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A Construção da Política de Parceria

3.6 ONGs com estruturas mais flexíveis/dinâmicas

O acesso às populações mais vulneráveis não se revela apenas pelos conceitos de educação entre pares e outreach work, a ressaltar confiança, acesso, identificação e partilha de valores iguais. Mostra-se também pela existência de uma infra-estrutura mais adequada para a realização de trabalhos, especialmente no campo da prevenção. Muitas das atividades são realizadas no período da noite e nos mais diversos locais, como em boates, casas de show, bordéis, ruas de prostituição, praças e becos para uso de drogas, locais estes muitas vezes de difícil acesso e que oferecem riscos à segurança de quem lá se encontra.

Este argumento também será exposto pelos gestores como um dos motivos que levaram à parceria:

Na questão da prestação de serviço, as ONGs tiveram um papel bastante importante em atividades de prevenção, especialmente para as populações que o serviço de saúde normalmente não cobre. São populações de difícil acesso – o formato do serviço público não permite que você as atinja. Você tem que ir para a rua, para lugares que não são formais da sociedade. A mobilidade das ONGs facilitou muito isso e facilita até hoje. Elas têm um papel na intervenção muito importante. Além do mais, as ONGs tinham uma proximidade maior com essas populações. Muitas pessoas vieram desses grupos, pela questão de trabalho entre pares, e davam legitimidade e mais propriedade para a integração.136

Esse gestor contrapõe a configuração dos trabalhos de prevenção ao formato do serviço público. Imagine-se como seria possível ao Estado realizar essas atividades por intermédio de sua estrutura, a qual normalmente é estática, possui funcionários fixos e com turno de trabalho fixo, e em muitos casos reduz ou interrompe suas atividades no período noturno. Imagine-se a estrutura necessária para criar uma logística que pudesse dar conta de percorrer os mais diversos pontos nas grandes cidades brasileiras.

O acompanhamento do trabalho de algumas ONGs nos permitiu ter uma melhor idéia de sua importância e de como se faz necessária uma logística apropriada.

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Uma das atividades cruciais dos projetos de ONGs de profissionais do sexo, por exemplo, é o mapeamento dos diversos pontos de prostituição – praças, ruas, boates, casas e mesmo pequenas salas em prédios comerciais. Alem de “descobrir” esses pontos, é necessário um trabalho de aproximação e quebra da resistência, comum às prostitutas quando se trata de algum assunto relacionado à Aids e a outras DSTs. Existe um longo e recorrente processo de transmissão de informações sobre a necessidade de cuidado com o corpo, de convencimento ao uso constante e correto do preservativo, o que muitas vezes só se consegue ao se estabelecer uma relação de confiança entre os interlocutores.

Da mesma forma realizam-se os trabalhos com homossexuais, que incluem visitas, entre outros lugares, a saunas, parques e cinemas “de pegação”, em um contato muito semelhante a situações de clandestinidade e até ilegalidade.

Nesse trabalho, a ONG pode passar toda a madrugada percorrendo diversos pontos da cidade,137 e isso para apenas uma ou duas populações específicas – imagine-se um trabalho voltado a várias populações.138 Dessa forma, a parceria permite o estabelecimento de vínculos de cooperação com ONGs ligadas a esses vários grupos, que se encarregarão dos mapeamentos necessários para se saber os locais para a realização dos trabalhos de prevenção e atuarão diretamente com seus pares.

Tornou-se um senso comum as ONGs dizerem que vão para campo. “Ir para campo” é ir a boates, distribuir panfletos, ir à Parada Gay, aos eventos coletivos que acontecem onde se encontra aquele público que desejamos alcançar e onde a sua capacidade de intervenção, o seu trabalho preventivo, têm melhor repercussão.139

Ou seja, atividades de prevenção com essas populações trazem novas necessidades para delimitar o serviço: via de regra não são feitos em postos de saúde ou nos equipamentos públicos, e acontecem em horários e lugares alternativos. Isso ultrapassa a prestação de um serviço tradicional de saúde, sendo necessário ir além da estrutura estatal tradicional.

Desde cedo no programa de Aids já se notou que o trabalho do governo, dos funcionários públicos, ou o trabalho de organizações governamentais, com algumas populações – como usuários de droga e profissionais do sexo – tinha grandes entraves. Primeiro, o conceito tinha de ser construído para dentro. Mesmo tendo pessoas com um conceito interessante para o trabalho, com um bom perfil, surgem problemas

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Afirmamos novamente nossos agradecimentos ao NEP – Núcleo de Estudos da Prostituição, de Porto Alegre, e ao Grupo Liberdade, de Curitiba, por meio dos quais pudemos acompanhar esses trabalhos in loco.

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A ONG Igualdade RS, por exemplo, realiza toda semana um trabalho de prevenção junto a travestis e caminhoneiros (clientes dessas travestis) em postos da Grande Porto Alegre.

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administrativos, o trabalho é feito à noite, normalmente, ou é feito em campo. Não é uma prática, é um problema até de cultura, de como é o funcionalismo público.140

Um outro fator relacionado a essa infra-estrutura diz respeito à capacidade de identificação trazida pelo conceito de peer education. Ao menos teoricamente, pode-se imaginar haver significativa diferença caso o trabalho fosse realizado por servidores, que não necessariamente teriam uma identificação com as populações atendidas e, por vezes, teriam até valores radicalmente conflitantes. Diz-se isso em relação a uma potencial maior eficácia na atividade de campo e também em face da capacidade das ONGs em mobilizar esforços de voluntários para essas atividades, o que o Estado teria maior dificuldade em fazer.141

Portanto, este terceiro argumento justifica a realização da parceria também pelas novas necessidades trazidas pelos trabalhos de prevenção ao HIV/Aids, que exigiam uma estrutura de trabalho e de logística diversa daquela normalmente associada ao Estado. A parceria aos projetos de ONGs se dá em face de elas serem capazes de trabalhar nessa estrutura distinta e, com isso, realizar as atividades de prevenção necessárias.

Em outras palavras, permite-se um processo de flexibilização e desburocratização da gestão social, obtendo-se “prestações adaptadas aos públicos envolvidos, em oposição às prestações uniformes que tendem a caracterizar a oferta pública estatal” (Bresser Pereira & Grau, 1999:36).