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MODULAÇÕES: AS VARIÁVEIS DE SEXUALIDADES

3. A BICHA COMO POTÊNCIA MICROPOLÍTICA

3.2 MODULAÇÕES: AS VARIÁVEIS DE SEXUALIDADES

Outro aspecto importante de pensar a construção de corpos homossexuais é a partir de uma análise das múltiplas formas que esses se apresentaram no percurso do tempo,o que nos faz pensar não só em variadas homossexualidades; mas, como gostamos de nominar, variadas expressões dissidentes de sexualidades, diferentes da forma hegemônica de sexualidade adotada pela sociedade; ou mesmo quando era uma forma legitimada pela sociedade, mas dissidente da heteronormatividade, tal como conhecemos no Ocidente. Com isso, devemos analisar, também, as convenções identitárias enquanto resultados de experiências históricas que se formam e se transmutam nos percursos do tempo, do espaço; bem como nas próprias vivências dos sujeitos em seus corpos sexuados e desejantes. Perlongher (2008) mostra as múltiplas máscaras sexuais como um cenário de infinidades de possibilidades de convenções identitárias, construídas a partir de experimentações de lógicas próprias no decorrer da história:

[...] Assim, nossa infinitamente rica pletora de identidades sexuais, nossos homens, mulheres, bichas, michês, viados, travestis, sapatões, monas, ades, monocos, saboeiras e assim por diante não são simples traduções dos homossexuais, heterossexuais e bissexuais que povoam as terras anglo- saxônicas. São personagens de um cenário de significações que tem sua história e lógica próprias. (PERLONGHER, 2008, p. 39)

A corpo-política hegemônica tem sua dinâmica de manutenção de uma ordem e castiga com formas de violência físicas ou simbólicas todos os desviados. São muitas as pessoas transexuais e homossexuais que morrem diariamente pelas violências oriundas do regime heteronormativo.

Se fizermos um percurso por diferentes sociedades, perceberemos distintas formas de vivências das relações de sexualidades. Tomarei três exemplos, para observarmos as sexualidades múltiplas e como eram ou não aceitas pela sociedade de forma majoritária: os gregos antigos e a chamada pederastia, os denominados sodomitas pela inquisição, e, mais recentemente, a construção da imagem da “bicha louca”.

Na Grécia Antiga, desenvolveu-se uma prática nada parecida com a que é comum na heteronormatividade - a chamada pederastia –na qual pessoas mais velhas tinham seus mancebos (mais jovens) para relacionamentos sexuais. A mulher exercia o papel de genitora, mas isso não centrava as relações sexuais só nela; os homens livremente tinham seus companheiros sexuais. Tratava-se de uma prática legitimada

naquela sociedade e tinha uma dimensão simbólica e prática muito forte, que era, sobretudo, de passar a experiência dos mais velhos para os mais novos. Dessa forma, a prática que hoje chamaríamos de homossexual era comum.

Uma segunda noção de sexualidade desviante foi a denominada prática da sodomia. Com a expansão do catolicismo e sua força política e vínculo aos Estados, houve a possibilidade de maior controle sobre as sexualidades que ficaram restritas pelas leis da Igreja. A monogamia heterossexual, que compreendia que o sexo só era permitido pela penetração do pênis na vagina e com fins unitivo e procriativo, impôs-se como norma que ainda hoje se apresenta às uniões dos casais católicos. Todas as sexualidades que fugissem desse padrão eram tidas como pecaminosa e abominável aos olhos de Deus. Mas, o desejo escorrega pelas brechas das normas para expressar-se e aqueles corpos atravessados pelos elementos católicos - cruz penduradas no pescoço, cinzas aplicadas à testa, confissões auriculares, pudores e moralidades sentidas na pele e sentimentos, dentre outras coisas que sujeitam os corpos a uma instituição que, durante séculos, foi a única detentora da ideia de verdade - se desviaram e traçaram-se linhas defuga (DELEUZE E GUATTARI, 2011a). Eram sujeitos com expressões de subjetividades divergentes; eram pessoas que deram espaço para outros agenciamentos e permitiram um devir-tesãoque não compreendia só pênis/vagina, e sim outras formas de satisfação; eram violentos, pois quebravam com normas não só sociais, mas “divinas”; eram vistos como abomináveis, pois faziam corrupção em seus corpos, corrompiam o sagrado para questionar e perverter a sociedade, trazendo à tona, mesmo que de forma extremamente marginal, outras formas de desejo.

