

(v) Seja 𝑋 um conjunto de ordinais. Pelo item anterior, 〈𝑋, ∈𝑋〉 é bem ordenado. Considere então ⋃ 𝑋. Se 𝑥 ∈ ⋃ 𝑋, existe um ordinal 𝛼 tal que 𝑥 ∈ 𝛼, donde pelo Lema 4.2 (iv) segue que 𝑥 é um ordinal. Logo, ⋃ 𝑋 é um conjunto de ordinais e, por

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