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CAPÍTULO I TRABALHO INFANTIL: UM FENÔMENO MULTIFACETADO

1.4 Consequências do trabalho infantil para crianças e adolescentes

Uma das discussões mais importantes do debate sobre o trabalho infantil, tanto no Brasil como em nível internacional, é a discussão sobre a classificação de piores formas de

trabalho infantil, estabelecida pela OIT, por meio da Convenção 182, de 1999, a qual já foi ratificada pelo Brasil. As chamadas piores formas de trabalho infantil referem-se a:

(a) todas as formas de escravidão ou práticas análogas à escravidão, como venda e tráfico de crianças, sujeição por dívida e servidão, trabalho forçado ou compulsório, inclusive recrutamento forçado ou compulsório de crianças para serem utilizadas em conflitos armados;

(b) utilização, procura e oferta de criança para fins de prostituição, de produção de material pornográfico ou espetáculos pornográficos;

(c) utilização, procura e oferta de crianças para atividades ilícitas, particularmente para a produção e tráfico de drogas conforme definidos nos tratados internacionais pertinentes;

(d) trabalhos que, por sua natureza ou pelas circunstâncias em que são executados, são susceptíveis de prejudicar a saúde, a segurança e a moral da criança (OIT, 1999, p. 3).

Os países-membros que ratificarem a Convenção 182 deverão adotar medidas urgentes para a proibição e a eliminação das piores formas de trabalho infantil. A definição de atividades consideradas piores formas e a restrição da idade para admissão ao trabalho considerado perigoso ficam a critério de cada país. Em decorrência da ratificação da Convenção 182 pelo Brasil, o Presidente da República, à época, assinou o Decreto nº. 6.481/08 (BRASIL, 2008g), no dia 12/6/08, que aprova a lista das piores formas de trabalho infantil, proibindo, para qualquer pessoa abaixo de 18 anos de idade, a inserção nas atividades listadas. Uma das preocupações surgidas no debate sobre a Convenção 182 é a de que se poderia estabelecer a ideia da existência do trabalho infantil como aceitável, o que concentraria toda a luta na eliminação das piores formas e não abarcaria todas as diferentes atividades exercidas por crianças e adolescentes. Por isso, seria mais importante ratificar a Convenção 138, por ela se estender a todas as modalidades de trabalho infantil. Mesmo assim, de acordo com a avaliação de uma das pessoas entrevistadas, a lista elaborada conseguiu ser bem abrangente, elencando centenas de tipos de atividades ligadas à: agricultura, pecuária, silvicultura e exploração florestal; pesca; indústria extrativa; indústria de transformação; construção; comércio (reparação de veículos automotores objetos pessoais e domésticos); transporte e armazenagem; saúde e serviços sociais; serviços coletivos, sociais, pessoais e outros; serviço doméstico; trabalhos prejudiciais à moralidade; levantamento de cargas; ao ar livre, com exposição ao sol, chuva, frio; em alturas superiores a 2 metros; manuseio de produtos químicos; em espaços confinados, etc. (BRASIL, 2008g).

De acordo com a OIT (2004), o trabalho infantil acarreta uma vida sem infância, com muita responsabilidade para a idade e muitas vezes sujeita as crianças a ambientes violentos e

inseguros. Com relação à saúde, meninos e meninas que trabalham estão sujeitos a uma série de transtornos, que afetam o seu desenvolvimento físico, tais como má nutrição, problemas respiratórios, mutilações, queimaduras, doenças sexualmente transmissíveis, gravidez precoce, etc. A OIT (2004) destaca que estudos têm demonstrado que o trabalho com minério expõe as crianças à contaminação devido ao manuseio de produtos químicos, acarretando problemas respiratórios e deformações ósseas. Isso traz efeitos não só para a saúde física, mas também para a saúde psicológica e sobre a educação. A desnutrição e o retardo do crescimento são os efeitos negativos mais visíveis desse tipo de trabalho. No caso do trabalho doméstico em casa de terceiros, as crianças ficam vulneráveis a maus tratos físicos e psicológicos, ao abuso sexual e a acidentes de trabalho por execução de atividades perigosas, podendo ocorrer queimaduras e mutilações.

Os locais de trabalho, equipamentos e utensílios utilizados não são projetados para as crianças e sua utilização pode gerar problemas ergonômicos e de fadiga. Além disso, as crianças não estão cientes dos perigos envolvidos no trabalho e, em casos de acidentes, geralmente não sabem como reagir. As crianças são, também, menos tolerantes ao calor, barulho, produtos químicos, radiações etc. o que pode trazer problemas de saúde. (KASSOUF, 2005, p.122).

