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Talvez uma das grandes limitações desta pesquisa seja a ausência de um aprofundamento da situação entre o desumano em relação ao inumano e o pós-humano. Essa limitação é mais espacial do que conceitual, uma vez que não se pretende aqui perder o foco da efetivação da desumanização. Contudo, tanto as noções de “inumanidade” e “pós- humanidade”, de algum modo, flertam com a noção de “desumanidade”.

A etimologia dos termos ‘desumano’ e ‘inumano’ ajudam pouco em suas definições. Alguns dicionários inclusive (Cf. FERREIRA, 1986; CUNHA, 2010), deixam entender que tais termos são quase sinônimos, pois entreveem que os prefixos ‘des’ e ‘i’, empregados nos referidos adjetivos, estão associados a negação do humano.

Não cabe aqui fazer uma explanação morfológica dessas palavras. No entanto, analisando a partir do uso que se faz delas, parece plausível inferir que o prefixo ‘des’, adjunto à palavra ‘humano’, produziria o mesmo efeito que nos termos ‘destituir’, ‘despojar’, ‘desmembrar’, isto é, passa a ideia de uma separação, de que algo pode ser “tirado”, “separado”. No caso do vocábulo ‘desumano’, a impressão é que se evoca a possibilidade de uma “perda do humano”, como se “o humano” em um ser pudesse ser retirado.

No que se refere ao “inumano”, seguindo a mesma linha de raciocínio, o prefixo ‘i” parece fornecer a ideia de uma negação mais radical, já pronta, sem o processo do “retirar” ou “separar” presente no “desumano”. Pelo menos esse é o caso dos vocábulos ‘ilimitado’,

‘inegável’, ‘irresistível’. Em outras palavras, intui-se que o “desumano” fez algo ou passou por algo que redundou na “perda” de sua humanidade. É por isso que, quando alguém comete um crime hediondo, se diz que esse alguém foi “desumano”, pois, ao cometer tal crime, “deixou” de pertencer à esfera daquilo que se costuma chamar de “humano”33

. Já o “inumano” diz respeito especificamente àquilo que em si, não é humano. Quando esse termo é aplicado a um ser humano, comumente se quer denotar que tal humano já traz em si uma certa “monstruosidade”, uma falha na suposta “natureza”, que o faz ser e/ou agir de determinado modo.

Se essas análises estão corretas, pode-se dizer que a desumanização aplicada a outro ser humano visa a construção do inumano. Visa despojá-lo de sua humanidade e dela separá- lo de tal forma que só restará aquilo que de fato não é humano. Entretanto, com o intuito de enfatizar todo o processo de descaracterização do outro é que optou-se aqui pelo emprego do termo ‘desumano’, por se julgar esse termo bem mais apropriado à condição dos muitos envolvidos nas relações de opressão.

No que tange ao pós-humano, pode-se dizer que

a “pessoa” possuidora de capacidades físicas e intelectuais sem precedentes, a entidade possuidora dos princípios de sua autoformação e um caráter transcendente, porque potencialmente imortal, é pós-humana, seja ciborgue ou máquina de inteligência artificial. Quem atinge esse ponto não mais pode ser chamado de humano, e é para se chegar até ele e converter-se em pós- humanos que muitos crentes na tecnologia vêm se organizando desde o final do século XX. (RIIDIGER, 2007, p. 3).

Com o avanço da tecnologia, cada vez mais seres humanos estão se compondo de partes e acessórios não naturais (isto é, são fabricados pelo/a próprio/a homem/mulher), que passam a condicionar o próprio viver humano. Assim sendo, os “pós-humanos” são aqueles que, de alguma forma – dentre muitos outros fatores que os qualificam – integraram ao seu modo de vida, e até mesmo ao seu próprio corpo, objetos tecnológicos (que vão desde um marca-passo, uma prótese mecânica ou um parafuso ou até um celular, um carro entre outros produtos).

Para muitos humanos modernos, o aparelho celular é tão necessário à comunicação, que a ausência desse equipamento pode paralisar a vida de alguém. Em certa medida, os carros substituem as pernas, os óculos e as lentes condicionam o olhar. Tudo isso é próprio do ser que está sendo chamado “pós-humano”. Dessa forma, dito de outro modo,

33 Entenda-se aqui ‘humano’, como adjetivo, isto é, como “bom”, “justo”, tal como a discussão que foi

as tecnologias criadoras de realidade virtual, a engenharia genética, a medicina restauradora, as operações de mudança de sexo, as próteses de todos os tipos, para não falar da exploração de outros mundos, insinuam que já está em curso um processo bastante perturbador e profundo de modificação da condição humana. (Id., Ibid., p. 4).

Pode-se dizer, nesse caso, que não há uma desumanização que faria a passagem do “humano” ao “pós-humano”, pois não haveria uma perda do humano, mas sim uma “evolução” do mesmo. Com a pós-humanidade, não há qualquer consideração de perda da humanidade, mas sim uma compreensão da efetividade de uma “humanidade diferenciada”, tendo em vista que, para se tornar um “pós-humano”, algo precisa ser-lhe acrescentado, incorporado. É provável que o pós-humano se aproxime mais de uma “ultra-humanização”, na medida em que vai além da condição humana e constrói sua existência de um modo que antes seria impossível ao simplesmente “humano”.

O que a concepção do Pós-humanismo traz de instigante para a reflexão acerca da desumanização é a ideia de que aquilo que chamamos de “humano” está em vias de ser ultrapassado. Ora, se por um lado o humano está se tornando obsoleto; o desumano, não. Isso porque, uma vez que o desumano é fruto das relações de opressão, tais relações não cessariam somente porque homens e mulheres estariam se “pós-humanizando”. Nas relações entre os pós-humanos também pode haver opressão e, nesse caso, faz todo sentido em falar de desumanização do “pós-humano”.

Entretanto, a perspectiva de não mais se adotar o que é propriamente humano como critério absoluto de “ser no mundo” parece ter seus benefícios: é aquilo que costumamos considerar como próprio do mundo humano que condiciona o próprio modo de se fazer humano. É como se a pós-humanidade oferecesse aos homens e às mulheres a possibilidade de verem como quem vê de fora e, portanto, pode criar outras relações com o mundo e com as coisas além daquelas que se está acostumado/a ter.