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5 A RELAÇÃO INDIVÍDUO-ORGANIZAÇÃO E O SOFRIMENTO NO TRABALHO: APONTAMENTOS TEÓRICOS

5.2 ESGOTAMENTO PROFISSIONAL E AS INSTITUIÇÕES TOTAIS

Somam-se à discussão em torno do sofrimento no trabalho, apresentada na subseção acima, alguns pontos característicos das instituições totais que

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A sublimação “associa sofrimento e prazer numa trajetória comum através do desvendamento de um laço tão estreito – a erotização do sofrimento – que os faz cobrir um ao outro”. (DEJOURS, 2013, p. 160).

possibilitam uma melhor compreensão desse sofrimento a partir da realidade específica do presídio, do hospital psiquiátrico etc. Para tanto, parte-se do princípio de que “(...) trabalho é mais que trabalho porque produz e confere identidade, não só relativa ao universo do trabalho, como também em relação ao mundo social em que os indivíduos habitam.”. (MORAES, 2005, p. 215).

Essa identidade conferida a partir do trabalho pode ser vista como positiva ou negativa, dependerá da profissão que o indivíduo escolheu, o porquê de ter decidido seguir determinada carreira, dentre outros fatores. No caso de profissionais vinculados aos Hospitais de Custódia, a construção dessa identidade

torna-se um tanto conflitante se apreendida a partir da “demanda” com a qual eles

trabalham. Uma vez que o “louco”, o “preso” e o “louco-criminoso” são considerados, por uma maioria, a parcela “anormal” da sociedade, esse estigma pode prolongar-se para a figura da própria equipe que com eles convivem.

A prisão, por exemplo, ao ser entendida como: “(...) uma “microcidade fechada” (...) continua produzindo uma separação significativa do mundo livre, a começar pela produção de regras próprias, as quais seus habitantes devem, em

diferentes níveis, internalizar.”51. Essas regras próprias, apesar de não se

dissociarem das normas do mundo externo, produzem uma rotina e uma linguagem diferentes que facilitam a dinâmica do preso. Nesse caso, a equipe dirigente necessita conhecer essa nova forma de sociabilidade como estratégia de melhorar sua prática profissional e rotina de trabalho. A exemplo disso, Oliveira (2014, p.) explana sobre a linguagem no cotidiano prisional como:

[...] elemento de singularidade configurando como um dos fios condutores das relações de sociabilidade, revelando, neste horizonte prisional suas formas de resistências, regras, condutas e a produção de repertórios linguísticos, de acordo com suas necessidades. Isso significa que a linguagem é criada e tecida conforme o mundo sociocultural em que o indivíduo esteja inserido; ela é elemento inerente à ação humana em virtude de suas necessidades de comunicação, de interesses comuns.

Ainda sobre essa “microcidade fechada”, Moraes (2005) aponta que esta é “(...) um forte indutor de construção de identidade que partiria da mortificação da identidade produzida no mundo livre, que tem, como já dissemos, no trabalho, no

emprego e na profissão, um forte referencial”52. O preso, o “louco”, é apresentado como o oposto dos profissionais que com eles lidam. Além disso, essa “mortificação do eu” na qual o interno é induzido incita, ainda, uma urgência em se aprender as novas regras desse “novo mundo” e apesar de os profissionais serem a “antítese” dos internos, essas regras também se impõem a eles. No entanto, “(...) esse aprendizado não se faz sem um enorme custo psíquico e identitário, uma vez que significa (...) mimetizar-se naquilo que ele percebe (o profissional) como a sua antítese.”. (MORAES, 2005, p. 221).

Tal necessidade de saber essa nova linguagem e formas de sociabilidade do interno gera sofrimento à equipe dirigente porque, muitas vezes, eles internalizam gírias e comportamentos que, ao serem utilizados fora dos muros das instituições totais, não causam um impacto positivo sobre sua família e grupo de amigos. O profissional, ao internalizar algumas posturas do interno, pode passar a ser visto como semelhante, não mais como antítese e, uma vez que o interno é o oposto do que a sociedade preza por “bom exemplo”, o trabalhador pode chegar a perder sua identidade profissional e passar a desgostar de sua profissão.