Uma análise das Pnad de 1998 a 2003 mostrou o efeito negativo do trabalho sobre a saúde de crianças trabalhadoras em comparação com crianças que não trabalham, principalmente as atividades de risco e o alto número de horas de trabalho. O estudo constatou que os setores de comércio e serviços, inclusive o trabalho como empregadas domésticas e de ambulantes, são os que mais afetaram negativamente a saúde das crianças (NICOLELLA,

apud KASSOUF, 2007).

Kassouf (2007) destaca que a maioria da literatura traz a perspectiva de que o trabalho infantil impede a aquisição de educação e de capital humano, pois, segundo a autora, em um estudo realizado por Kassouf/1999, Ilahi14; Orazen e Sedlcek/2000 e por Emerson e Souza/2003, com dados da Pnad, percebeu-se que quanto mais jovem uma pessoa começa a trabalhar, menor é o seu salário na fase adulta, sendo isso atribuído principalmente à perda dos anos de escolaridade devido ao trabalho na infância.

Lima (2002) alerta que o mundo do trabalho possui regras e hierarquias extremamente rígidas, com exigência de produtividade e submissão, assim como relações impessoais e até desumanas. Mesmo para os adultos, esses ambientes podem ser tornar insuportáveis, pois muitas vezes seus interesses e desejos não têm espaço. Imagine-se o que isso pode significar para uma criança ou adolescente ainda sem a maturidade para a administração de conflitos decorrentes do próprio trabalho e também a elaboração interna deles.

Obrigado a atender às exigências do trabalho, exposto precocemente a um ambiente extremamente castrador, o indivíduo em desenvolvimento pode construir uma auto-imagem onde predomina seu desvalor. Passa a se ver como errado, incapaz ou indigno. E suas vivências na família, escola e outras esferas podem confirmar essa imagem negativa (LIMA, 2002, p. 8).

A responsabilidade de ter que trabalhar e atender as exigências impostas pelo ambiente de trabalho afeta os desejos naturais de brincar e de expressar os seus interesses. O ato de brincar proporciona à criança a assimilação de conteúdos relacionados a diferentes campos da vida, desde o afetivo ao relacional e ao cognitivo. O impedimento de vivenciar isso livremente a empobrece na sua capacidade de expressão e compreensão. Lima (2002) destaca ainda que, junto a isso, o cansaço físico pode afetar negativamente o rendimento escolar e a aprendizagem. Desta forma, o trabalho na vida de uma criança interfere no desenvolvimento psicológico, pois pode ajudar a construir uma autoimagem negativa.

Château (1987, p. 14) mostrou em suas pesquisas a importância do jogo, da brincadeira na vida da criança. Para o autor, “uma criança que não sabe brincar, [...] será um adulto que não saberá pensar. A infância é, portanto, a aprendizagem necessária à idade adulta.” É por meio do jogo que a criança exercita a sua personalidade e afirma a si mesma.

Na perspectiva de algumas das pessoas entrevistadas, a informação e a conscientização dos pais sobre os prejuízos do trabalho precoce sobre a saúde de seus filhos e os riscos a que eles estão expostos podem ter um efeito significativo sobre a decisão da família, como pode ser observado pelos depoimentos abaixo:

[...] o ponto sensível da família é a questão da saúde, se a gente conseguir mostrar o quanto prejudica a saúde, a formação dos filhos os pais vão parar. Porque nenhum pai quer prejudicar seu filho. (sic) (R.2).

[...] a família não tem a dimensão da porta de possibilidade de violência que abre para a criança. Não enxerga o trabalho também como esse lugar facilitador da violação. (R5).

[...] eu me lembro de uma senhora no auditório Petrônio Portela [...], ela levantou o braço e disse: “eu criei doze filhos trabalhando e nenhum é bandido”. O que significa isso? O valor que ela dá ao trabalho (...). Como que eu dialogaria com essa senhora? Quando a senhora levava seu filho para a roça tinha condução? É por esse caminho que você consegue interlocução. A senhora trabalhava com agrotóxico? Como era o peso que a senhora pegava? [...] Eu tenho defendido que a gente comece a fazer campanhas em cima do campo, só com campanhas no campo que diga quais são os problemas que podem existir [...], ai eu acho que pode ajudar a funcionar. (grifo nosso) (sic) G.1.