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Várias inferências tornaram-se possíveis acerca do fenômeno da violência e, sobretudo com relação à violência doméstica após a realização desse estudo. Busca-se nesse capítulo realizar alguns apontamentos acerca de tais, sem, entretanto considerar que esse estudo está concluído, mas considerando-o a expressão de uma realidade que está em constante devir.

Destarte, o presente estudo permitiu iniciar a edificação de um conhecimento sobre a violência doméstica diferenciado, já que no mesmo focou-se o sentido que fora construído pela criança a partir de sua vivência do fenômeno em questão e como já fora salientado, os trabalhos dessa natureza ainda são raros junto à pesquisa científica no Brasil. Esse conhecimento só foi possível por meio da aproximação à realidade da criança, na qual, considerou-se de vital importância sua vivência e sua fala sobre a violência doméstica. Esse contato permitiu dessa maneira, que o sentido atribuído pela criança em relação a violência doméstica insurgisse e começasse a ser desvelado.

Isso posto, foi possível perceber que a criança compreende a violência doméstica como uma prática que visa apenas a sua educação e não demonstra compreendê-la como uma punição. As crianças demonstraram ainda que a violência a que foram submetidos fora merecida, em decorrência de atos cometidos e que vieram no sentido de desagradar os adultos com os quais possuem vínculo. E demonstraram ainda que, a violência tornou-se algo corrente, natural em seu cotidiano, em seu dia-a-dia. Grosso modo, pode-se dizer que esses foram os sentidos que as crianças construíram a partir da violência doméstica a que foram constantemente submetidos.

Entretanto, além da aproximação do sentido que fora construído sobre a vivência da violência doméstica conforme fora descrito acima, a realização desse estudo proporcionou também uma compreensão sobre a violência e a violência doméstica, recorrendo-se as formulações de autores como Engels, Martin-Baró e Guerra. Foi possível ainda a elaboração de um conhecimento denso sobre o desenvolvimento do psiquismo humano e sobre o desenvolvimento infantil. Entretanto, o mais relevante foi a possibilidade de relacionar o conhecimento teórico obtido pela recorrência aos autores supra, com as crianças entrevistadas. Afinal, a

teoria só se valoriza enquanto tal a partir da sua possibilidade de explicar os fatos reais.

Nesse sentido foi possível perceber que a violência produzida no ambiente doméstico pelos responsáveis pelas crianças é antes de tudo uma violência estrutural, ou seja, uma violência que é reproduzida no ambiente doméstico, mas que tem suas origens na maneira da sociedade organizar sua produção e seu consumo, conforme asseveram tanto Engels (1888) quanto Martin-Baró (2003). E por isso, uma violência dotada de historicidade, em que no caso específico, ainda percebe-se a influência de princípios bíblicos, inclusive aqueles originados da tradição católica, e que refletem na forma de organizar a vida em família, defendendo-se, dentre outras ocorrências, que as crianças precisam ser “educadas” com uso da força física, dos castigos e demais punições.

Como tal, é uma violência que se estrutura a partir de uma relação estabelecida entre dois pólos, como diz Engels (1888), sendo um o agredido e outro o agressor. No caso, o adulto como pólo que agride e a criança como pólo agredido. O adulto por possuir meios, inclusive físicos que o permitam manter e perpetuar a agressão. Meios esses, que conforme Engels (1888) vão para além da agressão física, mas que usam também da coerção. E que conforme foi possível observar após a realização da pesquisa de campo, fazem uso de palavras, de castigos e mesmo da força física, mas que visam obter a submissão da criança em favor do adulto.

Devido ao “espaço” onde ocorre, a violência doméstica não é compreendida como tal, antes, ela só se legitima porque vem camuflada por um suposto “caráter benéfico”(MARTIN-BARÓ, 2003), fazendo com que a criança interprete atos agressivos como se fossem atos educativos. E, mais, esses atos, passam a ser compreendidos como inerentes a composição da família, ou seja, são tidos pela criança como naturais, pertencentes ao cotidiano familiar, cumprindo assim uma função ideológica, paradigmática na elaboração de sentido pela criança e legitimando a violência junto ao ambiente doméstico.

Essa legitimação da violência doméstica autentica ainda o “caráter pessoal” (MARTIN-BARÓ, 2003) dos atos agressivos, que foram conferidos pelos adultos em relação às crianças. Assim, a criança além de compreender a violência como possuidora apenas de um caráter benéfico, como se fosse inerente a composição familiar, passa a identificar os atos de agressão relacionando-os com os agressores.

É como se a criança já estabelecesse uma relação na qual já sabe o que esperar de tal adulto o momento da agressão.

