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“Hoje temos a impressão de que tudo começou ontem. Não somos os mesmos, mas somos mais juntos. Sabemos mais um do outro. E é por esse motivo que dizer adeus se torna tão complicado. Digamos, então, que nada se perderá. Pelo menos, dentro da gente.” João Guimarães Rosa

Essa dissertação se desenvolveu por meio da análise do processo de construção da profissionalidade de onze rapazes que relataram por vezes acordar ainda no escuro, noites sem dormir permeados por dúvidas a respeito de suas escolhas, calculando sucesso profissional ao mesmo tempo em que teciam desejos a respeito de ideais e barreiras que teriam que ser ultrapassadas ou superadas. Em meio a tantos pensamentos tecem, embora não sem todas as influências externas, um futuro. Linhas claras, de cores nem sempre vistas com bons olhos, consideradas por vezes muito femininas. Delicados, cuidadosos, espirituosos vislumbram um horizonte.

Diferentes instâncias da vida social vão se constituindo e tecendo seus destinos, entre os amigos ao preferirem o giz e o quadro branco em meio a brincadeiras, ao invés das bolas de futebol. No contexto da família ao trocar as expectativas de negócios de grande retorno financeiro, o status de um paletó, por canetas, lápis de cor e cadernos. E o tecer de um longo tapete de sonhos, resistências, contradições e realizações apenas começava. Talvez não de realização financeira, mas em uma perspectiva mesmo que inconsciente de formação humana, no e pelo trabalho.

Primeiro contato, ainda estudantes para a troca de posição como professores, continuaram a tecer, mesmo que ainda sob tantas influências e se constituindo por meio da relação com colegas de curso, professoras e professores. Em meio à atividade de tear, refletiam se realmente estavam no lugar certo, mas continuavam a construir, a se constituir, a acreditar que poderiam desempenhar tantas funções, contra todo um sistema que insistia em dizer que não poderiam exercer determinadas ações, que precisariam ser viris, fortes, sem qualquer demonstração excessiva de cuidado e afeto. Mas resistindo conseguiram, não sem estranhamento, vencer a primeira etapa: já eram professores, especificamente pedagogos.

Coragem, atributo humano em contato com a realidade injusta, desigual e economicamente insustentável, começaram a vivenciar o trabalho idealizado que seria substituído pelo trabalho assalariado, embora esteja contraditoriamente presente o

prazer por desempenhar um serviço visando a humanização da humanidade pela educação, o trabalho educativo, mas seria necessário a venda de sua força de trabalho, a exploração de uma pessoa por outra, a descaracterização de um princípio de sobrevivência ontológico, comunal e de manutenção da existência, categoria fundante do ser social: o trabalho.

Mesmo assim continuam resistindo, e tecendo quase que por teimosia um caminho oposto ao socialmente determinado, sem desanimar com os olhares de julgamentos, com ofensas ou até mesmo dúvidas em relação à sexualidade. Continuando a tecer o curso de sua própria história, em condições favoráveis e desfavoráveis de constituição da especificidade da ação docente, que por estar situada em um contexto de profunda competição e desumanização, vem sendo atingida de todas as formas, submetida a condições de trabalho precarizado e uma intensificação escancarada. Entretanto e em contradição, por serem constituídos enquanto seres sociais capazes de mudar sua própria história acabam assumindo o papel contra hegemônico de unir, de humanizar, e de produção de novas formas de se pensar e agir na sociedade.

Inseridos em um contexto, até então desconhecido, em conflito com a teoria vivenciada e aprendida durante sua formação, são confrontados com a realidade prática e institucionalizada, por vezes solitários, sem apoio, sem rumo e crises de autoridade. Assumindo o agravante de estarem em um ambiente por vezes negados a eles mesmo que de forma simbólica, não seria essa uma atividade honrosa a ser exercida por homens?

Confrontando os papéis determinados a serem exercidos por homens e mulheres e contribuindo para a ressignificação de um espaço, com o apoio de suas colegas que escolhem acreditar no potencial enquanto professores começando a refletir sobre as amarras atribuídas a eles e elas que esvaziam a condição enquanto grupo profissional capaz de ensinar algo a alguém, contra o reducionismo de encará-las e encará-los como meras e meros cuidadoras e cuidadores, consequência da reprodução na escola do que é desempenhado em casa e designado exclusivamente a mulheres, mas que constitui-se como prática fundamental para o desenvolvimento humano a ser exercido independente do gênero: a educação e o cuidado.

