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A Construção da Política de Parceria

3.8 Considerações finais

A política para HIV/Aids parece ser um bom exemplo de um novo formato de atuação do Estado que vem sendo construído não só com políticas e programas estatais, mas com uma gama mais ampla de respostas sociais e políticas à epidemia que emerge de vários setores da sociedade (Parker 2003:08). Pode, assim, sinalizar um novo padrão a ser seguido na formulação de outras políticas sociais governamentais.

Esse novo padrão pode ser relacionado ao conceito de responsabilidade política estendida, exposto por Stark e Bruszt (1998). Ao estender a responsabilidade política para um conjunto de atores plurais – de forma contínua no tempo e não apenas em períodos eleitorais – reduz-se a possibilidade de os Executivos cometerem erros em políticas cruciais. As discussões com os diferentes canais aumentam a compreensão dos formuladores de políticas sobre suas decisões que, ao considerarem informações críticas, podem antecipar conseqüências econômicas, políticas e sociais futuras de suas ações.147

Em alguns dos diversos documentos de apresentação e divulgação do PN essa noção parece surgir de forma clara:

Os princípios pelos quais o Estado brasileiro assegura a saúde como um direito constitucional são: descentralização; utilização da epidemiologia para definição de prioridades; ampliação das ações de caráter preventivo, com ênfase na integração prevenção/assistência; participação complementar dos serviços privados e acesso universal e gratuito a todos os níveis do sistema de saúde. O Programa Nacional segue estes princípios [...] Como em todo processo de dimensões políticas, sociais e culturais, a implementação da estratégia de governo pressupõe diálogo, negociação e parcerias entre os atores sociais a base de legitimidade das decisões e de implementação das ações. (Ministério da Saúde, 1994:4)

A parceria com a sociedade civil constitui um dos pilares mais importantes da atual política governamental na luta contra a Aids, que tem sua expressão calcada no controle social e na participação direta da sociedade nas decisões e proposições de políticas públicas. (Ministério da Saúde, 1998a:10)

A Coordenação do Programa Nacional de DST/Aids entende que a elaboração e a implementação de uma ação continuada de prevenção não pode estar limitada ao âmbito do governo, sujeito a descontinuidade administrativa e sem mecanismos eficazes para participação comunitária. Apenas a parceria com a sociedade civil poderá garantir o envolvimento amplo de todos os atores sociais na construção de uma política de prevenção realmente eficaz e a mobilização necessária para sua manutenção ao longo do tempo. (Ministério da Saúde, 1994:7)

147 Dito de uma outra forma, a existência de mecanismos institucionais que permitem maior participação dos

Nesse mesmo sentido, Parker (2003:9) sugere que as bases do sucesso do programa de Aids brasileiro encontram-se no fato de vir sendo construído por um longo período de tempo e por um grande número de atores sociais, ora trabalhando em colaboração, ora em conflito.

Da mesma forma o Banco Mundial (The World Bank, 2004) ressalta que a sistemática de apoio a ONGs foi uma inovação no Brasil, concebida para acomodar um enfoque multi- setorial na luta contra o HIV/Aids. E justamente nesse enfoque multi-setorial, as ONGs eram consideradas um dos três principais executores do projeto – ao lado de governo federal e dos estados/municípios.

A pesquisa nos mostrou a existência desse padrão, ao apontar a busca do gestor federal por um contato maior com lideranças de grupos vulneráveis (ainda no Projeto Previna) para a formulação de ações desses grupos e, posteriormente, pela busca de apoio e inclusão de representantes de ONGs na formulação da política de Aids, por ocasião do empréstimo do Banco Mundial, a partir justamente de uma experiência anterior, de menor diálogo.

O estabelecimento desta nova sistemática se insere em um contexto de evolução e/ significação do próprio conceito de ”parceria”, conforme ressaltado por Spink (Ministério da Saúde, 2003). De um conceito inicial caracterizado enquanto “diálogos entre pessoas unidas por um objetivo comum e ainda carentes de explicações e soluções técnicas” passa a ser vista como “uma complexa rede de co-participes com funções distintas na luta conta a aids”:

O sentido de parceria, na ótica dos documentos de apresentação pública do PN, deslocou-se, assim, da ação conjunta “barulhenta” das alianças eventuais para o apoio técnico e financeiro de um (o PN), face ao potencial de ação capilar do outro (as ONG). (Ministério da Saúde, 2003a:17)

Parece também confirmar a mudança no padrão de provisão estatal exclusiva (Farah, 2001), apontando os novos arranjos institucionais para a construção de redes institucionais que reúnem diversos atores, envolvendo articulações intersetoriais, intergovernamentais e entre Estado, mercado e sociedade civil. Nesse cenário, o enraizamento das políticas em um espaço público além da esfera estatal reforçaria a possibilidade de políticas de longo prazo, com repercussões sobre sua eficiência e efetividade.

