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Como apresentado no primeiro capítulo, o avanço da urbanização no Brasil no século XX, que resultou na apropriação desordenada do território e a não observância da dinâmica territorial, contribuiu para que a segregação socioespacial se tornasse aparente, principalmente nos casos dos desastres e emergências. Embora o aumento das catástrofes tenha frequentemente sido relacionado aos eventos naturais, estes apenas são deflagradores das situações de crise emergentes, que acabam por expor aqueles que estão mais vulnerabilizados nas cidades. Nessa trama perversa, destacam-se a incapacidade dos municípios em lidar com as situações de risco e emergência, e a fragilidade das propostas que tentam organizar e sistematizar ações em torno de um sistema de medidas que visam à redução dos efeitos dos desastres.

Dessa forma, prevalece a lógica dos favores dos gabinetes políticos, sempre insuficientes para remediar a situação de milhares de famílias que vivem ameaçadas e que assumiram uma característica mimética em relação à ocorrência de desastres.

A promessa de prosperidade no Brasil em um discurso de desenvolvimento e que não se traduz numa total governabilidade e controle das crises geradas por ocasião dos desastres, as vítimas, muitas vezes, em silêncio, buscam recompor suas vidas, como se não houvesse uma dimensão política que deveria ser responsabilizada pelo histórico de perdas e danos.

Ao decidir o destino de grandes recursos para o encaminhamento de soluções na redução dos efeitos dos desastres e sem a presença dos grupos vulnerabilizados e afetados, o processo decisório, não somente ratifica a alienação dos grupos sociais, como aponta na direção da precariedade habitacional. Dessa forma, vê-se a administração pública, nos três níveis de governo, apoiada por uma rede sociotécnica ligada aos negócios privados, que utilizam o discurso das “áreas de risco” para endossar um processo que apenas leva à tentativa de erradicar os territórios marcados pela segregação.

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No caso de Capivari – SP, verifica-se nas falas dos moradores que SINDEC está completamente oculto. O Sistema não aparece nos diálogos entre pesquisador e moradores em momento algum. O que emerge com clareza nos entrevistados são os interesses e o desejo atávico pela habitação, seja por força da necessidade ou pela condição de se sentir mais cidadão ao obter a posse do imóvel. Nesse contexto, o trabalho da Secretaria Municipal de Habitação de Capivari, ainda que seja de forma integrado com outras ações, fica registrado pelos moradores dos bairros, mas não claramente no trabalho da defesa civil e de suas bases de funcionamento.

Assim, a essência da COMDEC exige um plano integrado de ações, o que acaba também por exigir uma nova forma de agir na administração pública. O que ocorre é que, com a fragmentação do conhecimento, com a criação das divisas políticas, a sobrecarga de trabalho sentida por vários órgãos e secretarias municipais, as barreiras para uma gestão integrada podem se tornar intransponíveis e políticas públicas que beneficiem a população não saiam do papel, configurando-se apenas utopias.

O SINDEC, já dito em vários momentos do estudo, caracteriza-se como uma proposta bastante generalizante, que, ao utilizar a mesma lógica constitucional de transferência de autonomia para os municípios, impõe dificuldades para a sua implantação. Um aspecto relevante nesse processo é que a adesão por parte do município àquilo que protagoniza o Sistema é voluntária, ou seja, os municípios não estão obrigados a implantar o SINDEC em seus territórios.

Mesmo considerando-se os aspectos democráticos que devem envolver as políticas públicas, não se trata apenas de uma decisão que deve ser tomada pelos gestores locais. Quando o município busca amparo no SINDEC e, portanto, no que ele proporciona, principalmente no que diz respeito aos recursos financeiros, a gestão dos desastres passa a ser compartilhada e integrada aos demais entes territoriais, aumentando, assim, as chances de garantir à sociedade possibilidades reais de se reduzir os impactos sociais causados pelas enchentes.

Os anúncios da destinação de grandes verbas para custear as soluções, ainda que algumas delas não exequíveis, sem considerar a precariedade habitacional e a real necessidade dos grupos vulnerabilizados no enfrentamento dos desastres, servirão

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apenas como medidas paliativas, mas que não cumprirão com seu objetivo central, que é o de mitigar os efeitos dos desastres para as populações. Exemplo disso, são os 18 bilhões de reais investidos até 2014 por meio do Plano Nacional de Gerenciamento de Riscos e Respostas a Desastres Naturais, lançado em agosto de 2012 e apresentado no capítulo 2.

O exercício da função pública e a administração do dinheiro público têm suscitado amplas discussões, diante dos conflitos entre as necessidades dos cidadãos e o conteúdo das decisões sobre o desenvolvimento social. Muitos são os investimentos em projetos que necessitam de grande dispêndio de dinheiro público, mas que não representam os interesses da sociedade. Muitas são as obras inacabadas ou superfaturadas, que prejudicam a sociedade como um todo, ao fazer o contribuinte arcar com as consequências da má gerência e aplicação dos recursos públicos.

Na complexidade e simultaneidade em que os desastres vêm ocorrendo e afetando com maior frequência as cidades brasileiras, o SINDEC, apesar de sua importância, deveria cumprir melhor seu papel na preparação da população para o enfrentamento das calamidades. Não se pode negar a existência de uma evolução, mas lidar com os desastres vai além da remoção da população das áreas de risco. É preciso investir em educação, instrumentalizar por meio de recursos técnicos, físicos e humanos a Defesa Civil na escala municipal.

Com relação à classificação dos desastres proposta na Política Nacional de Defesa Civil, nota-se uma fragmentação do conceito quanto à intensidade dos desastres e, assim, a falta do aprofundamento da dimensão humana na sua classificação por parte dos documentos oficiais que definem desastres na visão do SINDEC.

Não se trata apenas do desastre como uma crise pontual, mas tê-lo como o deflagrador da necessidade de se buscar um processo coletivo de planejamento. Isto não significa apenas tê-lo burocraticamente formalizado, mas fazer com que as intenções públicas sejam transportadas para o plano da dimensão humana e que promovam efetivamente a mudança no quadro dos desastres e na vida dos acometidos, que tão dramaticamente se tornam personagens comuns nos períodos de chuvas.

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