• Nenhum resultado encontrado

3. ANÁLISE DOS DADOS: UM EMARANHAMENTO DE VOZES

3.3 Considerações finais

Antes mesmo de o sujeito hispano-falante se inscrever em discursividades brasileiras, em situação de imersão, ele já se encontra em um universo de percepções, interpretações, sobre a língua portuguesa, dotado de significação. Nesse sentido, esse sujeito não se nega às falas de seu ambiente e coloca em palavras o que percebe dela, do que ela é e o que se espera dela. Essas projeções imaginárias antecipadas, sócio-historicamente construídas, marcam um caráter familiar do português-brasileiro na visão dos sujeitos hispano-falantes.

A transparência de sentidos entre essas línguas garante a compreensão dos sujeitos hispano-falantes de forma espontânea. Isso lhes permite falar o português-brasileiro, permanecendo no espanhol ou numa versão do espanhol “mal-falado”. Essa filiação identificadora dos sujeitos hispânicos se estabeleceu talvez por conveniência ou cumplicidade, uma vez que os pouparia de um estudo sistemático da língua portuguesa. Nesse sentido, as interpretações do sujeito hispano-falante são sintomas também de uma contra-identificação em relação à língua portuguesa.

Podemos considerar, então, que o que ocorre é uma identificação ilusória com um “português imaginário”. Em um primeiro momento, o português e o espanhol são considerados “línguas parecidas”, proporcionando uma ancoragem na língua materna. Portanto, compreendemos que o sujeito hispano-falante manifesta uma relação amplamente inconsciente com a própria língua e o saber que ela permite construir no que tange à língua estrangeira. No início do processo, o sujeito se encontra em condições de re-produzir discursos com memórias próprias, com léxico, sintaxe, modos de dizer e sotaque. (RAJAGOPLAN, 1997). Nesse processo, a língua utilizada é parte constitutiva da memória discursiva do sujeito hispano-falante.

Podemos considerar a sua língua como um lugar e uma forma específica de inscrição da memória histórica, enquanto representações sobre o português-brasileiro pelos sujeitos hispânicos. Isso significa que as projeções imaginárias antecipadas sobre o português- brasileiro, em grande parte, são determinantes no modo do acontecimento do processo de produção-compreensão dessa língua, que é da ordem da subjetividade e das determinações sócio-históricas.

Em síntese, todo sujeito hispânico, ao enunciar no português-brasileiro, estará, em grande parte, sob efeito da manifestação de sua consciência epilingüística.

No processo de inserção dos sujeitos hispano-falantes na sociedade brasileira, ou melhor, ao se inscreverem em discursividades brasileiras, quando o sujeito hispano-falante é exposto ao funcionamento real do português-brasileiro, ele percebe que não consegue falar a língua portuguesa e menos ainda escrever. Os efeitos de sentido dessa falta de identificação, melhor dizendo, de contra-identificação com o português-brasileiro, conduzem o sujeito hispânico, num primeiro momento, a falar o portunhol: (...) só entendia e falava um

portunhol.

Nessa fase, a utilização do portunhol permite uma comunicação espontânea com os brasileiros, por meio de uma linguagem imaginária, inventada e, portanto, essa língua (representação do português) apresenta ao hispano-falante uma liberdade de fala (ilusória), assim como uma resistência ao estudo sistemático do português.

A tomada de distância entre as línguas, por um lado (antes) considerada muito pequena (“línguas semelhantes”) era fonte de prazer para o sujeito hispano-falante, pois este considerava que o português pertencia à dimensão da sua língua materna. Por outro lado, a distância torna-se fonte de obstáculos, na medida em que torna-se maior o contato com a língua portuguesa, produzindo, então, outras significações, ou seja, o entendimento entre hispânicos e brasileiros sofre deslocamentos, como, por exemplo, na enunciação: É muito

difícil. Palavras que se escrevem igual mas significam outra coisa, não consigo diferenciar se está certo ou errado. Dessa forma, percebemos uma relação caracterizada pela contradição.