A aplicabilidade do que é delimitado pela Perspectiva Sócio-Histórica também se mostrou relevante para a compreensão da violência doméstica. Destarte, considerando que, o ser humano tem seu psiquismo, sua subjetividade formada a partir dos processos de objetivação e apropriação, segundo descrito por Vigotski, Luria e Leontiev, e que se dão por meio de sua relação estabelecida com o mundo real, concreto, é possível também compreender a importância da vivência da violência doméstica junto a subjetividade e no desenvolvimento das crianças entrevistadas e ainda sobre outras crianças vítimas desse fenômeno.

Assim, a criança se objetiva e se apropria do conhecimento produzido pela humanidade, inclusive sobre o conhecimento em relação ao desenvolvimento e a organização familiar a partir de seu contato com o homem que a circunda e com os objetos. É a partir dessa relação que a criança, por meio da linguagem começa a elaborar os conceitos sobre si mesmo, sobre o mundo. Conceitos que podem ser compreendidos como cotidianos e científicos e que vem no sentido de conduzir a criança a diferentes períodos de desenvolvimento, condicionando sua linguagem, sua memória e inclusive sua capacidade de fantasiar sobre a vida futura.

Nesse sentido, a relação estabelecida com membros familiares, com os quais a criança possui relação, muitas vezes de dependência é de suma importância, como colocou Leontiev (1978b). O mediador, destacado pelo autor tem relevante importância e essa só é minimizada com o ingresso da criança na escola, onde o círculo de pessoas com as quais a criança passará a ter contato irá se elevar consideravelmente. Entretanto, quando a criança é inserida na escola já possui uma série de conceitos elaborados previamente. Relacionando com a violência doméstica é possível inferir que as crianças, a partir de sua relação estabelecida com os adultos com os quais possuem uma relação continua, cotidiana, foram elaborando seus conceitos sobre diversos assuntos, inclusive sobre a vivência própria da violência doméstica.

A vivência da violência doméstica proporcionou às crianças a construção de sentidos, como já fora descrito, mas condicionou também sua memória, sua capacidade de imaginação da vida futura e também “abalou” o seu desenvolvimento. Assim, as crianças, durante a realização das entrevistas, demonstravam lembrar de detalhes sobre as agressões, apesar de ter decorrido certo tempo entre a vivência

da violência doméstica e a realização da pesquisa. Além disso, sobretudo em Abelardo, foi perceptível que a vivência da violência doméstica, figura como uma possibilidade futura a ser adotada pela criança, caos venha a constituir uma família. E, por fim, não há como negar que as crianças tiveram seu desenvolvimento substancialmente abalado, até porque foram prejudicados em sua aprendizagem, já que coincidentemente, ambos não conseguiam dominar minimante a leitura e a escrita. Além do que, Abelardo teve sua vida social substancialmente condicionada, já que devido a seu comportamento agressivo não conseguia estabelecer vínculos de amizade com outras crianças.

A Perspectiva Sócio-Histórica demonstra assim que a realidade concreta na qual a criança está inserida é de vital importância na definição de seu psiquismo e no condicionamento de seu desenvolvimento e por isso foram possíveis as colocações acima. Assim, é necessário que se ressalve nesse texto que, Vigotski, Luria e Leontiev não se detiveram apenas a escrever e estudar sobre o desenvolvimento da criança relacionando-o com a aprendizagem. Antes, o conhecimento elaborado por esses autores se mostra capaz de “explicar” qualquer fenômeno afeto ao psiquismo humano, estabelecendo ainda uma relação importante com o desenvolvimento do sistema capitalista nesse processo. Por isso, essa teoria mostra-se mais que suficiente, inclusive para possibilitar a compreensão da influência da violência doméstica no desenvolvimento e no psiquismo da criança.

Nesse intento, a perspectiva crítica sobre a qual destacou-se as formulações de Engels e Martin-Baró, mostram-se também competentes a “explicar” a violência e são extensivas a violência doméstica. Dessa maneira, tornou-se possível que a violência doméstica fosse compreendida sobre uma ótica totalmente diferenciada, portadora de elementos e pressupostos particulares mas que também está relacionada a organização econômica da sociedade atual.

Entretanto, conforme salientado no início desse capítulo, esse conhecimento sobre a criança vítima de violência doméstica está em construção constante, obedecendo a ordem dialética natural na qual a sociedade se desenvolve constantemente. A partir da realização desse estudo foi possível perceber como é necessário ainda uma maior aproximação à teorias criticas de compreensão do psiquismo e do desenvolvimento humano e sobre a violência e que ainda não estão suficientemente esgotadas no meio acadêmico. Por isso, há necessidade de maior aprofundamento sobre os temas em questão.

Sobretudo deseja-se afirmar mais uma vez, que foi possível se perceber que há necessidade de um compromisso com a infância, sobretudo a vítima de violência doméstica. Nesse sentido é necessário que sempre se procure dar “voz” a esse “segmento”, que além de ser vitimizado dentro do ambiente doméstico, acaba também sendo secundarizado em outras instâncias do fazer humano.