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3. ANÁLISE DOS DADOS: UM EMARANHAMENTO DE VOZES

3.1. Primeiro momento: primeiras projeções e teatralização

3.1.6 Falar pela garganta ou falar pelo nariz

Nas enunciações (6) Falando devagar pode-se entender e (12) Espanhol fala

pela garganta , português mais pelo nariz, podemos relacionar os falantes e as línguas e os

espaços de enunciação como funcionamento de línguas, tal como conceitua Guimarães: “os falantes são estas pessoas enquanto determinadas pelas línguas que falam (...). São sujeitos da língua enquanto constituídos por este espaço de línguas”. Continuando, Guimarães define “os espaços ‘habitados’ por falantes, [sendo espaços habitados] por sujeitos divididos por seus direitos ao dizer e aos modos de dizer” (2002, p.18). Assim, as estratégias de comunicação utilizadas pelos sujeitos hispânicos invadem os “espaços habitados” pelos falantes de português; os sujeitos hispânicos não são constituídos pelo espaço da língua portuguesa; portanto, eles não são sujeitos dessa língua.

O advérbio de intensidade mais marca a distinção entre as línguas: espanhol

fala pela garganta, português [fala] pelo nariz. Desse modo, pressupõe-se que os sujeitos

falantes e as línguas estão divididos por diferentes modos de dizer. Trata-se da capacidade do sujeito hispano-falante de jogar de modo diferente com os sons, entonações e acentuações de uma forma simples (da garganta para o nariz). Isso parece levá-lo a pensar que essa adesão à musicalidade da língua do brasileiro significa a incorporação dessa língua em todas as suas dimensões. Revuz, ao designar a língua como um objeto complexo, menciona que:

Objeto de conhecimento intelectual, a língua é também objeto de prática. Essa prática é, ela própria, complexa. Prática de expressão, mais ou menos criativa, ela solicitará o sujeito, seu modo de relacionar-se com os outros e com o mundo; prática corporal, ela põe em jogo todo o aparelho fonador. [...] o exercício requerido pela aprendizagem de uma língua estrangeira se revela delicado porque solicita [...] nossa relação com o saber, nossa relação com o corpo e nossa relação com nós mesmos [...] (2002, p.216-217).

O sujeito falante não articula a língua de um mesmo lugar. Ele não se dá conta de que mudar de lugar com a mudança de língua não é apenas falar pela garganta ou falar

pelo nariz. A produção de sentidos não está associada a uma mudança da posição de sujeito

na língua materna (falar pela garganta) para uma posição de sujeito na língua portuguesa (falar pelo nariz). Os enunciados podem ter a forma da língua portuguesa, mas os sentidos são da língua materna. Assim, a relação do sujeito hispano-falante com a estrutura da língua portuguesa é uma relação termo-a-termo, numa tentativa que possibilita vivenciar a literalidade de significados entre as línguas.

A garganta e o nariz não são órgãos que dão sentido às palavras. Ao falar uma língua estrangeira, o sujeito falante se movimenta por “diferentes lugares porque sua subjetividade não é a mesma” (MELMAN, 1992, p.47). Em outras palavras, a língua solicitará ao sujeito: sua relação com o seu saber, com ele mesmo, com o seu corpo, com os outros e com o mundo, como nos diz a citação acima, na produção de novos sons e significados da língua estrangeira.

O sujeito falante parece estabelecer critérios de relevância na medida em que interpreta as condições de produção de seu discurso. Ele, provavelmente, faz pressuposições tais como: “como vai ser: quem vai falar?” e “como essa língua deve ser falada?”. No caso de sujeito falante de espanhol, ele fala pela garganta; um brasileiro fala pelo nariz. Podemos vincular essa imagem, sob cujo efeito estão os hispano-falantes, ao teatro, a uma forma de encenação (de representação). Essa parece ser a forma de relação que o sujeito hispano- falante estabelece com a língua e, conseqüentemente, com o próprio processo de aquisição.