[...] a trama complexa dessa interface, numa visão preliminar, deixa entrever uma via de mão dupla: de um lado, há o fluxo em que a subjetividade desloca experiências familiares para o mundo do trabalho; de outro, a corrente que transporta para a vida familiar determinações emanadas do trabalho. Mas os dois fluxos se entrecruzam muitas vezes, ao mesmo tempo em que dão lugar a dinâmicas pelas quais se realimentam reciprocamente. (SELIGMANN-SILVA, 1994, p. 197 apud MORAES, 2005, p. 232).

No caso dos agentes penitenciários da UPCT/RN, essa apropriação de uma nova linguagem e sociabilidade também é percebida. Enquanto observava a rotina da instituição e os diálogos que esses profissionais desenvolviam entre si percebi a similaridade com expressões comuns aos internos, como a utilização da

expressão “ele caiu” ao referir-se a alguém que foi preso, a prática de apelidar o

interno a partir do artigo do CPB que este infringiu, dentre outras.

Destarte, os profissionais, ao perceberem que aspectos do trabalho estão influenciando diretamente em sua rotina e equilíbrio familiar, tendem a culpabilizar a sua dinâmica de trabalho. Em meio a isso, a equipe dirigente se vê numa complexa

“encruzilhada”: não pode abrir mão de conhecer e conviver com esses códigos linguísticos e sociais típicos das instituições totais, já que sua rotina de trabalho exige essa apreensão das novas regras, bem como se preocupa com os impactos que essa familiarização de novos códigos causa sobre sua família. Toda essa carga psíquica afeta, também, a saúde física e mental da equipe dirigente, como é o caso dos agentes penitenciários brasileiros:

[...] Segundo pesquisas realizadas em São Paulo pela Academia Penitenciária, “cerca de 30% dos agentes de segurança dos presídios apresentam sinais de alcoolismo. Um em cada dez sofre de distúrbios psicológicos”. Tais condições fizeram com que em uma pesquisa sobre profissões mais estressantes realizada em 1997 pelo Instituto of Science and Technology da University of Manchester colocasse, entre 104 profissões pesquisadas, os agentes penitenciários em primeiro lugar. (MORAES, 2005, p. 226).

Cabe ressaltar, ainda, que esse papel da equipe dirigente das instituições totais de antítese em relação aos internos não é sempre apreendido pela sociedade. Alguns movimentos sociais, por exemplo, veem os profissionais vinculados a Segurança Pública como “vilões” e/ou agressores. Os papeis terminam se invertendo, não deixando também de causar sofrimento a esses profissionais.

Diante disso, além de todas as questões gerais vinculadas ao sofrimento no trabalho apresentadas na subseção anterior, a equipe dirigente das instituições totais ainda lida com esses aspectos específicos intensificando o aumento da carga psíquica e de crises de identidade profissional. A prisão, o hospital psiquiátrico, o hospital de custódia, por possuírem características únicas e apresentarem-se, de antemão, como um lugar “hostil”, exigem dos seus profissionais práticas e conhecimentos particulares que, ao serem internalizados, moldam a identidade profissional do sujeito e se estende para a sua própria identidade quanto pessoa, como discute Moraes (2005).

Ademais, essa discussão de sofrimento no trabalho contribui para situar questões relacionadas à prática profissional, como a construção da identidade da equipe dirigente, para além da dimensão sócio-histórica. Não afirmo, com isso, que se deve distanciar a discussão do trabalho dessa dimensão (isso seria, no mínimo,

um grande erro), mas apresento a necessidade de estender essa percepção para o campo da subjetividade e da psicanálise.

A partir disso, intenciono incitar, durante a leitura do capítulo seguinte, que apresentará os discursos da equipe dirigente e a análise a eles atribuída, uma reflexão para além da discussão convencional do trabalho e, mais especificadamente, da prática profissional das equipes vinculadas à saúde mental e à Segurança Pública. Acredito que conhecer o caminho que se percorre para a construção desses discursos e dessas práticas, sendo sensível a todos os anseios, sofrimento, perspectivas e vontades da equipe dirigente (sem excluir a carga histórica e social por trás da construção dessas profissões) é mais vantajoso do que analisar a prática em si, “nua e crua”.

6 O “ALGOZ” E SUAS DORES: UMA ANÁLISE DOS DISCURSOS DA EQUIPE