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É perceptível, portanto, que a cobertura da Copa do Mundo de futebol realizada pelas revistas Veja e Época se baseou em uma dualidade – uma dualidade que pode (e deve) ficar clara: antes do início do evento, os jornalistas de ambas as publicações apresentaram uma abordagem positiva nos discursos sobre os aspectos futebolísticos do evento (escalação das seleções, expectativa de classificação e de título da Seleção Brasileira, presença de grandes nomes do futebol mundial no país, entre outros); porém, adotaram um tom negativo nos assuntos extracampo (relacionadas à infraestrutura e à organização das cidades-sede, aos

atrasos nas obras, ou aos protestos) – especialmente, quando as críticas foram direcionadas ao governo ou a grupos sociais contrários à política editorial das mesmas (voltadas para o livre- mercado e contrárias a políticas macroeconômicas regulatórias). Assim, os períodos de crítica ao evento se tornaram editorializados e a cobertura, polarizada e ideológica (para não dizer política, quando das críticas).

No caso específico de Veja, esse viés ideológico no discurso também se evidenciou nos momentos em que os jornalistas da revista construíram uma identidade positiva para o brasileiro que trabalha e estuda para o mercado e para a eficiência da técnica que leve ao lucro. Percebeu-se, então, que, assim como em Época, o periódico da Editora Abril foi favorável à organização da Copa do Mundo no país quando tratou de temas que envolveram o futebol como jogo (bola e campo), ou o futebol como negócio (bola e grana). Mas, ao mesmo tempo, ao reforçar uma perspectiva negativa sobre as características históricas que – supostamente – “definem” o brasileiro e a cultura nacional (apontadas por Sérgio Buarque de Holanda como uma herança de nosso passado colonial), as revistas se mostraram desfavoráveis ao evento quando o assunto foi infraestrutural e envolveu trabalhadores – especialmente os que não possuíam alto nível de estudo e especialização, ou os que não estavam vinculados à iniciativa privada e à “eficiência” da lógica de mercado – expressas, durante os textos analisados, pelo “padrão FIFA”.

Deste modo, a partir de uma perspectiva de sobreposição do privado em relação ao público, as revistas deixaram de lado qualquer tipo de manifestação contrária à FIFA (uma entidade privada), e criticaram, sobretudo, quem se opôs à organização da Copa no país (como, por exemplo, os black blocks) – e, por consequência, quem se opôs aos negócios e ao “desenvolvimento” (no sentido positivista do termo) trazidos pelo megaevento. Ademais, quando falaram sobre os erros (ou os atrasos) relacionados à organização do Mundial de Futebol no país e esses problemas tinham sido causados por funcionários de uma empresa privada – como no caso da Odebretch, construtora responsável pela obra da Arena Corinthians –, a responsabilidade pelas falhas foi apregoada (especificamente no caso de

Veja) ao Estado e a algumas características (como o improviso e o “jeitinho”) formadoras de

uma – reitera-se, suposta, instável e política – identidade nacional; características que, nos discursos das revistas, pareceram pertencer apenas aos brasileiros desprovidos de formação especializada ou aos brasileiros que não são vinculados ao setor privado, ou seja, aos brasileiros que não condizem com a lógica de valorização do privado sob o setor o público e que não estão inseridos neste primeiro setor.

Pode-se afirmar, então, que, antes do início do torneio, a cobertura de ambas as revistas foi eufórica; uma cobertura que, em determinados momentos, evidenciou um favoritismo dos brasileiros dentro de campo; mas, ao mesmo tempo, foi disfórica, quando destacou os problemas e mostrou preocupação com a organização do país para o megaevento. Ou seja, quando falaram de “bola e campo” (ou “bola e grana”), antes de a Copa começar, os jornalistas das revistas foram eufóricos; mas, quando falaram de preparação “extracampo”, foram disfóricos, dando provas de uma dualidade discursiva que se coloca como o escancaramento de uma visão do brasileiro a respeito de sua cultura, uma visão que acaba sendo expressa, por muitos grupos sociais, como marcas identitárias “nacionais”: em determinados momentos, somos os “melhores”; pouco tempo depois, os “piores”; os melhores no futebol, mas os piores na política; os melhores no futebol, mas piores na educação e na cultura; os melhores no futebol, mas os piores no “desenvolvimento” e no “progresso” (novamente, no sentido positivista das palavras).

