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Pensar com Deleuze e Guattari, em como se produz uma literatura menor é buscar compreender as dimensões das complexas pragmáticas da vida. Não se trata só de olharmos criticamente para uma literatura que se produz no circuito hegemônico e sim de uma literatura que se apresenta como, de alguma forma, fora desse circuito, mesmo que se utilize parcialmente seus elementos (DELEUZE E GUATTARI, 2014). Como fazer uso de elementos hegemônicos sem se deixar prender totalmente aos padrões, mas inventando por meio desses mesmos elementos? Através de uma profanação, em certo grau! Quer seja de uma língua por uma gíria, quer seja de uma arte por um artesanato ou, ainda, de uma grande política por uma micropolítica. A gíria, o artesanato e a micropolítica sendo, então, sempre uma produção menor. A título de esclarecimento: o menor não é utilizado, por Deleuze e Guattari, em termos valorativos; mas bem, em uma perspectiva de ser, em sua forma prática, uma invenção para além do dado, do hegemônico/maior.

Esta pesquisa se propôs observar como o menor se produz; para isso, focou-se empiricamente a Praça Mits, abordando-a como um espaço de multiplicidade que vem potencializar a emergência de expressividades e atentando para os efeitos das conexões, naquela ambiência, sobre as/os jovens que por ali transitam e produzem experimentações diversas em suas variadas interações. Observamos as modulações dos corpos (estilísticas, performances e desejos sexuais); estivemos atentos aos fluxos que estão na passagem onde os jovens se encontram; fluxos que os levam a uma movimentação contínua em busca de uma arte do viver48. Tentamos caracterizar esses fluxos, sobretudo, no item “Itinerário nômade LGBTTI em Natal-RN: os caminhos e atravessamentos até a Praça Mits”. Tais fluxos não seriam próprios, apenas, às juventudes LGBTTIs da Praça Mits, mas das juventudes do mundo, em suas práticas micropolíticas. Estas teriam, de uma forma ou de outra, ressonâncias no socius. A indagação sobre os efeitos desses fluxos (de desejo), em uma perspectiva social mais abrangente, não foi trabalhada nesta pesquisa (e nem podíamos fazê-lo sob o risco de perdermos o eixo principal de desenvolvimento dissertativo atual). Isso demanda, sem dúvida, um novo programa de pesquisa no qual poder-se-ia incluir questões atinentes às transformações societais contemporâneas tendo em vista essa problemática que diz respeito ao corpo, às suas mutações, aos espaços nômades de

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experimentações afetivas-sensuais-estilísticas e às conexões de corpos humanos e não- humanos.

Pensando, ainda, em uma literatura menor e em uma micropolítica, poderíamos dizer que uma produção é menor, quando sua potência inventiva se amplia na medida em que ela ultrapassa produções que se limitam a seguir o hegemônico. Usamos o termo hegemônico em sinônimo de maior, do comumente aceito e tido como normal. Para refletir sobre o menor, no que se refere as micropolíticas da Mits, baseamo-nos nas obras Mil Platôs (vol. 3) e Kafka, por uma literatura menor (ambas já anteriormente citadas, pertencentes à dupla Deleuze e Guattari); e, mais ainda, na multidão jovem e seus movimentos nômades.

Observei, nas últimas visitas, que fiz no último mês de 2015 que já não havia multidão jovem na Praça Mits; na verdade, não mais havia Praça Mits; nos poucos instantes que lá ficamos, só pudemos enxergar a velha Praça Dr. Amaro Marinho; uma praça pública que à noite se esvazia, permanecendo circundada por casas de portas trancadas.

Isso nos fez lembrar de uma conversa de orientação, no início desta pesquisa, quando foi dito: os jovens (em grupos, grupelhos, bandos ou individualmente), compondo uma multidão, fazem movimentos nômades; hoje, estão nesse espaço (Praça Mits), depois estarão em outro e assim vão buscando lugares para vivências e inventividades49 de seu cotidiano. Contudo, não pensei que isso ocorreria no desenrolar da pesquisa; imaginava que a Praça Mits, em sua efervescência semanal, subsistiria por muito tempo.

