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Consequências da hegemonia do capital no campo: territorialização e desterritorialização

Como consequências dessa territorialização hegemônica do capital, são nitidamente visíveis os impactos socioambientais com bruscas alterações de ecossistemas. Podemos citar o aumento da concentração de terras, o alto desmatamento em regiões de florestas com expansão pecuária em áreas de reserva e possivelmente com posterior produção de celulose, a diminuição da biodiversidade, o aumento de concorrência por áreas férteis e logistica- mente bem localizadas no ímpeto de extrair maior renda da terra.

Essa hegemonia do agronegócio no campo se territorializa de diferentes formas, construindo, destruindo e reconstruindo no ímpeto de manter sua dominação e superar suas diferentes expressões de crise. O fato de impul- sionar o trabalho assalariado desde as grandes processadoras dos produtos agrícolas, de integrar comunidades inteiras ao processo produtivo de al- guma empresa (por exemplo, no caso da produção de leite e carnes), acaba também subordinando e submetendo a essa lógica a agricultura camponesa e outras formas não capitalistas de produção (indígenas, quilombolas etc.). Sobre a crescente desterritorialização dos povos do campo e a destruição da agricultura campesina, François Houtart afirma que:

Hemos asistido los últimos 40 anos una aceleración de la destruición de la agricultura campesina en la que han intervenido muchos factores. El uso de la tierra para actividades agrícolas ha disminuido ante la rápida urbanización e industrialización. Por lo tanto, la población rural ha disminuido de forma relativa. En el año de 1970 había 2400 millones de personas en las zonas rurales frente a 1300 millones en las urbanas. En 2009, eran 3200 millones frente a 3500 millones, respectivamente […]. Al mismo tiempo la adopción de tipos de agricultura basadas en el monocultivo ha provocado enorme concentración de tierras, una verdadera contrarreforma agraria, que se ha visto acelerada en estos últimos años por el nuevo fenómeno de apropiación de tierras, estimado entre los 30 y los 40 millones de hectáreas en los continentes del hemisferio sur, con 20 millones en África solamente. (Acosta et al., 2011, p.158)

Conforme o autor, outros fatores que possibilitam a destruição da agricultura campesina são os monocultivos, a introdução de defensivos

químicos e organismos geneticamente modificados, que, assim como a apropriação das sementes pelas empresas transnacionais, fortalecem um modelo produtivista de agricultura e acumulação de capital. “La agricul- tura se convierte una nueva frontera del capitalismo, especialmente con la caída de la rentabilidad del capital productivo y la crisis del capital finan- ciero” (Acosta et al., 2011, p.162).

O capital produz a lógica da descartabilidade e do consumo exacerbado, produzindo inclusive a necessidade artificial para estimular o consumo de mercadorias. No caso do campo, essas questões podem nitidamente ser visualizadas (desde os diferentes dados já mencionados) na apropriação dos recursos naturais como a água,5 na mineração (base da indústria bélica e

de eletrônicos) e nos monocultivos para agrocombustíveis, celulose e soja. Em tempos que apontam uma grave crise estrutural do sistema capi- talista, muitos são os mecanismos que buscam amenizar ou reverter suas consequências, se reconfigurando numa reterritorialização de dominação que envolve aspectos econômicos, militares, ideológicos e culturais. Essa premissa foi, nos últimos anos, se aprimorando, conforme aponta Ceceña (2007), com os acordos de livre-comércio na América Latina,6 os já men-

cionados megaprojetos de infraestrutura integrada para transporte de pro- dutos, de modo que diminua o custo e acelere a circulação,7 e a constituição

e ampliação do número de bases militares estadunidenses no continente latino-americano com a finalidade de reprimir, vigiar e controlar os pos- síveis levantes e insurgências em contraposição ao desenvolvimento do capital. Entretanto, há diferentes resistências camponesas e dos povos do campo, um exemplo dessas resistências está sendo levado a cabo pela Via Campesina.

Esses aspectos nos remetem à necessidade de refletir sobre as formas de organização da produção camponesa e do trabalho na América do Sul, re- gião na qual se foca o tema desta pesquisa. Essa questão está vinculada aos conceitos de trabalho-classe-consciência na dinâmica da luta de classes no

5 Ver o filme La Guerra del Agua.

6 Por exemplo, Tratado de Livre-Comércio na América do Norte (TLCAN), Plan Colombia, Plan Puebla-Panamá, Tratado de Livre-Comércio de Centro-América e República Domi- nicana (Cafta-RD).

campo, conceitos estes que, de uma forma ou de outra, estão relacionados intrinsecamente.

É o trabalho, ou força de trabalho como mercadoria, o motor do siste- ma. Essa força, sob a “gerência territorial” do capital, é dinamizada numa “plasticidade” ampla e sem precedentes, movendo-se e instalando-se nas mais diferentes formas. No caso do campo, pode expressar-se na forma de trabalho assalariado (na colheita, preparo da terra ou trabalho em agroin- dústrias etc.), ou na subsunção de formas de trabalho camponês, familiar ou comunitário à sua gestão (inclusive impondo ou introduzindo sutilmen- te o que o pequeno produtor deve plantar para o “satisfazer o mercado”). E mesmo na subsunção quase naturalizada do trabalho ao capital produzindo alienação e estranhamento,8 reside também no trabalho toda a potenciali-

dade da emancipação humana.