Contudo, na medida em que pudemos analisar as reportagens e textos das revistas durante e depois do Mundial, a inversão nos discursos acerca da brasilidade se tornou flagrante: o que antes do início do evento era celebrado, como uma das características culturais diferenciadoras dos brasileiros em relação a outras nações (o futebol nacional), ao final do torneio, tornou-se motivo de vergonha e de humilhação ante ao olhar estrangeiro. Em contraposição, o que, nos momentos de preparação, foi descrito em tom apocalíptico e dramático (a dúvida na capacidade de organização de determinados brasileiros, a certeza de problemas infraestruturais, e o caos nas ruas e na recepção aos turistas), passou a ser celebrado pelos periódicos à medida que a Copa transcorria.

Neste sentido, vê-se como a noção de identidade brasileira é instável, intercultural, e múltipla (em determinados momentos, dualista – notadamente, quando se pensa no futebol como elemento de distinção nacional), uma vez que, antes do início do evento, Veja e Época trabalharam com uma identidade lúdica profundamente estabelecida, que reforçou a visão de Brasil como a pátria do futebol; mas, ao mesmo tempo, em um nível “extracampo”, restauraram uma identidade de valorização do padrão europeu e do estrangeiro, nos momentos em que falaram sobre eficiência e qualidade nos serviços. Um dualismo que, aos poucos, se inverteu nos discursos das revistas, conforme o Mundial de Futebol se desenrolou de maneira positiva e as previsões catastróficas e apocalípticas (com relação à capacidade do Brasil e dos brasileiros de organizar um megaevento) se esvaíram – bem como a “força” dos “guerreiros

de camisa amarela” e a ideia de que somos o “país do futebol”. Enfim, uma dualidade

e os discursos do jornalismo de revista nacional (sobretudo, numa relação de retroalimentação discursiva e ideológica entre os jornalistas dos periódicos e o público-alvo dos mesmos).

Portanto, têm-se, com o presente trabalho, uma comprovação (ainda que parcial) de que os conflitos e os tensionamentos aos quais as sociedades interculturais e seus grupos culturais e sociais estão submetidos podem se desenvolver, se disseminar e se legitimar, também (e, por que não, com relevo), por meio das plataformas de comunicação de massa e/ou das páginas de uma revista, como são os casos de Veja e Época. Por isso, cabe aos pesquisadores em comunicação a tarefa de perceber e analisar como esses espaços de negociação de conflitos e de tensões sociais se articulam com a produção e a atribuição de identidades nacionais, culturais e sociais nos veículos de imprensa e na esfera pública. Além disso, cabe verificar como a combinação da análise de textos históricos e teóricos com a análise das reportagens de um veículo de comunicação contemporâneo pode funcionar como um profícuo instrumento metodológico de produção científica em Comunicação e em outras áreas das Ciências Sociais e Humanas.

Entretanto, já adiantando uma hipótese para novos trabalhos, é importante que nos questionemos a respeito das tais ideias de brasilidade, num contexto de globalização e de fragmentação das relações sociais (e, por consequência, da produção das identidades culturais e nacionais). Por isso, terminaremos esta monografia de conclusão de curso do mesmo modo que a começamos (e reconhecendo que, este, é um dos pontos que não conseguimos abarcar da maneira que se esperava). Neste sentido, é fundamental que se faça a seguinte pergunta: existiria, de fato, um “ser brasileiro” único? Ou seja, é possível que se pense em uma identidade “essencialmente” brasileira; uma identidade unicamente nacional; ou uma identidade que englobe todos os brasileiros, em um só “pacote” identitário? No contexto de fragmentação das relações sociais e de globalização da produção simbólico-cultural, seria apropriado que encerrássemos com uma única palavra, objetiva e forte: não! Mas, em se tratando da questão da brasilidade e das culturas nacionais, é melhor que não nos precipitemos: provavelmente (!), não. Deixa para uma próxima reflexão.

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