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Consciência: raízes históricas e desenvolvimento

1.2 ESTRUTURAÇÃO ARGUMENTATIVA 1 Argumentação

1.3.1 Consciência: raízes históricas e desenvolvimento

Para compreender como o tratamento da consciência humana se desenvolveu ao longo dos anos, é preciso resgatar suas origens. Nesse sentido, Luria (1979) destaca que, durante muito tempo, prevaleceu, nos estudos concernentes à Psicologia, a divisão de todos os seus fenômenos em duas categorias. De um lado, havia os fenômenos físicos, considerados acessíveis à explicação causal; de outro, os psíquicos, inacessíveis à análise científica objetiva (vertente consolidada pela filosofia dualística de Descartes). Sob esse viés, o mundo psicológico do homem e sua consciência foram tratados, durante séculos, como fenômenos especiais, isolados de todos os outros processos naturais.

Em meados do século XIX, porém, a Psicologia sofreu profundas transformações. No intuito de se tornar uma disciplina científica, era necessário abandonar qualquer tipo de dualismo e abordar os mais complexos fenômenos mentais

por meio de uma análise causal. Como elucida Luria (1990, p. 19), “esse reexame implicou o abandono do subjetivismo na Psicologia e o tratamento da consciência como um produto da história social”. Nessa perspectiva, as ideias de Vigotsky foram fundamentais para a posterior evolução da Psicologia como ciência. Como postulou Vigotsky (2000), buscar as causas das funções psíquicas superiores do homem implica ir além dos limites do organismo, sendo necessário procurar suas fontes na história social da humanidade. Estabelece-se, assim, uma nova diretriz ao tratamento dos fenômenos psicológicos, mudando radicalmente as tradições da psicologia dualista.

Para explicar a natureza da atividade consciente do homem, Luria (1979) aponta as diferenças em relação ao comportamento individualmente variável dos animais. Nesse sentido, destaca três traços fundamentais da natureza humana. Em primeiro lugar, a atividade consciente do homem não se liga necessariamente a questões biológicas. Sua atividade pode ser regida por necessidades complexas, como as cognitivas, que o estimulam a adquirir novos conhecimentos, ou as comunicativas, entre outras. Numa segunda instância, a consciência humana não é obrigatoriamente determinada por impressões evidentes provenientes do meio ou por vestígios da experiência individual imediata. Dessa forma, o homem consegue refletir as condições do meio de modo bem mais profundo do que o animal, sendo o comportamento humano, baseado no reconhecimento da necessidade, livre. O último aspecto destacado consiste no fato de o comportamento animal ter apenas duas fontes (programas hereditários do comportamento e resultados da experiência individual) enquanto o humano apresenta ainda um terceiro aspecto. Trata-se do fato de a grande maioria de seus conhecimentos e de suas habilidades se formar por meio da assimilação e da experiência de toda a humanidade, acumulada no processo da história social e transmitida por meio do processo de aprendizagem. Conforme esse enfoque, as raízes do surgimento da atividade consciente do homem não devem ser procuradas na peculiaridade da alma (como preconizava a vertente dualista de Descartes e a filosofia idealista) nem no íntimo do organismo humano (enfoque do positivismo evolucionista de Darwin), mas nas condições sociais de vida historicamente formadas.

Sob o viés da ciência histórica, Luria (1979) destaca dois fatores que estabeleceram uma transição da história natural dos animais à história social do homem. São eles: o trabalho social (que inclui o emprego dos instrumentos do trabalho) e o surgimento da linguagem. Na história antiga da humanidade, o homem tanto empregava os instrumentos de trabalho como os preparava; tal atividade distinguia radicalmente o homem primitivo do comportamento animal. Nesse

processo, era necessário o conhecimento da operação a ser executada e o conhecimento do futuro emprego do instrumento. Surge, assim, a primeira forma de atividade consciente, o que imprimiu uma mudança radical de toda estrutura do comportamento. Quanto à linguagem, o teórico afirma que também teria se originado nas formas de comunicação construídas pelos homens no processo de trabalho. A atividade prática instituiu no homem a necessidade de transmitir aos outros certa informação que não podia ficar restrita a vivências subjetivas; ao contrário, deveria designar os objetos que constituíam o trabalho coletivo. Dessa forma, emergiram os primeiros sons que designavam objetos. Esses sons, entretanto, não tinham existência autônoma; estavam entrelaçados na atividade prática, só sendo possível interpretar seu significado por meio do conhecimento da situação em que eles surgiram.

O surgimento da linguagem determinou ao menos três mudanças essenciais à atividade consciente do homem. A primeira diz respeito ao fato de o homem, através da linguagem, tornar-se capaz de discriminar objetos, dirigir sua atenção a eles e conservá-los na memória. A segunda consiste no processo de abstração e de generalização das coisas e dos objetos por parte do homem. Tal capacidade só foi desenvolvida pela linguagem, que se tornou não apenas meio de comunicação, mas o mais importante veículo de pensamento. A terceira mudança remete à linguagem como veículo fundamental de transmissão de informação, constituída na história social da humanidade. Nesse sentido, a linguagem imprime no homem um tipo inteiramente novo de desenvolvimento psíquico, tornando-se a mais importante forma de desenvolvimento da consciência. Como elucida Luria (1979), a linguagem penetra todos os campos da atividade consciente do homem, reorganizando os processos de percepção do mundo exterior e criando novos paradigmas para essa percepção.

Ao tratar do desenvolvimento sócio-histórico da consciência, Luria (1990) argumenta que as formas como a atividade mental do homem se relacionam com a realidade dependem de práticas sociais complexas. Nesse sentido, numa criança em desenvolvimento, as primeiras relações sociais e as primeiras exposições a um sistema linguístico determinam as formas de sua atividade mental. Ao aprender, por exemplo, atividades complexas ou ao adquirir sistemas linguísticos complexos, as crianças desenvolvem novas motivações e criam novas formas de atividade consciente. Ou ainda, sob influência da linguagem do adulto, elas distinguem e estabelecem objetivos para seu comportamento, repensam as relações entre objetos, reavaliam o comportamento dos outros e o seu, entre outros processos complexos viabilizados pela

inserção da linguagem na sua vida mental. Sob essa prisma, os processos mentais não podem se desenvolver sem formas apropriadas de vida social.

Na perspectiva do autor, é preciso conceber a consciência humana tendo em vista as mudanças sofridas pela atividade mental do homem durante seu desenvolvimento histórico-social. Estabelece-se, dessa forma, uma alternativa de abordagem a processos mentais antes considerados inacessíveis ao tratamento científico. Nas palavras do autor:

A consciência humana deixa, portanto, de ser uma „qualidade intrínseca do espírito humano‟, sem história e inacessível à análise causal. Começamos a entendê-la como a forma mais elevada de reflexão da realidade criada pelo desenvolvimento sócio-histórico: um sistema de agentes que existe objetivamente produz a consciência humana, e a análise histórica a torna acessível. (LURIA, 1990, p.25)