As subjetivações que levam à formação de vontades sexuais não são totalmente controláveis e nem resulta em vontades fixadas permanentemente; pode haver, no decorrer da vida, formas de agenciamentos que possibilitem experiências novas, mas não por autoimposição ou imposição de outros. É sempre um devir. É uma forma de mistura de elementos que levaram a outros possíveis resultados.

Os desviantes das normas da Igreja Católica Romana eram chamados de sodomitas.Talvez esse tenha sido um dos primeiros nomes dados às expressões homossexuais e que mais se expandiu, em espaço e tempo, chegando a ser usado mesmo que de forma mínima na contemporaneidade. A Igreja, ao se tornar poderosa, criou o tribunal do santo ofício, um meio de julgar e penalizar os hereges, bruxos, sodomitas etc. E os chamados pecados de sodomia, dessa forma, não eram mais só alvos

de disciplina, mas de pena de morte, com o objetivo de exterminar da terra todos os que fossem rebeldes a seu poder.

Porém, os sinais e as potencialidades geradas pelos sodomitas percorrem o Ocidente resistindo até chegar à atualidade. Sua subversão das normas religiosas/sociais se apresenta não só como uma forte fissura na noção de uma sexualidade entendida como natural e a única permitida por Deus, como põe um “cisma” no corpo do próprio sodomita.Sua vida se torna uma autossubversão do que se chamava de natureza; seu corpo se autodevora e se torna mutante. Portanto, se existisse uma natureza sexual no humano, essa seria ambígua e mutante, isso é plenamente visualizado nas diversas sociedades humanas, desde os prostitutos sagrados dos templos pagãos das civilizações mais antigas aos atuais coletivos Queer. As faces da sexualidade humana são por “natureza” uma multiplicidade.

A última expressão social de sexualidade que queremos tomar para analisar as sexualidades múltiplas é a formação da imagem da bicha. O termo foi (e ainda é) utilizado como agressão às pessoas que divergiam dos padrões de sexualidade e masculinidades impostos pela heteronormatividade. A bicha era, antes de mais nada, uma figura que não passava despercebida, sua voz para muitos era irritante, sua performance de “desmunhecada” era reprimida; às vezes, usava objetos femininos em seu corpo, mesmo sem assumir totalmente a modelagem do feminino. Era, dessa forma, um gênero ambíguo, diferente dos gays que buscavam caprichar na masculinidade se afirmando como machos socialmente, modelo esse, não muitas vezes, também divergente da forma bicha de ser, apresentando-se até como críticos das bichas: “para ser gay, não precisa fazer alarde”, “para ser homossexual, não precisa deixar de ser homem”. São vozes que, ainda atualmente, se escutam por partes de pessoashomossexuais e heterossexuais; assim como são diferenças que existem quando percebemos no discurso de muitos homossexuais; uma reprovação do termo bicha: “sou homossexual, mas não sou bicha”. De todo modo, o termo é muito utilizado nas conversas como forma de dirigir-se a um colega homossexual, mesmo entre lésbicas35.

Dessa forma, o estereótipo de bicha que foi desenhado pela sociedade ocidental foi apropriado por grande parte da comunidade homossexual até ganhar novos significados; foi deslocado e agitado até se tornar uma potência política.

35 Para fazer a descrição de como a bicha é vista socialmente, como é vista por pessoas de sexualidades

dissidentes, até chegar à ideia de bicha - como figura conceitual e agenciadora -utilizei as próprias falas dos jovens da Praça Mits e suas atitudes, que eles mesmo denominam de bichações.

A bicha como xingamento foi agenciada e transformada na bicha potência política. De agenciada à agenciadora, a bicha é, assim, mais do que uma figura real, é uma forma reflexiva de pensar várias personagens que não se encaixam no homossexual (dito discreto e que tende a reproduzir em seus movimentos uma homonormatização); ela é uma multiplicidade de máscaras, as quais vão sendo construídas no tempo e no espaço, sendo experimentadas e ressignificadas pelos sujeitos nos percursos de sua vida. A bicha cria, no corpo, a marca da transgressão que se faz perceptível como uma postura política com possíveis produções de fissuras sociais.

Pensamos a bicha, igualmente, como uma figura conceitual: ela tem em si os diversos elementos, já citados, que encontrei em meu trabalho de campo, que tornampossível defini-la como ator-actante36 das potencialidades subversivas em sua multiplicidade de máscaras.

A rubrica seguinte - tem um formato de ensaio – um exemplo concreto de uma figura conceitual – Madame Satã.