• Nenhum resultado encontrado

TRAJETÓRIA I – DAS “VIDAS SECAS” AO DESEMBARQUE NO MUNDO DAS

1.7 Considerações adicionais sobre a questão agrária no Acre

Pelo visto até aqui, o modelo em questão, além de ser incapaz de garantir condições sustentáveis de bem-estar coletivo, teve como principio a operacionalização de desigualdades e exclusões econômicas, o que minou as bases do exercício democrático. Em

41 decorrência dessa problemática, vêm à tona as demandas ligadas ao que Castoriadis22 denominava como a ‘ambição pelo controle ampliado’, ou a crença na ‘expansão ilimitada’ do domínio racional que distinguem o capitalismo e sua lógica de organização da existência moderna (WIZIACK, 2001).

Como esclarece Bauman (1998, p. 58), a estrutura do Panóptipo23 segue

critérios coercitivos da ordem política planejada, “uma arma eficaz contra a diferença, a opção e a variedade dos comportamentos e dos valores”. O controle social determina o nivelamento dos sujeitos, ocultando o desenvolvimento criativo das suas singularidades. A alienação torna- se imprescindível para a ‘paz política’. Para os grupos ainda resilientes, moldura-se práticas de extermínio. Nesse caso, como afirma Leroy (2010, p. 100), “não há necessidade de genocídio físico, basta o etnocídio24 e a naturalização da população, excluída da sua cidadania”.

Historicamente, no Brasil, a perspectiva triunfalista em torno das frentes pioneiras como operação civilizatória garantiu a expansão capitalista no campo, ocultou as expropriações advindas da frente agropecuária e das violências. Tal ideologia desconsiderou o aspecto cruel da fronteira, que se anunciou em sucessivos desajustes advindos do “desencontro genocida de etnias e de classes sociais contrapostas, não apenas pela divergência de seus interesses econômicos, mas, sobretudo, no abismo histórico que as separa” (MARTINS, 2009, p. 13).

Para Leroy (2010, p. 94), na territorialidade do capital “(...) o espaço é indiferenciado, somente tendo valor por sua base de recursos naturais”. O uso mercantil das terras veio ampliando as alterações na cobertura vegetal e permeabilidade do solo, erosão e posterior assoreamento dos cursos d’água, o que causou alterações no modo de vida das comunidades tradicionais, como a dos seringueiros do Acre, à medida que retirou os espaços naturais para ajustá-los ao novo modelo econômico.

22 CASTORIADIS, C. A instituição imaginária da sociedade. Tradução de Guy Reynaud; revisão técnica de Luiz Roberto Salinas Fortes. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982.

23 Em Globalização, as consequencias humanas, Bauman faz uma breve reflexão sobre as diferenças do modelo proposto por Foucault (Panóptico) e o banco de dados modernos, para compreender as singularidades residentes na existência de desvio social diante a norma.

24“Em etnologia o conceito de etnocídio foi introduzido e já tem curso há mais de duas décadas. A literatura especializada atribui a Robert Jaulin o mérito dessa construção. (...) Etnocídio (...) é a imposição forçada de um processo de aculturação a uma cultura por outra mais poderosa até o seu total desaparecimento. O etnocídio foi e é ainda frequentemente praticado pelas sociedades de tipo industrial com o objetivo de assimilarem, ‘pacificarem’ ou transformarem as sociedades ditas ‘primitivas’ ou ‘atrasadas’, geralmente a pretexto da moralidade, de um ideal de progresso ou da ‘fatalidade evolucionista’” (ALENCAR; BENATTI, 1993, p. 13).

42 Ponderou Martins (1989) que, ao contrário do trabalhador assalariado, ao camponês o trabalho não aparece como trabalho abstrato, um exercício equivalente ao dinheiro, pois a esse grupo social o trabalho existe como trabalho concreto, no usufruto da sua colheita, no laboro e na coesão da sua família, condição direta de sua existência. A expropriação, mesmo que dissimulada por mecanismos legais, lhe aparece “como ato iníquo, visto que é sempre violento e compromete a sua sobrevivência. Porque o priva do que é seu – o seu trabalho, meio e instrumento de sua dignidade e de sua condição de pessoa (MARTINS, 1989, p. 90).

Tais fatos remetem como esse sujeito, o camponês/extrativista, sofreu com o avanço do modo de produção capitalista. Foi expulso de sua terra , do Nordeste brasileiro e fronteira com a Bolívia, em contínuos processos de desenraizamento, seja ele do seu lugar, da forma como vive e com quem convive, colocando-o à margem. O descolamento desses grupos, mesmo com custos materiais e simbólicos, foi em busca da preservação de um modo de vida da família que trabalha na agricultura (e posteriormente, no extrativismo), para si mesma, e que não trabalha para os outros (MARTINS, 1997).

Trata-se de um processo, de ação explícita ou dissimulada por diversos agentes, incluindo o Estado, numa regulação subordinativa, pois buscou favorecer determinados atores hegemônicos, e objetiva a integração em níveis econômicos e espaciais mais abrangentes. Para Milton Santos, “tal integração é vertical, dependente e alienadora, já que as decisões essenciais concernentes aos processos locais são estranhas ao lugar e obedecem a motivações distantes” (SANTOS, 2004, p. 106-107).

Dentro das situações que envolvem o conflito agrário, o Estado brasileiro criou condições que avalizaram diversos tipos de expropriação: incentivos financeiros e isenções fiscais dados prioritariamente aos grandes setores produtivos, a infraestrutura física voltada para a produção e a circulação de bens, uso do aparato policial na reintegração de posse, entre outros (MARTINS, 1997, FOWERAKER, 1982, MOURA, 1988). Nos moldes considerados por Bourdieu (1989), também é operada a violência simbólica pelos mandatários do Estado, que possuem o monopólio de uma violência simbólica legítima, o que inclui a justiça, instituição na maior parte das vezes inacessível às classes subordinadas.

As formas de produção (e reprodução) ainda que contraditórias, foram estabelecidas e subordinadas nos termos a garantir a reprodução do capital. Martins (1995) enfatiza a legitimidade da luta camponesa pela posse da terra distinguindo a propriedade familiar da propriedade capitalista da terra. Destaca ainda que, na propriedade familiar

43 camponesa, as condições da produção social do lugar e da vida não são motivadas pelo lucro, mas pelo próprio trabalho e o de sua família. A terra para o camponês é “terra de trabalho”.

No entanto, mesmo diante desse confronto desigual, sabe-se que o campesinato teima, de diferentes formas, resistir pelo seu modo de vida, e pela manutenção de suas práticas, mesmo que seja necessário a procura de outro lugar, como é o caso dos camponeses brasileiros que moram na fronteira boliviana. No próximo capítulo, são exploradas as nuances desse processo e as suas implicações que seguiram adiante.

45

TRAJETÓRIA 2 - DO BRASIL À BOLÍVIA: NOVAS QUESTÕES INSTITUCIONAIS