Essa situação pode fazer com que o sujeito hispano-falante permaneça numa posição de “entremeio” (CELADA, 2002), numa zona em que as duas línguas se cruzam, se entrelaçam, ou pode submeter-se às diferenças entre essas línguas, num movimento de identificações com o real da língua portuguesa. Em tal movimento, o sujeito hispano-falante deve estar aberto aos estranhamentos com a língua portuguesa e com os “fenômenos da transferência” (GONZÁLEZ, 2005) que intermedeia o contato com a língua alvo, produzindo vários efeitos na produção em língua portuguesa. Nossa hipótese é que tais efeitos sejam em grande parte conseqüências das antecipações imaginárias desses sujeitos hispânicos em relação às duas línguas, o português e o espanhol. Essas percepções dos sujeitos hispânicos, decorrentes da experiência no processo de inscrição em discursividades brasileiras, podem levá-los a falar ou escrever um português “mal-falado” ou “muito informal”.

Nossa compreensão é de que há identificação simbólica e imaginária do sujeito hispano-falante com a oralidade do português-brasileiro numa versão mal-falada. Nesse movimento de identificação, o sujeito hispânico é afetado pelo real da língua e da história,

pela disjunção que atravessa a relação do brasileiro com o funcionamento de sua língua, no que diz respeito a como ele lida com a fala e a escrita. Em outras palavras, o sujeito é afetado pelo discurso enquanto prática social, impregnado, obviamente, de elementos culturais, sociais, históricos, constitutivos das práticas discursivas brasileiras. Nessa perspectiva, para ter acesso à norma padrão da língua portuguesa, o sujeito hispânico deverá passar pelo processo de ensino/aprendizagem formal, assim como normalmente acontece com os brasileiros, no que se refere à aquisição da língua espanhola.

Em síntese, podemos afirmar que, para se inscrever em discursividades brasileiras é necessário um deslocamento da compreensão do português-brasileiro como uma língua familiar ao espanhol, para que o sujeito hispânico possa se submeter às diferenças entre essas línguas, às não-coincidências interlocutivas do dizer. Isso significaria superar uma concepção de língua como mero instrumento de comunicação e tomar consciência do que representa a aprendizagem profunda de uma língua, pois, “aprender uma língua é sempre, um pouco, tornar-se um outro”(Revuz, 2002, p.227).

Acreditamos que os saberes metalingüísticos e epilingüísticos, as suposições prévias e as experiências dos sujeitos dispostos a tomar a palavra em língua estrangeira, em situação de imersão, mesmo em circunstâncias anteriores de aquisição propriamente dita, são fundamentais para que se possa trabalhar com acontecimentos discursivos que fazem parte desse processo de se inscrever em discursividades na língua estrangeira, podendo vir a proporcionar resultados que possam ser objetos de reflexão de lingüistas.

No processo de aquisição de uma língua, acreditamos, pois, que diversos fatores interagem, proporcionando situações de aprendizagem bem-sucedidas ou não. Nessa perspectiva, parece importante levar em consideração representações, antecipações imaginárias, identificações, dos sujeitos envolvidos no processo de enunciar em outra língua. Quer nos parecer, portanto, ser inevitável não pensar na relação de um sujeito com a sua enunciação, ao se inscrever em processos de produção e compreensão discursiva em língua estrangeira, e todas as implicações que isso acarreta, especialmente em relação à subjetividade que se estabelece, dando lugar a filiações identificadoras que surgem como tomadas de posição, conforme as filiações de memórias discursivas do enunciador e não uma aprendizagem por interação. Nessa perspectiva, estamos convencidos de que trabalhos como este podem contribuir no que diz respeito à área de aquisição em contexto de imersão e de ensino/aprendizagem de línguas estrangeiras, especialmente no que concerne ao português-

brasileiro e ao espanhol, línguas geralmente encaradas como “singularmente estrangeiras”112, então, dignas de um estudo ancorado em especificidades inerentes a essa condição.

112

Celada (2002) caracteriza o espanhol como uma “língua singularmente estrangeira” para o brasileiro. Nesse sentido, estamos incluindo também o português como língua singularmente estrangeira para os falantes