Da apresentação e da análise teóricas às quais se procedeu neste capítulo, ficou claro
que GNs e GDs apresentam entendimentos diferentes sobre os termos que complementam os
sentidos dos substantivos por meio de um sintagma preposicionado, já que aquelas separaram
tais termos em CN a AA e estas os consideram ambos como pós-modificadores de
substantivos.
O que parece ser, em certa medida, unânime entre as GNs aqui analisadas é que,
quando o substantivo ao qual se ligam o CN e o AA indicar ação ou qualidade, o modificador
será AA se for agente e será CN se for paciente da ação expressa pelo substantivo que
modificam.
Outra questão que pode ser considerada pacífica entre a maior parte dos normativistas
citados neste trabalho é que um CN não se liga a substantivo concreto.
Por fim, as GDs mencionadas neste capítulo são unânimes em considerar todo
sintagma formado por “preposição + um termo qualquer” que esteja ligado a um substantivo
como um pós-modificador desse substantivo.
Tem-se, pois, as três generalizações objeto deste trabalho: a) tanto o CN quanto o AA
podem se ligar a substantivos que indicam ação ou qualidade e, quando isso ocorre, o termo
em questão será CN quando for paciente da ação expressa pelo substantivo (transformado
mentalmente em verbo para tal checagem) e será AA quando for agente dessa mesma ação; b)
CNs não se ligam a substantivos concretos; c) todos os sintagmas com a forma de + X (em
que X pode ser um termo qualquer, incluindo uma oração) ligados a um substantivo serão
pós-modificadores desse substantivo.
E, devido ao seu caráter universalizante, estes serão os parâmetros considerados para a
análise feita no capítulo 5 desta pesquisa: substantivos que indicam ação ou qualidade,
substantivos prototipicamente concretos e seus pós-modificadores encontrados na língua em
uso.
3 A SEMÂNTICA DE FRAMES, A TEORIA DA MESCLAGEM E OS CONCEITOS
DE TRAJECTOR E MARCO
A partir das três generalizações a que se chegou ao final do capítulo anterior, foram
escolhidos cinco substantivos que indicam ação ou qualidade e cinco substantivos
prototipicamente concretos
15a fim de se verificar o tipo de relação que esses substantivos
mantêm com X em ocorrências do tipo “substantivo + de + X”, em que “X” é qualquer
elemento de valor substantivo ou adjetivo, incluindo orações.
Os cinco substantivos que indicam ação ou qualidade são “desenvolvimento”,
“necessidade”, “possibilidade”, “prisão” e “construção” e os cinco substantivos
prototipicamente concretos são “casa”, “cabeça” (parte do corpo), “porta”, “livro” e “carro”.
A relação que esses substantivos mantém com X em ocorrências do tipo “substantivo
+ de + X” será avaliada a partir da Semântica de Frames de Fillmore (1975), da Teoria da
Mesclagem, de Fauconnier e Turner (1995, 1998) e dos conceitos de trajector e marco, de
Langacker (1987, 2008).
A Semântica de Frames, a Teoria da Mesclagem e os conceitos de trajector e marco
foram escolhidos por estarem diretamente relacionados entre si e por seu viés cognitivo. Isso
porque, como se viu, existe um forte indício de que, sintaticamente,
16não há como se
estabelecerem distinções entre os sintagmas de forma “substantivo + de + X”, em que X pode
ser qualquer termo de valor substantivo ou adjetivo, incluindo as orações, restando, assim, a
possibilidade de que os dois termos se distingam por uma razão cognitiva.
17Propõe-se, então, fazer a verificação semântica e cognitiva, o que é possibilitado pelo
uso da Semântica de Frames e da Teoria da Mesclagem, já que são frutos de pesquisas
precursoras da Linguística Cognitiva (LC), corrente da pesquisa em linguística que trata dos
processos de conceptualização e de categorização
18relacionando-os com determinantes
15 Os critérios de escolha estão especificados no próximo capítulo.
16 Considera-se a sintaxe, aqui, apenas em suas faces formais. Assim se, em razão da preposição “de”
obrigatória, os termos analisados, além de possuírem forma bastante parecida (substantivo + de + X) podem ocupar apenas a parte direita do substantivo ao qual se ligam, não há distinção sintática entre eles. Quanto ao aspecto funcional da sintaxe, considera-se, como dito na introdução deste trabalho, discutível a diferença entre “integrar” e “limitar” significados. Acrescente-se a afirmação de Neves (2000) de que alguns substantivos concretos são transitivos, atuando dentro do sistema valencial como aqueles que, conforme os normativistas, exigem complemento e não adjunto.