Continuam a tecer, a promover mesmo que de forma micro o movimento da ressignificação, reflexão e problematização das amarras constituídas socialmente, alicerçadas sob um modo de produção que acirra a luta de classes, que se constitui como um campo de disputa ao colocar a escola na posição de importante aparelho ideológico,

de manutenção da ordem vigente e dos privilégios da classe dominante, detentora dos meios de produção, que tenta de todas as formas preservar sua posição privilegiada em meio à luta de classes. Mas também compreendendo a escola enquanto espaço de resistência capaz de formar para a luta pela emancipação da classe trabalhadora.

Neste contexto, mesmo que de forma nem sempre consciente, são agentes da luta de classes e por meio da clareza de sua função marcham determinados contra os papeis impostos pelo gênero, se reconhecendo no próprio trabalho que desenvolvem, mesmo que por vezes negando que o trabalho desenvolvido não constitui aquilo que são, e ao mesmo tempo constituem. Reconhecem-se enquanto professores, professoras, trabalhadoras e trabalhadores da educação e vão se construindo enquanto docentes capazes de contribuir para o movimento de mudança, se reconhecendo enquanto seres importantes para o desenvolvimento social, em seu contato com alunos, aprendendo e ensinando, resgatando o sentido do trabalho, mesmo que imerso (a)s a um intenso e cruel processo de alienação.

Em suas relações com pares, alunos e alunas, família e modos de produção da vida material, constituem sua profissionalidade, marcada pelas múltiplas determinações do capital no trabalho, atribuindo sentido aos conhecimentos teórico-práticos apreendidos ao longo da vida pessoal e acadêmica, em um contexto profissional marcado por construções de gênero, a funções atribuídas apenas a mulheres, que as desvalorizam enquanto profissionais, e as reduzem a atividades da vida privada: a educação infantil e a alfabetização na atividade docente com crianças pequenas. Não deixando de ressaltar um importante aspecto, o tempo a ser considerado pela condição como professores iniciantes, resistir ou desistir? O processo de inserção constitui-se como importante fator nessa decisão. Tão importante saber por que desistem também essencial conhecer o porquê resistem, porque enfrentam e quais estratégias utilizam para permanecer, mesmo que tenham se afirmado por via do pensamento historicamente construído em torno dos papéis sociais, sendo o homem o detentor da razão e a mulher da emoção.

A presente dissertação foi estruturada nessa perspectiva, de compreensão, problematização e ressignificação da docência em uma dimensão além do gênero, mas destacando professores e professoras enquanto seres sociais, parte da classe trabalhadora, indivisível ao gênero, sendo todas e todos: trabalhadores e trabalhadoras da educação. E parafraseando Marina Colasanti em seu conto ―A moça tecelã‖ como se ouvisse a chegada do sol, os rapazes em parceria com pares escolheram linhas claras,

mas também de luta, ressignificando todo o arco íris, sem amarras, exercendo a atividade a qual escolheram: a docência. Se constituindo no e pelo trabalho. E foram passando-a por meio de diferentes experiências, devagar entre os fios, delicados traços de luz, que a manhã repetia na linha do horizonte.

As imposições feitas aos pedagogos do gênero masculino os fazem questionar sua capacidade de realizar e desenvolver o trabalho ao qual se capacitaram para fazer. Isso causa uma crise de pertencimento em relação à profissão. É importante lembrar como evidência em pesquisas realizadas, que o conhecimento superficial sobre as condições materiais do trabalho do pedagogo contribui negativamente sobre a concepção do trabalho desenvolvido por professores. Ao promover discussões a respeito dessa temática e sobre a presença de Pedagogos do gênero masculino e a construção de sua profissionalidade por meio de um trabalho consciente e de resistência, é possível que ocorra uma subversão a naturalização do estado atual das coisas, visando transformações e reconstruções de significados a respeito das concepções hegemônicas que preservam as relações de poder e de gênero.

Acreditamos assim, que a luta pela emancipação das mulheres e homens são parte de um projeto maior de revolução, fundamentado por uma filosofia crítica que ofereça elementos para a materialização da ação enquanto práxis revolucionária que possa transformar a realidade. No tocante as ações que envolvam o trabalho docente, no seu processo de humanização do ser humano por meio da educação, podem elucidar que somente dessa forma torna-se possível pensar na extinção de toda e qualquer forma de exploração e opressão sofrida por mulheres, homens, negra (o)s, indígenas, entre outras frentes de luta, presentes e que estão em constante oposição às ordens impostas pela sociedade capitalista e patriarcal.