Outros documentos também ressaltam esse novo padrão, ao reconhecer a incapacidade do setor governamental em sozinho captar determinadas demandas sociais e ao destacar seu papel mais regulador, em detrimento do papel de fornecedor direto de serviços.

Em 1996, inicia-se uma nova etapa na relação do Estado com a sociedade civil, marcada fundamentalmente pela instituição de parceria efetivas com diferentes organizações sociais e pelo reconhecimento de um novo padrão para execução de políticas públicas, tendo o Estado um papel de regulação no plano econômico e social. (Ministério da Saúde, 1998a: 33)

Existe hoje um consenso sobre a impossibilidade de o setor governamental, atuando de modo isolado, captar as diferentes demandas das pessoas afetadas pelo HIV no país, e respondê-las de forma adequada. (Ministério da Saúde, 1999a:163)

De fato, percebe-se que no campo da Aids o padrão de provisão estatal exclusivo parece não conseguir suprir as novas demandas que surgem, sendo esta lacuna suprida em parte pelo trabalho das ONGs, que ao longo dos anos desenvolveram um trabalho importante e acumularam conhecimento e inovações. A partir das dificuldades do Estado em responder essas demandas, buscam-se formas alternativas com o objetivo de contornar tais dificuldades.

O Ministério da Saúde mantém parceria com mais de seiscentas organizações da sociedade civil na luta contra a Aids. São estas entidades que fazem o trabalho de varejo do controle da epidemia, dando assistência, criando grupos de apoio a soropositivos, lutando por seus direitos, melhorando sua auto-estima e poder de reivindicação. São parceiros fundamentais para a descentralização do programa.148

Outra questão entre as motivações das parcerias refere-se ao trabalho com os grupos mais vulneráveis. Em situações como essa, que envolvem políticas públicas dirigidas a grupos cercados de polêmicas sociais e que muitas vezes representam valores e estilos de vida não compartilhados por grande parte da população, a parceria com OSCs pode ser um recurso largamente utilizado pelo Estado para dar resposta às pressões desses grupos por ações do Estado a eles dirigidas e suprir suas necessidades por políticas públicas.

Em outras palavras, a existência de OSCs permite ao Estado delegar tarefas públicas sensíveis, controversas ou não desejadas, fortalecendo-as enquanto grupo de interesse (Kramer et al., 1993). O Banco Mundial (The World Bank, 2004:7, 29) se vale desse pensamento ao atribuir às ONGs uma “vantagem comparativa”: na análise do Banco, ONGs têm um papel determinante na luta contra o HIV/Aids, pelo acesso a esses grupos, pela disponibilização de atividades de prevenção, assistência e advocacy e também pelo fato de realizarem uma interface entre grupos vulneráveis e os serviços públicos, objetivando aumentar seu acesso e utilização.

Não apenas isso. A pesquisa nos mostra que as ONGs conseguiram efetivamente acessar essas populações e lhe oferecer alternativas para tratar de suas especificidades, o que

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confirma um outro argumento para o apoio a trabalho de ONGs, sua capacidade de dar respostas a interesses particularistas de grupos específicos ou minoritários (Kramer et al., 1993; Gidron et al., 1992; Ministério da Saúde, 1998a).

Além da possibilidade de atingir as relações interpessoais e de sua proximidade em relação à vida cotidiana de pessoas vivendo com HIV/Aids e de populações mais vulneráveis, tais organizações podem agir também como uma espécie de termômetro para os serviços governamentais, retratando a qualidade destes justamente a partir das demandas recebidas e/ou produzidas (Ministério da Saúde, 2001b).

Concluindo, podemos expor uma visão de aprendizado conjunto e de troca de expertises:

Foi um processo de aprendizado de ambos os lados. A ONG desde o início tinha um aval já construído, já mais claro do que o do governo. Mas também estava aprendendo. Ainda não tinha todas as respostas na mão, na ponta da língua, para atuar frente à epidemia. O fato de o governo entrar, fortalecer e apoiar projetos também possibilitou que ela se aperfeiçoasse e entrasse com os vários segmentos da população em termos de prevenção, de assistência. Mas o governo foi se “apropriando” dos resultados, em termos de conhecimento, que as ONGs iam conseguindo [...] Tinha um caminho mais à frente, nas suas ações, na sua forma de pensar e na definição das políticas públicas. Além de financiar projetos, que foi a grande linha do Aids I, um dos maiores ganhos foi justamente fazer a aproximação governo e sociedade civil. Efetivamente, garantir um espaço de articulação nessas duas esferas. Um espaço que permitia que a ONG, as lideranças e os movimentos sociais organizados definissem junto com o governo a política pública para o enfrentamento do HIV/Aids.149

Discutidos e analisados os motivos para o estabelecimento de uma política de parcerias com as ONGs na prestação de serviços, o capítulo seguinte busca discutir em que áreas da política pública de combate ao HIV/Aids essa parceria se deu mais fortemente. Em outras palavras, quais são esses serviços oferecidos pelos projetos de ONGs apoiados pelo Estado.

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Serviços em HIV/Aids: divisão de trabalho e