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as luzes apagaram-se o material foi guardado o lugar adormece por baixo do bolor imutável e no esquecimento

os actores caminham para o fim do filme

um gravador esquecido

regista os passos que se afastam devagar não sabemos ao certo para onde

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Outros grãos desprendem-se da mesa, param a distâncias rigorosas, organizam em volta da esfera inicial (o sol, com a sua coroa ou cercadura de triângulos) um sistema planetário sem movimento.

(Carlos de Oliveira, em Finisterra: paisagem e povoamento)

Para a escrita das considerações finais desta tese, recorre-se aos dizeres do adulto no capítulo XXIV, de Finisterra: paisagem e povoamento. No fragmento em questão, o homem, ao lado da criança, acompanha o surgimento da floresta na maquete: ―assisto (assistimos os dois) em silêncio à ressurreição das florestas, também silenciosa‖ (OLIVEIRA, 2003b, p. 99). Posteriormente, a ideia do aparecimento das árvores – bem como da transformação dos grãos de areia em planetas – termina por assustar a voz narrativa, pois a proposta em si é ―imposta de fora: não fui eu a elaborá-la‖ (OLIVEIRA, 2003b, p. 99). No entanto, percebe, ainda ao refletir acerca do procedimento testemunhado por ele e a criança: ―Exacerbando sentimentos comuns (espanto, medo), mas inserindo-se numa experiência nova (signos doutra lógica e doutra realidade), a ideia insinua que estou a viver por conta própria e a sonhar por conta de alguém‖ (OLIVEIRA, 2003b, p. 99).

Quando se pensa na possibilidade aventada pelo adulto, enquanto testemunha a transformação da matéria proporcionada pelo surgimento das florestas na maquete, pode-se perceber que também o espectador se encontra em semelhante situação ao assistir às cenas do média-metragem Carlos de Oliveira – Sobre o lado esquerdo. Nesse caso, no lugar das ―árvores [que] emergem lentamente da maquete‖ (OLIVEIRA, 2003b, p. 99), está-se diante de outro tipo de transformação, que se faz notar especialmente pela leitura proposta por Manuel Gusmão da obra poética de Carlos de Oliveira, possibilitada pelo trabalho de direção engenhosa empregado por Margarida Gil. Assim sendo, pode-se inferir que, quando associada ao contexto da produção cinematográfica, o ―sonhar por conta de alguém‖ torna-se uma tarefa a ser executada por Margarida Gil e Manuel Gusmão, os responsáveis pela empreitada de tornar possível a transformação da obra do poeta da Gândara em cinema.

Para o propósito do estudo, é válido realçar a importância de Finisterra: paisagem e povoamento nesse processo. Sabe-se que é este o livro incumbido de fornecer o cerne da narrativa. Mas não só. Ao longo deste estudo, também foi o último romance publicado pelo autor de Sobre o lado esquerdo aquele que, assim como o fio do novelo de Ariadne orientou

Teseu no labirinto, também contribuiu para a construção de um caminho para se pensar o filme, por si só um corredor com portas que se abrem para uma série de outras possibilidades para discutir a poética de Carlos de Oliveira. No entanto, seria uma afirmativa reducionista pensar que a última narrativa publicada pelo poeta da Gândara possibilitou apenas a discussão acerca do trabalho do próprio autor. Como foi possível notar ao longo do desenvolvimento desta pesquisa, ao evocar o trabalho do poeta que por tantos anos estudou em sua pesquisa como acadêmico, também a criação de Manuel Gusmão é convocada para pensar o média- metragem. Esse princípio torna-se claro não apenas quando se pensa em A terceira mão, publicado um ano depois da conclusão das filmagens de Carlos de Oliveira – Sobre o lado esquerdo, mas também em outros poemas de autoria do ensaísta, especialmente aqueles que dizem respeito ao papel do leitor.

Se para Carlos de Oliveira, como foi constatado no primeiro capítulo desta tese, a escrita coincide com a leitura – um autor pode receber a ajuda de um futuro desconhecido, nunca é demais lembrar os dizeres de Hemingway registrados em seu caderno pessoal –, o mesmo pode ser afirmado com relação à poética de Manuel Gusmão. É como leitor, antes de tudo, que o acadêmico é capaz de propor novas reflexões acerca da obra do poeta da Gândara. Ao mesmo tempo, também é a poesia de Carlos de Oliveira capaz de fornecer uma nova leitura do trabalho do autor de Teatros do tempo. Isso porque, como se fez notar ao longo deste estudo, a poética de ambos encontra como ponto de contato o próprio tempo, pois remete a uma origem perpétua, envolta em um constante recomeço: ―tudo parece ter outra vez começado‖, como já avisa o tìtulo do poema de Manuel Gusmão que serve de epìgrafe para esta pesquisa.

Este início, tantas vezes recomeçado, é evidenciado pelo processo de metamorfose percebido na maquete, objeto que representa um componente central para a estrutura proposta para o filme, uma vez que é sempre em torno dele onde se desenrola uma série de reflexões acerca da escrita poética de Carlos de Oliveira e o seu processo de criação, como ficou evidenciado no segundo capítulo desta tese. Com efeito, a ideia de uma origem sempre recomeçada se faz presente ao longo de toda a tese, seja por meio da tradição, quando, no primeiro capítulo, investigou-se o dialogismo em Carlos de Oliveira, ou a partir da leitura proposta por Manuel Gusmão da obra poética do escritor português. Sobre esse aspecto, deve- se realçar que o entendimento do poeta-crítico acerca da literatura produzida pelo poeta da Gândara não se restringe ao universo cinematográfico, tendo em vista que o diálogo com Carlos de Oliveira é verificado também em seus livros de poema, o que contribuiu para a investigação do média-metragem.