Ao falar da situação da língua alemã em Praga, Deleuse & Guattari (1977) se questionam sobre a quantidade de pessoas que vivem em uma língua que não é a delas; ou nem mesmo conhecem mais a língua delas ou ainda não a conheceram, e conhecem mal a língua do outro, da qual são obrigados a se servir. Como resposta a essas questões concluem que essa é a situação dos imigrados, das minorias, da literatura menor46, mas também de todos

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O que é uma literatura menor? Literatura menor não quer dizer que seja de uma língua menor, mas é “a que uma minoria faz em uma língua maior”. Uma das características da literatura menor é a desterritorialização da

nós. Deleuse & Guattari afirmam que “uma linguagem qualquer implica sempre uma desterritorialização da boca, da língua e dos dentes”. (ibid., p.30). Continuando, esses autores assinalam que:

a língua compensa sua desterritorialização no sentido. Deixando de ser órgão de sentido, torna-se instrumento do sentido. E é o sentido, como sentido próprio, que preside à atribuição de designação de sons (a coisa ou o estado de coisas que a palavra designa), e, como sentido figurado, à atribuição de imagens e de metáforas (as outras coisas a que a palavra se aplica sob certos aspectos ou certas condições) (1977, p. 31).

Vejamos a situação presente no imaginário do sujeito falante hispânico que para se fazer entendido por falantes de português basta articular um som desterritorializado da boca, da língua e dos dentes, ou seja, falar pelo nariz47, mas que reterritorializa no sentido, ou melhor, dá esse efeito. Dito de outra maneira, para ser compreendido, o sujeito hispânico imita a sonoridade utilizada pelos brasileiros, falar enrolado, falar devagar, falar baixo48. Mas, na realidade, esse som ou a palavra que atravessa nova desterritorialização (do espanhol para o português) não são linguagem com sentido, embora dêem um certo efeito disso. Como apontam Deleuse & Guattari, do sentido apenas retemos “um esqueleto ou uma silhueta de papel” (1977, p.32).

Isso também pode ocorrer devido ao efeito de ressonância discursiva. “Existe ressonância discursiva quando determinadas marcas lingüístico-discursivas se repetem, contribuindo a construir a representação de um sentido predominante” (SERRANI- INFANTE, 2001, p.7). Essas marcas podem ser a repetição de itens lexicais (ou de diferentes raízes léxicas) de uma língua em outra que se apresentam ao sujeito hispano-falante como semanticamente equivalentes ou construções que funcionam parafrásticamente (SERRANI- INFANTE, 2001). Esse fenômeno talvez explique enunciações como: português falado não é

uma língua muito diferenciado do espanhol e, conseqüentemente, Língua muito fácil de aprender e de comprender. O sujeito hispano-falante imerso num universo de palavras que

lhe soam semelhantes ou idênticas se sente no direito de reproduzir ou produzir outras a partir delas. Pode-se perceber esse efeito nas próprias seqüências enunciativas que estamos

língua, própria a estranhos usos menores. Parafraseando Deleuse & Guattari (1977), a palavra “menor” não qualifica as literaturas, mas as condições revolucionárias de toda literatura dentro daquela já estabelecida.

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O nariz também faz parte do aparelho fonador (SILVA, 2005).

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analisando como em: não é uma língua muito diferenciado do espanhol (grifo nosso). Um outro exemplo é de sujeitos hispânicos que, ao responderem sobre estratégias utilizadas para serem entendidos quando vieram para o Brasil49, indicaram: procurar palavras parecidas. Parece que o encontro com a língua portuguesa faz com que o sujeito hispânico abra uma “caixa de ressonâncias” 50 de sua língua materna.

Essas estratégias de comunicação dos sujeitos hispano-falantes - falar devagar,

falar devagarinho, falar enrolado, procurar palavras parecidas, utilizar mímica, gestos,

parecem estar no campo da teatralidade: os hispânicos falam assim e os brasileiros de outro modo51, ou seja, a língua de um é pura encenação da língua do outro. Considerando que essa forma de comunicação é, muitas vezes, consciente, podemos pensar que ela pode funcionar em um primeiro momento como uma imitação, ou uma identificação imaginária que pode parecer uma zombaria. O termo “zombaria” (MANNONI, 1987) está sendo colocado aqui como uma recusa, como um meio de resistência à identificação com o real da língua portuguesa.