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Como se pôde constatar, o filme de Sally Potter, assim como o romance de Virginia Woolf, dramatizam, cada qual a seu modo, a expressão feminina dentro do contexto repressivo de uma sociedade ocidental, tradicionalmente patriarcal. Ao mesmo tempo em que dramatizam os limites da cultura e da língua, Virginia Woolf e Sally Potter tratam da ineficácia desse mesmo poder de expressão, recorrendo freqüentemente à narrativa do silêncio. O silêncio da mulher artista, cujo discurso só haveria de ser reconhecido depois de séculos de luta. E esse silêncio faz parte do ritmo de ambas as narrativas, da literária de Virginia Woolf, e da cinemática de Sally Potter, que, em muitos momentos, retratam o seu protagonista de forma ensimesmada e até passiva, apesar de haver dentro desse mesmo sujeito uma força resiliente, que sempre move os seus passos para diante.

Mas percebe-se que, embora filme e romance se sobreponham, eles não coincidem e nem têm a pretensão de coincidir ponto a ponto. A estética de Sally Potter sugere que a cinesta não deseja se ater apenas a questões de gênero, mas se volta para o indivíduo como um signo de conflitos maiores, como um signo de luta, pois a performance do corpo pode ser decisiva contra a dominação imperialista. O corpo pode ser usado como uma verdadeira arma ideológica e é isto que a conduta performática, teatral, das personagens de

Orlando, mostra. Há um imperativo ético que demanda, então, do sujeito

receptor uma revisão de suas posições de gênero, raça, classe, situando-se dentro de um contexto político e assumindo posições. Mas a questão é que, nem sempre, essas posturas são fáceis de serem assimiladas pelo grande público, através do cinema, porque elas incomodam e a audiência, muitas vezes, prefere ignorá-las. Por isso, há momentos em que Sally Potter apresenta as suas críticas de modo mais sutil que o romance, de maneira cômica, para que essas críticas se tornem mais leves e palatáveis para a audiência.

No filme de Sally Potter, conceitos como permanência e instabilidade, imortalidade e mortalidade, efemeridade e eternidade, fato e ficção, tudo isso é colocado dentro de parâmetros fluidos, para que se perceba que nem tudo é o que parece ser. Além de lidar com a construção dessa subjetividade fluida, a narrativa fílmica de Orlando ainda sugere que o eurocentrismo continua vivo nos discursos da mídia e que a história colonial precisa sempre ser revista, através de textos paródicos, transgressores e carnavalizados da contemporaneidade.

Na esteira da denúncia desse eurocentrismo sobrevivente, percebe-se que, devido, especialmente, a uma acentuada desigualdade, persiste uma ordem mundial em que a dependência econômica dos países mais pobres em relação aos seus ex-colonizadores ainda prevalece. Logo, sobrevive o subdesenvolvimento e a marginalização do período colonial na época pós- colonial, embora com uma nova configuração, e as narrativas contemporâneas continuam denunciando os pontos fracos do sistema. Em especial, pela narrativa cinemática, que exerce uma forte influência no espectador pelo seu apelo visual, sonoro, enfim, fático, já que a câmera, na contemporaneidade, investe num exercício de sociabilidade e comunicação mais direta com a audiência.

O que se percebe é que, embora o filme de Sally Potter seja progressista no uso de técnicas performáticas pós-modernas, apostando numa abertura narrativa da qual o receptor é um co-produtor ativo de sentido, ao propor uma multiplicidade de vozes, de pontos de vistas, de verdades, de 'realidades', de identidades, também mostra ser mais conservador, especialmente quando revela uma estética que se volta para o drama dos costumes; ou ainda, que parece seguir a linha dos filmes de época, explorando cenas em que sobresssai o paisagismo ou as revistas de moda dos locais e dos tempos pelos quais Orlando passou. Portanto, o filme também apresenta suas contradições internas, que ora empurram a narrativa para uma ideologia da esquerda, como anti-racista, anticolonialista, ora se volta para a direita, ao assumir uma atitude mais conservadora normalizando situações e sendo mais sutil nas suas denúncias sociais para não incomodar a platéia. Mas Virginia Woolf e Sally Potter parecem sugerir que o sujeito pode se fazer poeta e que o processo de criação é um longo caminho para quem quer que deseje percorrê-lo.

O percurso desta caminhada, que começou com a análise dos manuscritos do romance Orlando, de Virginia Woolf, bem como de seus diários que datam da época em que o livro foi escrito e publicado, consistiu em um amplo exercício de análise crítica. E, revendo a carta de intenções, em que Virginia Woolf rabiscou algumas sugestões para a obra incipiente, percebe-se que a maioria dos itens foi aproveitada no romance e, também,

no filme, principalmente o tom cômico da narrativa e a sua estrutura temporal de cerca de 400 anos. Enfim, a releitura fantástica de Sally Potter, no cinema, recriou de modo cômico, carnavalesco, a narrativa trangressora imaginada por Virginia Woolf, que, em seu diário de 1920, afirmava ter idealizado “uma nova forma de um novo romance, que desejava tematizar questões de gênero e em que uma coisa se transformaria em outra”. Mas, de qualquer modo, ao tecer um mosaico desses instantes mágicos na obra de Sally Potter, percebe-se uma aura singular surgindo do nascimento de uma nova obra prima, tão original quanto o romance de Virginia Woolf.

Esta e outras traduções ou adaptações fílmicas apontam para um caminho com muitas possibilidades, pois a semiose ou o processo de geração sígnica é sempre ilimitado. Quem sabe, se mais adiante, um outro artista ou um outro criador não irá aproveitar possibilidades descartadas por Sally Potter ou por Virgnia Woolf para contar tantas outras histórias alternativas diferentes? Histórias que assumem sempre uma outra feição, sempre que contadas de um outro lugar de fala, em um outro contexto, uma outra época.

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