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CIVIL PROFISSÃO TEMPO DE SERVIÇO

7 CONSIDERAÇÕES FINAIS: A CONSTRUÇÃO DOS DISCURSOS DA EQUIPE DIRIGENTE

A construção dos discursos, como foi explanado na introdução deste trabalho, envolve questões referentes à memória, à história e à ideologia do sujeito, relacionadas com o meio em que este está inserido, tendo como consequência a produção de sentidos. Com essa pesquisa, e a partir dos relatos apresentados nas demais subseções desse capítulo, busquei compreender como o discurso dos entrevistados, ao relacionar-se com seu campo de trabalho, cria sentidos que são atribuídos a sua prática e identidade profissional.

Percebi que o trabalho na UPCT/RN é percebido de diferentes (e também iguais) formas por cada profissional entrevistado. Considerando a discussão de Dejours sobre trabalho e tendo ciência de que a construção da prática profissional vai além de determinações históricas e sociais, os discursos e as práticas dessa equipe dirigente estão vinculados, também, a condições subjetivas e psíquicas inerente a cada sujeito.

Pensando a partir de cada grupo de profissionais que compõe o corpo técnico do Custódia, ou seja, a equipe de saúde e a de Segurança Pública, vi que a maneira como cada política pública surgiu e transformou-se influencia, em maior ou menor grau, na percepção dos trabalhadores sobre sua prática profissional. A equipe de saúde, por exemplo, demonstrou uma dificuldade menor em conseguir lidar com as contradições entre as duas políticas que subsidiam a organização. Já os agentes penitenciários citaram diversas vezes a necessidade de um curso de

capacitação específico que possa formá-los para lidar com a “demanda” do Hospital

de Custódia.

Semelhante a isso, percebi nos discursos da equipe de saúde uma preocupação maior com o tratamento disponibilizado aos internos, bem como constantes menções à necessidade de se mudar a visão dos agentes penitenciários. A equipe de Segurança não deixou de mencionar o descaso com um tratamento de qualidade e citou diversas vezes a falta de estrutura da instituição, porém apresentou como maiores dificuldades a realização da sua prática profissional em uma organização que não é totalmente hospital, tampouco presídio.

Refletindo essas constatações a partir da evolução das duas políticas em questão é provável que se conclua que os discursos de cada equipe internalizam

essa conjuntura política, histórica e social. Apesar disso, individualmente, cada profissional filtra essas influências, que são repassadas principalmente durante a sua formação acadêmica e/ou profissional, e as exteriorizam de uma maneira própria e individual.

Além disso, muitos aspectos referentes à realidade da instituição e da própria prática profissional dessa equipe foram silenciados ou exteriorizados a partir da posição e do cargo que o sujeito ocupa na UPCT/RN. Observei que o membro da direção entrevistado falou com mais segurança e de forma mais ampla do que os demais profissionais, assim como o profissional mais antigo da instituição demonstrou uma maior facilidade em tratar determinado assunto. Sentir-se seguro mostrou-se ser um pré-requisito de suma importância no momento de os profissionais proferirem seus discursos.

No tocante à familiarização que os trabalhadores tendem a internalizar através da “demanda” do seu serviço, em algumas falas isso foi claramente perceptível, como no caso de Cláudio, que citou o estigma de se trabalhar em uma instituição para “loucos-infratores” como mais um fator que causa sofrimento e torna árdua a sua rotina na UPCT/RN. Cada sujeito constrói sua identidade profissional, no entanto, não significa que tal identidade restringe-se ao local de trabalho.

No caso dos agentes penitenciários, há, ainda, uma particularidade que torna esse processo de familiarização mais tortuoso: partindo do princípio de que instituições como os hospitais psiquiátricos e prisões possuem normas, rotinas e linguagem próprias, os referidos profissionais necessitam compreender e até se utilizarem dessas singularidades para facilitar o prosseguimento do seu serviço. A partir disso, um agente penitenciário pode, por exemplo, usar jargões e termos comuns no Hospital de Custódia em sua casa ao dialogar com sua família, o que, para ele, é uma circunstância negativa, já que está levando, para além do seu trabalho, um pouco (ou um muito) de uma instituição tão “detestável”.

