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CAPÍTULO II DIFERENTES VISÕES SOBRE TRABALHO E CULTURA

2.3 Cultura como categoria para a discussão sobre o trabalho infantil

2.3.2 Contribuição de Pierre Bourdieu

Em seus estudos, Pierre Bourdieu identifica duas correntes intelectuais com relação a sistemas de representações no âmbito do conceito mais ampliado de cultura, sobre as quais apresenta sua crítica. A primeira posição está mais relacionada às obras de Sapir, Durkheim, Lévi-Strauss que se limitam a deduzir a cultura como estrutura estruturada, ao invés de concebê-la como estrutura estruturante, desconsiderando as funções políticas e econômicas dos sistemas simbólicos, destacando apenas a análise interna das mensagens de natureza simbólica. Essa linha de pensamento entende a cultura como instrumento de comunicação responsável pela produção de consenso quanto ao significado dos signos e também do mundo. A outra tendência refere-se à tradição marxista e às contribuições de Max Weber, as quais tendem a considerar a cultura e os sistemas simbólicos como instrumento de poder e de legitimação da ordem vigente. Para Bourdieu, essas perspectivas dão pouca margem à experiência e à vontade do indivíduo, ou melhor dizendo, do agente social (apud MICELLI, 1974).

O estudo de Bourdieu (1974) sobre os sistemas simbólicos enfatiza sua função política, pois a cultura consegue produzir e inculcar uma percepção da realidade segunda e simbólica, “de um conjunto de significantes/significados”, que é de onde provém sua eficácia.

Por isso, não existem relações de sentido que não estejam inseridas em um sistema de dominação.

O trajeto de Bourdieu visa aliar o conhecimento da organização interna do campo simbólico - cuja eficácia reside justamente na possibilidade de ordenar o mundo natural e social através de discursos, mensagens e representações, que não passam de alegorias que simulam a estrutura real de relações sociais – a uma percepção da sua função ideológica e política e legitimar uma ordem arbitrária em que se funda o sistema de dominação vigente (apud MICELI, 1974, p. XIV).

O poder simbólico é um poder invisível de construção da realidade. Consegue impor significações, garantindo, assim, certa integração social e, por conseguinte, a manutenção de uma ordem estabelecida (BOURDIEU, 2007).

De acordo com Bourdieu, as práticas sociais ocorrem dentro de um campo, definido como um espaço organizado a partir de posições de poder e trocas simbólicas. Deste modo, é no campo que se desenrolam as inúmeras relações constituintes da estrutura social. Apesar de o autor dedicar-se ao estudo de campos específicos, é possível identificar a existência de "leis genéricas", aplicáveis a quaisquer campos (esfera religiosa, intelectual, partidária, social, literária, acadêmica, artística ou política) (apud OLIVEIRA, C., 2001). A teoria de Bourdieu desenvolve o estudo das representações do mundo social e busca elucidar a arbitrariedade de certos esquemas de pensamento difundidos e reproduzidos historicamente.

De acordo com Cuche (1999), Bourdieu é considerado um dos principais representantes da Sociologia da Cultura. Assim, para o nosso interesse em especial, vamos recorrer ao conceito de habitus, por meio do qual ele trata da questão cultural.

Originalmente, esse conceito vem de uma noção filosófica antiga, com raízes no pensamento de Aristóteles e na Escolástica medieval e que foi recuperado por Bourdieu depois de 1960, com o objetivo de criar uma teoria “da ação capaz de reintroduzir na Antropologia estruturalista a capacidade inventiva dos agentes, sem com isso retroceder ao intelectualismo Cartesiano que enviesa as abordagens subjetivistas da conduta social” (apud WACQUANT, 2007, p. 2). O desejo de Bourdieu era evidenciar as capacidades inventivas, ativas e criadoras do habitus e, por conseguinte, do agente, considerando que essas capacidades não fazem parte de um “espírito universal” ou de uma “razão humana”, mas “o

disposição incorporada, mas sim o de um agente em acção”. (apud WACQUANT, 2007, p. 61).

A filosofia da ação de Bourdieu (2004) apresenta três conceitos fundamentais: habitus,

campo e capital, e sua centralidade está no estabelecimento de uma mão dupla entre o que o

autor chama de estruturas objetivas ou campos sociais e as estruturas que são incorporadas pelos indivíduos, ou seja, do habitus, e vem questionar a perspectiva de que uma ação ou representação seja considerada irracional por intelectuais se não estiver envolvida por razões explícitas do indivíduo plenamente consciente de seus objetivos e motivações. A tese do autor opõe-se ao reducionismo estruturalista do agente, que o concebe como simples produto da estrutura, e às oposições estabelecidas pelo discurso acadêmico entre indivíduo e sociedade, objetivo e subjetivo, etc. O autor defende que os indivíduos são ativos e atuantes (o que não significa que sejam sujeitos) e procura romper com a série de oposições estabelecidas pelo discurso acadêmico.