Partindo do pressuposto que esse conceito ainda está em construção, podemos pensar a construção de uma profissionalidade que considere as formas de ser e estar na profissão em suas múltiplas determinações, considerando a potencialidade de professores/professoras enquanto ―seres sociais‖ e situados/situadas, que influenciam e são influenciados/influenciadas por concepções de mundo e ideologias da profissão docente, esta vem sendo permeada e mediada por concepções em torno de papéis sociais de gênero. Tais aspectos influenciam e ajudam a construir a escola e suas relações de forma dialética e histórica. Portanto, essas determinações interferem diariamente na construção da profissionalidade de professoras e professores, de maneira objetiva e subjetiva, como forma de exteriorização e exercício da atividade profissional.

O principal desafio de construção da presente dissertação se evidenciou no afastamento do pesquisador e pedagogo do gênero masculino que vivenciou a condição de iniciante em um contexto profissional majoritariamente composto por mulheres, neste sentido foi necessário o afastamento, mas sem perder de vista as mediações que se materializam, interferem e desafiam a atividade desses professores seja na educação infantil ou na alfabetização.

Foram inúmeras contradições sinalizadas nas relações que esses pedagogos estabelecem com as diferentes instâncias sociais que influenciam na constituição dos elementos estruturantes de sua profissionalidade entre elas o afastamento e a negação da afetividade, a afirmação da função docente enquanto ação de ensinar algo à alguém, mas por vezes em detrimento da negação do cuidado enquanto ação inerente ao ato de ensinar, a dupla vulnerabilidade profissional e um duplo ritual de passagem provocado pelo estranhamento na presença desses pedagogos em um contexto de realização do trabalho ocupado em sua maioria por mulheres.

Destacamos assim a necessidade de aprofundamento das diferentes questões que permeiam o trabalho docente e a necessidade de análise pela perspectiva de gênero, para além da dimensão histórica da feminização, mas também pelas relações que influenciam nas diferentes categorias que explicam o trabalho que professoras e professores desenvolvem e as discussões em torno da afirmação da profissão em um contexto de perda de direitos e de esvaziamento da função docente e da função da escola pública, sem perder de vista a formação inicial e continuada de professoras e professores na condição de iniciantes em um processo de inserção e importante momento para a construção da profissionalidade.

Assim a presente dissertação abre diferentes leques para aprofundamento, principalmente na relação que esses professores estabelecem enquanto sujeitos, que por sua condição de gênero ocasionam diferentes momentos de crise na escola e possibilidades de suspensão do cotidiano, na busca pela resolução de problemas ocasionados pelo estranhamento em relação a sua condição de gênero, são problematizadas concepções naturalizadas em torno da atividade de professoras e professores e também de ressignificação das relações de gênero na escola. Afirmamos assim a necessidade dessa suspensão, não só para se pensar as relações de gênero na escola, mas também as ações nela desenvolvidas que descaracterizam, por vezes, as atividades de professoras e professores e esvaziam sua função de ensinar, fazendo com

que a mesma apenas absorva determinações externas que fragilizam sua contradição também de resistência.

A questão de gênero informa e contribui para o campo da formação de professores quando ao se pensar as dificuldades inerentes ao processo de inserção à docência problematiza-se também sobre as determinações sociais presentes no trabalho docente, tudo que se pode ou não fazer e como se deve ou não ser para exercer tal atividade. Consideramos assim a necessidade de formulação e discussão de uma concepção de formação de professores que se dá no trabalho e pelo trabalho, nas relações mediadas pela unidade teoria-prática, aliada a uma formação política que vise a desconstrução de estereótipos que se relacionam ao gênero e à docência.

Neste sentido é possível e necessário discutir a respeito das contradições presentes nas relações estabelecidas por professoras e professores, e da, em alguns casos, negação da atividade docente a pedagogos do gênero masculino por sua condição de gênero. O que torna fundamental nos estudos do campo a valorização da categoria gênero como importante mediadora no desenvolvimento de pesquisas que se aliem a essa perspectiva de construção/desconstrução. Entretanto, nota-se que ainda existe certo silenciamento em relação a estudos que aprofundem essa categoria e temática. O que demanda maior atenção a problematizações que evidenciem como a questão de gênero influencia em outras categorias que permeiam o trabalho e a atividade docente no campo da formação de professores.

Portanto, destacamos a intenção de trazer para o campo da formação de professores as variáveis do presente estudo em relação a perspectiva de construção da profissionalidade situada nas relações estabelecidas entre capital e trabalho, nos processos de inserção mediados por diferentes variáveis e na discussão necessária a respeito da afirmação ou esvaziamento da função docente, seja numa perspectiva de desvalorização da escola pública, ou pela desvalorização e esvaziamento do trabalho docente, tendo o gênero como importante categoria mediadora desses processos.