A subsunção de formas não capitalistas de produção ao capital que citamos acima não é a única forma de subsunção. Poderíamos citar outro exemplo, que é o trabalho doméstico da mulher9 como um trabalho que

não produz diretamente mercadoria com extração de mais-valia, mas é realizado para manter e reproduzir a força de trabalho assalariada, ou seja, um trabalho subsumido ao trabalho assalariado, submetido à lógica de pro- dução e reprodução social da força de trabalho comprada pelo capitalista. No campo, o trabalho doméstico inclui, além do cuidado com a casa, as crianças e os idosos, também a produção de hortaliças, raízes e pequenos animais para subsistência da família.

Esse debate remete indubitavelmente à discussão da conformação das classes sociais no campo. Nesse campo, há muito debate realizado e muito ainda a ser feito.10 Somente para situar de maneira breve esse tema, mencio-

na-se aqui duas questões que permearam e ainda permeiam os debates na esquerda: seria então o camponês uma classe, ou parte da classe universal trabalhadora? O camponês pode ser considerado um sujeito revolucionário na luta pela transformação social? Ou seja, com potencial de impulsionar a destruição da forma de produção capitalista? Essa questão permeou a cons-

8 Conforme reflexões realizadas por Ranieri [200-?] em seu texto “A atualidade da categoria estranhamento e o seu lugar na forma contemporânea de exploração do trabalho pelo capital”. 9 Não nos referimos, aqui, ao trabalho de diaristas ou domésticas.

10 De maneira breve, apontamos alguns elementos desse debate. Pretendemos em estudos posteriores aprofundar esse tema.

trução de diferentes lutas e de diferentes táticas e estratégias na luta pela transformação social.

Nesse debate, concordamos com o posicionamento de Thomaz Junior que entende “o campesinato como integrante da classe trabalhadora”11

completamente submerso no metabolismo social do capital que expropria e subjuga sob sua égide. Em se tratando de classe social, podemos apontar alguns indícios para sua definição, que desde a concepção marxiniana está instrinsicamente vinculada ao trabalho, à posição nas relações sociais de produção, à propriedade privada dos meios de produção.

Entretanto, seria muito simplista analisar que a conformação de classe social se dá somente pela posição social que se ocupa na pirâmide da socie- dade. Pensar classe social não é uma fórmula matemática onde se calcula quem tem ou não os meios de produção e daí automaticamente se forjam as classes que vão lutar entre si. Esses elementos são fundamentais como afirmado acima, porém não são os únicos. Uma classe social, por si só, não se reconhece como tal de maneira mecânica e automática, ela se efetiva na medida em que vai tomando consciência de si mesma, de seus limites e potencialidades em relação à classe oposta por meio da luta. Assim sendo, o conceito de classe é indissociável da luta de classes.

Para Thompson (1977), classe é uma categoria histórica, e, portanto, implica um largo processo para forjar-se como tal. Subentendemos parte desse processo inclusive as próprias lutas particulares ou corporativas e sindicais com vistas à resolução de um problema específico, por exemplo, problema da terra, o problema dos salários, o problema de habitação etc.

Quando digo que classe e consciência de classe são sempre o último estágio de um processo real, naturalmente não penso que isso seja tomado no sentido literal e mecânico... A questão é que não podemos falar de classes sem que as pessoas, diante de outros grupos, por meio de um processo de luta (o que com- preende uma luta em nível cultural), entrem em relação e em oposição sob uma forma classista, ou ainda sem que modifiquem as relações de classe herdadas, já existentes. (Thompson, 1977, p.3)

11 No texto“Trabalho e classe trabalhadora no século XXI. Uma contribuição à crítica aos limites da teoria”.

Podemos afirmar que classe e a consciência de classe poderiam ser a síntese de uma larga tentativa de (des)estranhamento, de (des)fragmenta- ção das próprias identidades diversas nas quais se assumem os diferentes sujeitos da classe trabalhadora, a partir da particularidade de seu trabalho, de sua função nesse sistema totalitário. (Des)fragmentar as múltiplas lutas particulares que se forjam nos mais diferentes espaços e territórios de do- minação do capital, que atua de maneira desigual, mas sempre combinada, e circunscritas na totalidade de sua dominação material e imaterial.

Quando, neste trabalho, propomos inscrever a Via Campesina Interna- cional como organização social que faz enfrentamento às consequências do capital no campo, buscamos analisar desde seu projeto estratégico de suas práticas organizativas, de suas ações que buscam unidade entre os dife- rentes sujeitos do campo (sejam camponeses, trabalhadores assalariados, indígenas e comunidades afrodescendentes). Essa diversidade também é marcada pelas circunstâncias particulares que cada organização social vive em seu país, assim como a diversidade político-organizativa de cada uma delas.