A teoria de Bourdieu diferencia-se também da tradicional análise marxista, que compreende os fenômenos políticos e sociais como decorrentes diretamente das relações e lutas entre as classes sociais e de questões socioeconômicas, em uma sociedade unidimensional determinada pelo modo de produção capitalista e suas contradições. Para Bourdieu,

o mundo social é um espaço multidimensional, que não pode ser reduzido a um determinismo econômico de classe, pois se apresenta diferenciado em campos relativamente autônomos, no interior dos quais os indivíduos ocupam posições determinadas”. (BOURDIER apud VALLE, 2007, p. 123).

Deste modo, os indivíduos estão predispostos a agir de uma determinada forma, a ter certas preferências e a buscar determinados objetivos em virtude do habitus. O “habitus é uma noção mediadora que ajuda a romper com a dualidade de senso comum entre indivíduo e sociedade ao captar ‘a interiorização da exterioridade e a exteriorização da interioridade’” (Bourdieu apud WACQUANT, 2007, p. 6). É a forma como a sociedade está presente nas pessoas, ou seja, nas suas maneiras de pensar, de sentir e de agir, que as orienta nas suas formas de reagir às demandas do meio social. Isso significa que as ações e as atitudes, sejam individuais ou coletivas, apresentam elementos que vão além da simples intenção objetiva, uma vez que são adquiridos inconscientemente por meio do convívio social e a partir desse

convívio são determinados (apud OLIVEIRA, C., 2001). O habitus é o que identifica uma classe ou grupo social, por isso, membros de uma mesma classe podem, com frequência, agir de modo semelhante, sem a necessidade de um acordo prévio, permitindo que as pessoas se orientem no seu espaço social a agirem de acordo com a sua vinculação social. Isso ocorre porque o habitus é completamente interiorizado pelo indivíduo, contudo, para ser eficaz, não é necessário que o agente tenha consciência disso. Deste modo, a perspectiva do habitus trazida pelo autor pode contribuir para uma aproximação maior ao aspecto cultural que é um dos elementos constitutivos do fenômeno do trabalho infantil, porém mais difícil de dar concretude do que os aspectos relacionados à renda e à pobreza, por exemplo.

Parece haver uma perspectiva homogeneizante no conceito de habitus, contudo, isso não necessariamente implica na negação do estilo de cada um, pois cada indivíduo tem uma singularidade no âmbito da sua classe e que está muito relacionada à sua “trajetória social”. Essa perspectiva de trajetória social é que permite que o conceito de habitus não assuma uma forma fixista e rígida, como se fosse um sistema mecânico e determinista das representações e ações sociais. As experiências e mobilidades de cada um ou de grupos ocorrida por várias gerações e interiorizada é que devem ser levadas em conta para analisar as variações do

habitus (CUCHE, 1999).

Wacquant (2007), um destacado aluno e discípulo de Bourdieu, explica que na perspectiva de Pierre Bourdieu, a ação do indivíduo não necessariamente é mecânica, como um reflexo das estruturas estabelecidas, e nem o resultado de uma busca intencional de objetivos, mas sim o resultado de uma relação dialética entre a situação presente e o habitus, pois este funciona como um sistema no qual as disposições são transponíveis e ao mesmo tempo duradouras e integra todas as experiências passadas que funcionam como uma matriz de percepções, tornando possível ao sujeito realizar tarefas diferenciadas, decorrentes de esquemas anteriormente adquiridos. Ao discorrer sobre a categoria de Bourdieu, Wacquant (2007, p. 7) apresenta algumas características fundamentais da força do habitus designando “uma competência prática do sujeito adquirida na e para a ação, que opera sob o nível da consciência” e:

a) resume uma aptidão social variável através do tempo e do lugar e, principalmente, através das distribuições de poder;

como nas escolhas políticas e matrimoniais. Isso é o que fundamenta os diferentes estilos de vida e ocorre numa mesma classe e entre os seus indivíduos;

c) é durável, contudo não é estático, nem eterno, pois a organização das coisas é socialmente montada e pode ser, com o tempo, desmontada, modificada, deteriorada quando exposta a novas forças externas, como pode ocorrer, por exemplo, nas situações de migração;

d) possui, porém, uma inércia incorporada; certo imobilismo na medida em que tende a produzir práticas moldadas, a partir das estruturas sociais que o geraram e também na medida em que filtra as últimas experiências. É como se os novos habitus fossem filtrados pelos velhos;

e) apresenta um hiato entre as determinações passadas e as determinações atuais que o confrontam, pois o habitus concede às práticas uma relativa autonomia com respeito às influências e determinações externas do presente imediato.

Os conceitos aqui apresentados ajudarão na análise das questões indicadas por gestores e outros atores que atuam no campo do Estado com relação ao enfrentamento do fenômeno do trabalho infantil e na maior aproximação do aspecto cultural, de como ele é entendido e abordado no campo da política pública. Em outro viés, mas não desconectado do campo do Estado, os conceitos nos apoiarão na análise da percepção de algumas famílias sobre a questão do trabalho infantil.