Assim, compreender os discursos desses profissionais é atentar-se para o processo de familiarização que desenvolvem a partir do seu trabalho. Um discurso, ao se relacionar com uma determinada realidade (a da UPCT/RN), altera-se e estende-se a outro meio (a família, por exemplo), produzindo novos sentidos. E essas novas relações e sentidos diferentes que surgem podem gerar sofrimento para quem os profere.

Apesar de os discursos estarem sujeitos a uma repetição de normas, implícitas ou explícitas, memórias e contexto histórico que subsidiaram a construção de uma determinada profissão, o sujeito pode romper com essas prerrogativas e, ao proferir seus discursos, demonstrar uma nova percepção da realidade da qual faz parte.

Esse é o caso de agentes penitenciários que desenvolvem uma visão mais humanizada em relação ao interno da UPCT/RN, passando a enxergá-lo mais como paciente do que como preso, reconhecendo, inclusive, a existência de uma doença mental que o acometeu. Contudo, apesar da subversão ser positiva e proporcionar mudanças significativas na dinâmica profissional de uma instituição, a possibilidade de ser gerado algum tipo de sofrimento também é possível. Esse mesmo agente penitenciário, que se vincula à ideia de que a terapêutica oferecida ao interno precisa melhorar, bem como o percebe exclusivamente como paciente, pode ser excluído do grupo formado pelos demais colegas de profissão e sofrer represálias. Dividido entre melhorar sua prática profissional, tendo como consequência o alcance do reconhecimento por parte da direção, e manter um bom relacionamento com os demais trabalhadores da sua área, o sujeito subverte, mas também sofre, ou reproduz e sofre de igual forma.

Nos discursos da equipe dirigente da UPCT/RN pude observar esses processos parafrásticos e polissêmicos, porém não identifiquei um profissional que apresentasse completamente um ou outro. Identifiquei falas que subvertem, mas, ao fazer outra indagação, expressões corriqueiras e até conservadoras eram pronunciadas. Isso demonstra a relatividade inerente ao processo de construção dos discursos (e das práticas) desses profissionais e, por isso, venho afirmando durante

todo esse estudo que estabelecer uma “verdade” absoluta sobre como o profissional

atua, enxerga e dirige-se ao interno é um risco (para não dizer um erro).

Além do dito, o que é silenciado também pode significar: ruptura, reprodução, censura. Um silêncio prolongado antes de responder alguma questão, manter-se quieto e não opinar possui e produz sentido; assim como a forma que o outro inicia um diálogo e as características do local em que um questionamento foi feito influenciam na enunciação discursiva, essas mesmas características determinam, ou não, o silenciamento.

Em instituições como a UPCT/RN os jogos de poder também estão vinculados à produção dos discursos e do silêncio (que não deixa de ser discurso).

Por vezes, esse mesmo poder apresenta-se de forma silenciosa, quase invisível, e determina práticas profissionais em uma instituição. O silêncio pode significar dor, sofrimento, medo e até subversão; mais uma vez dependerá das questões ideológicas, históricas e subjetivas pertencentes a cada sujeito.

Portanto, a partir da observação contínua que realizei durante o trabalho de campo na UPCT/RN, das falas colhidas nas entrevistas e do referencial teórico acumulado até aqui, que me proporcionou a elaboração de um dispositivo de análise, percebi que a construção dos discursos (e consequentemente da prática profissional) da equipe dirigente da UPCT/RN está vinculada a questões sociais, históricas, políticas, subjetivas e até psíquicas. Por mais incoerente que aparente ser, essa produção dos discursos vincula-se diretamente à constituição da prática e da identidade dos profissionais que, acopladas às demais condições estruturais inerentes a UPCT/RN, conecta-se ao sofrimento no trabalho.

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