Em alguns sábados seguidos às últimas visitas à Praça Mits (já desvanecida), passando pelo Carrefour – nas proximidades do Natal Shopping, – tive uma surpresa extraordinária: havia uma multidão de jovens na parte frontal do estacionamento do supermercado (parte que se abre para um corredor viário de intenso tráfego e para um ponto de aglomeração, mais abaixo, de parada de transportes públicos). Sempre foi possível ver alguns poucos casais, em pequenos grupos de amigas/amigos, sentados na borda do estacionamento que fica às margens da rodovia; porém, o que pude ver, nessas últimas vezes, foi uma multidão jovem, à semelhança da Praça Mits. Pude nitidamente identificar que se tratava de um público majoritariamente LGBTTI. Seria, portanto, necessário reiniciar as observações para saber o que estaria motivando a agitação

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naquele (novo) espaço, cujas movimentações se realizam aos sábados à noite. Seria preciso uma sequência de visitas para focar como o movimento está ocorrendo, assim como seria necessário fazer, em mais dois meses seguidos, visitas a Praça Dr. Amaro Marinho para fechar qualquer possibilidade de engano sobre o término dos encontros por lá; contudo, com uma análise da superfície posso dizer que a multidão Mits fez um movimento a mais nos percursos nômades juvenis. Como descrevemos no itinerário: antes da Mits, muitas/muitos jovens ocupavam a Praça do CEI, e simultâneo ao CEI, ocupavam o Paraíso, vivenciando um percurso nômade, em lugares que existem e deixam de existir para dar lugar a novos espaços. O espaço Carrefour, nesse itinerário, é inusitado por ser um espaço privado e que provavelmente pode impor uma limitação maior às diversas atuações jovens (como comentamos nesta dissertação). O que me parece importante, por ora, é destacar o fato de que uma vez configurada uma multidão, em um dado lugar, gera-se uma paisagem social cujos contornos mudam a cada momento, o que faz dessa paisagem uma imagem em mutação com reverberações inesperadas nos cenários social e urbano.

A micropolítica das juventudes da Mits e agora, provavelmente, da margem da rodovia (no estacionamento do Carrefour) e depois de um alhures, consiste nessa produção de paisagem social. Um aglomerado de jovens em um espaço que não foi feito para esse fim, e que tomam um determinado espaço para “manchá-lo” com uma imagem do inapropriado, utilizando-se dos alicerces existentes, inventando sobre eles, escapando e fazendo escapar da prisão das sobrecodificações e de suas significações. Um estacionamento, sobretudo, privado, não foi feito para uma multidão se encontrar para diversão; todavia, burlando o sentido normal do espaço, cria-se nele algo que não é só da ordem física, mas, sobretudo, algo da ordem micropolítica. Os espaços apropriados são cheios de significados e funções sociais; a multidão, no caso LGBTTI, vai e modifica as lógicas existentes, fazendo o que eles denominam de “sambar na casa da sociedade”.

É nessa perspectiva que entendemos a produção menor – tal como na literatura e nas artes – na cotidianidade da multidão jovem LGBTTI. A sua micropolítica se dá em meio à busca de espaços de expressão e pelo desdobramento de suas práticas de encontro em experimentações que denotam uma arte de existir em meio a um mundo normativo. Usam-se as estruturas existentes (no plano molar) e bagunçam alguns de seus símbolos, “sambam” nos significados e inventam outros novos símbolos. Constrói- se uma arte menor, arte de existir e resistir, como nos faz pensar Deleuze (2013), arte e

resistência se atravessam; elas não são a mesma coisa, mas existe resistência na arte e arte na resistência. No itinerário de jovens de sexualidades nômades existe resistência à heteronormatividade e suas estratégias socioculturais, religiosas e políticas. A vida em suas perspectivas plurais é um grande atrativo, nesse meio jovem, assim como vimos anteriormente nas descrições e fotos; do mesmo modo que exerce sedução o espaço de compartilhamento das múltiplas expressões de corpos e sexualidades.

O agenciamento coletivo de um espaço ou o agenciamento dos corpos em mutações parece abrir, assim como estivemos vendo nesta dissertação, com os jovens em suas sexualidades nômades, possibilidades a uma atuação micropolítica com perspectiva de ampliação de mais espaços lisos na sociedade.

Constatamos, com esta pesquisa, a presença social de jovens mutantes e inquietos, nômades nas construções de seus espaços para conexões e experimentações. Jovens que fazem seus “giros” construindo novas formas de conhecimentos e novas pragmáticas de vida que terminam se infiltrando em determinados estratos nas segmentaridades duras da sociedade.

Nesse sentido, as perspectivas analíticas adotadas, nesta dissertação, permitiu- me abrir a compreensão de um dado espaço da cidade (no caso, a Praça Mits) como um rasgão na paisagem urbana. Mais precisamente, um espaço que se apresenta como liso (DELEUZE E GUATTARI, 2012c), onde desejos outros possam deslizar; onde sexualidade e afetividade possam se exercer, de forma mais fluida, com menos amarras sociais; onde se possa exercitar a política da vida, tal qual a micropolítica de bichações em espaços fronteiriços de uma praça (tal como pude experienciar, enquanto pesquisador e pessoa); e, por fim, onde se possa constituir um espaço nômade que abrigue corpos em mutações os quais, por sua vez, possam trazer configurações que nomadizem espaços cada vez mais ampliados da sociedade.