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Uma possível consequência do ato de desumanizar, ou mesmo de emitir discursos desumanizadores sobre grupos oprimidos seria a indiferença. Na visão dos opressores, é quando a vítima do referido processo já teria sido despida de sua humanidade (embora, para a própria vítima, talvez a humanidade pura, crua, seja a única coisa que de fato lhe reste).

Nesse estágio, já não faz mais sentido qualquer discurso, desumanizador ou não, sobre ou para a vítima: a única atitude do algoz é a indiferença. Desse modo, despojada de sua humanidade (na perspectiva dos verdugos), qualquer coisa pode ser feita com os oprimidos que se encontram nesse estado. Nessa fase, enfim, a “piedade animal” dos carrascos já teria sido superada pela total indiferença para com elas, pois não haveria razão para identificar a minoria vitimada a qualquer discurso desumano, nem privá-las de qualquer coisa. A sua aniquilação surge como a única opção possível, como “solução final”.

Em outras palavras, a pretensa existência de uma exclusão ontológica (isto é, exclusão pelo fato de simplesmente serem o que são) dos povos indígenas – que também poderia ser verificada em relação aos/as judeus/judias durante a 2ª Grande Guerra – diz respeito à exclusão do ser humano não porque ele fez algo ou porque possui determinadas característica, mas sim pelo que ele(a) é. Esse fato se apresentaria, em princípio, como fator que, a essa altura, dispensaria a desumanização, haja vista que a consideração acerca daqueles(as) a serem executados/as já foi dada: não haveria necessidade de desumanizá-los(as), pois, independentemente disso, sua condenação é certa e o preconceito contra esses seres já está rigidamente estabelecido e tornado “verdade”.

No entanto, pode-se verificar que o discurso desumanizador assim como as práticas consecutivas ou não a ele, ainda que pretensamente, não tenha qualquer necessidade de ser pronunciado ou qualquer função a desempenhar, foi o responsável pela criação de uma visão de indiferença sobre as vítimas. Sob esse possível estado de indiferença, o que é dito, feito ou considerado pelo algoz sobre a vítima já não faz diferença, haja vista a rígida exclusão em que essa se encontra ao ter a certeza de seu destino selado. Mesmo assim, de uma certa maneira, aquilo que foi construído pela desumanização ainda ecoa no tratamento indiferente do algoz: tal tratamento não é sempre puramente funcional. O modo como os/as indígenas foram tratados/as até sua morte, por exemplo, “afirma” a consideração desses como “quase” humanos (ainda que, para o algoz, isso não importe mais), reafirmando os discursos desumanizadores anteriormente considerados.

Assim sendo, a indiferença pode vir a coroar a desumanização28. Após assumir o preconceito, transformar esse preconceito em discurso atributivo e tratar determinados oprimidos conforme os discursos proferidos, promovendo, assim, aos olhos do desumanizador, a identificação definitiva entre aquilo que é dito dos oprimidos e os próprios oprimidos. O tratamento a eles dispensado, inclusive, prova essa identificação: nada mais resta a fazer com eles a não ser destruí-los. Todo esse desdobramento, então, desemboca na construção de seres supérfluos, descartáveis. Hannah Arendt (1989, p. 511) chamou a atenção para esse fenômeno afirmando: “Os acontecimentos políticos, sociais e econômicos de toda parte conspiram silenciosamente com os instrumentos totalitários inventados para tornar os homens supérfluos”.

28 As fases descritas a seguir não são constituem uma sequência lógica estanque, podendo haver – e

geralmente há – grande variabilidade de ocorrências em cada situação. Algumas fases podem até ser suprimidas e elas nem sempre estão interligadas entre si. O contexto, nesse sentido, é singular para delimitação dos meios e modos da desumanização.

Esses “instrumentos” mencionados por Hannah Arendt seriam o fruto de uma consideração unilateralmente totalitária do outro e consistira em qualquer ação que intente a destruição de massas que, graças ao constante crescimento populacional e a uma visão totalitária de mundo cada vez mais efetiva, vão se tornando supérfluas. E é justamente isto que visa qualquer discurso ou ato de desumanização: tornar minorias oprimidas “descartáveis” socialmente, a ponto de sua destruição inserir-se dentro de uma lógica de “naturalização do assassinato”.

Outra possível consequência da desumanização seria a própria banalização do mal, isto é, tornar o descarte cruel de seres humanos em algo corriqueiro e, por isso mesmo, quase imperceptível. A expressão “banalidade do mal” foi utilizada incialmente por Hannah Arendt (2004, p. 15) e, para ela,

a banalidade do mal não era uma teoria ou doutrina, mas significava a natureza factual do mal perpetrado por um ser humano incapaz de pensar – por alguém que nunca pensou no que estava fazendo, quer na sua carreira como oficial da Gestapo encarregado do transporte dos/as judeus/judias, quer como prisioneiro no banco dos réus.

Hannah Arendt, assim, acreditava que a incapacidade de alguns/algumas homens/mulheres de refletir sobre suas próprias ações poderia desembocar na destruição do outro. Isso porque aquele que não pensa sobre o que faz provavelmente tende a tornar-se um “dente de engrenagem”, ou seja, alguém que se dedique ao máximo em cumprir ordens (para o bom funcionamento da estrutura a qual se está inserido) à revelia de qualquer avaliação moral, independentemente de que tipo de ação que as referidas ordens exigem que sejam cumpridas. (Cf. ARENDT, 2004, p. 106 – 108 e 122).

A referida pensadora aplicava esses conceitos aos oficiais nazistas que tentavam justificar suas ações afirmando estarem “cumprindo ordens”. No entanto, na avaliação dela, esses oficiais – sendo Eichmann provavelmente o mais emblemático – se desumanizaram a si mesmos ao se recusarem a efetivar aquilo que é a atividade mais propriamente humana: o pensamento. Ora, aqui vemos uma curiosa inversão: não seriam as vítimas as desumanizadas pelos/as opressores/as?