17 Pode haver outras razões distintivas, mas este trabalho pretende investigar apenas as motivações cognitivas
relacionadas à formação de mesclas em termos complexos.
18 “Não se deve associar, entretanto, o estabelecimento de uma designação reconhecida internacionalmente à
ideia de que a LC constitui uma abordagem teórica homogênea. Ao contrário, a área reúne um conjunto de abordagens que compartilham hipóteses centrais a respeito da linguagem humana e, ao mesmo tempo, detalham aspectos particulares relacionados aos desdobramentos dessas hipóteses” (FERRARI, 2014, p. 14)
culturais e com a interação corpórea e extracorpórea dos usuários da língua com o mundo
circundante (SILVA, 2004).
A LC tem seu esteio, entre outros ramos, na psicologia, na antropologia e na
neurociência, criando o paradigma conforme o qual as estruturas informativas da mente, como
a linguagem, medeiam a interação do ser humano com o mundo. A partir desse paradigma,
assume-se “que fatores situacionais, biológicos, psicológicos, históricos e socioculturais são
necessários e fundamentais na caracterização da estrutura linguística” (SILVA, 2004, p. 3).
Nesse contexto, conforme explica Silva (2004), a LC pode ser caracterizada entre
outros princípios, pela primazia da semântica na análise linguística
. Ainda conforme a autora,
em vez de espelhar o mundo, “a linguagem é um meio de interpretar e construir, de organizar
conhecimentos que refletem as necessidades, os interesses e as experiências dos indivíduos e
das culturas” (SILVA, 2004, p. 3).
Assim, é importante ressaltar que o paradigma da LC evidencia a clara relação
existente entre linguagem e cultura.
19É o que se compreende da leitura de Silva (2004, p.
04), para quem “as mentes individuais não são entidades autônomas, mas corporizadas-
encarnadas e altamente interativas com o seu meio; e é por meio dessa interação e
acomodação mútua que a cognição e a linguagem surgem, se desenvolvem e se estruturam. ”
Ainda segundo a autora, “não existe, pois, propriamente linguagem humana
independentemente do contexto sociocultural” (SILVA, 2004, p. 04).
De acordo com Croft e Cruse (2004, p. 17), as principais hipóteses que conduzem as
análises linguísticas feitas com o suporte da LC são: “a linguagem não constitui uma
faculdade cognitiva autônoma, a gramática implica sempre uma conceptualização e o
conhecimento acerca da linguagem surge do seu próprio uso”.
Sobre a segunda hipótese, Abreu afirma que “a gramática de uma língua é resultado de
conceptualizações, ou seja, envolve a maneira como vemos e recortamos o mundo” (ABREU,
2010, p. 17), envolvendo ainda os processos de categorização e do estabelecimento de
semelhanças e analogias.
19 Sobre a ligação entre categorização e cultura, encontra-se em Abreu (2010, p. 27): “o problema da influência
da cultura sobre a categorização foi levantado de maneira notável por Lakoff, em 1987, em uma obra intitulada Women, Fire and Dangerous Things. Já em seu título, o livro reflete um tipo de categoria criado numa língua aborígene australiana chamada Dyrbal, que coloca numa mesma “caixa abstrata” mulheres, fogo e coisas perigosas, incluindo também pássaros não perigosos. Em Suyá, uma língua indígena brasileira do grupo Macro-Gê, Parque do Xingu, os substantivos possuem um sufixo que indicam que o ser nomeado é humano. Ora, nessa língua, a palavra que nomeia a galinha também possui esse mesmo sufixo. E daí? Bem, os Suyá acreditam que as galinhas são membros da sua família. Elas vivem dentro de suas ocas, como se fossem parentes. Matar uma arara para alimentar-se, por exemplo, é comum entre os Suyá, que atiram flechas para o alto, sempre que um bando dessas aves voa sobre suas cabeças, mas jamais fariam o menor mal a uma galinha. Seria uma espécie de fratricídio”.