• Nenhum resultado encontrado

Virginia Woolf, sobrevivência e resiliência através da literatura Qual o panorama da literatura, quando Virginia Woolf começou a escrever,

por volta de 1915? Dentro do âmbito do romance, destacam-se Marcel Proust, autor de A la Recherche du Temps Perdu, bem como James Joyce, escritor de

Ulysses, que experimentavam técnicas capazes de expressar o fluxo da

consciência ou o mundo interior de suas personagens, traduzido em emoções, sentimentos, insights, seguindo um caminho então conhecido como romance experimental. Sterne, autor de Tristan Shandy, testava também a sua narrativa fragmentada, que decorria, preferencialmente, dentro do tempo fluido da consciência dos personagens, e os grandes escritores russos, Tolstoi e Dostoievski aprofundavam-se nas paixões da alma humana e seus mistérios, como ocorre nas grandes obras, War and Peace e The Karamazov

Brothers.

Em seu primeiro romance, publicado em 1915, The Voyage Out, Virginia Woolf conta a história trágica de uma jovem, Rachel Vinrace, que se apaixona e acaba morrendo em meio às agruras de uma vida dramática e conflituosa.

Night and Day, de 1919, também narra a vida de uma jovem, Katharine

Hilberry, mais madura e senhora de si do que a personagem do seu primeiro livro, que se depara com conflitos amorosos e questões matrimoniais. Mas, é em seu romance seguinte, Jacob’s Room, de 1922, que a escritora experimenta a técnica do fluxo da consciência e brinca com a fluidez temporal da narrativa, já demonstrando, nesse momento, as habilidades de uma grande escritora.

Até então, os romances, de um modo geral, transcorriam dentro de seqüências temporais lineares, em que dominava a lógica da causa e do efeito, e em particular, que obedeciam às convenções do romance vitoriano, ditadas por Dickens, Thackeray e Trollope. Era importante que as narrativas

acontecessem dentro de um esquema temporal rígido, que desencorajava quaisquer experimentos mais ousados, que se insurgissem contra tais regras de composição (BLACKSTONE, 1956, 13-14).

Coube ao escritor Forster, em 1927, publicar palestras sobre a composição do romance, sob o título de Aspects of the Novel, em que criticou a obsessão de se manter uma lógica temporal rígida. Virginia Woolf teria sido influenciada por esse livro, sobre o qual escreveu uma resenha crítica, em que defendia que os romances ingleses deveriam ser menos domésticos e mais ousados.

Já em Mrs. Dalloway, 1925, Virginia Woolf rompe com os padrões temporais da narrativa, restringindo a sua história dentro do limite de um só dia, em um único bairro de Londres. Constrói, então, uma personagem principal mais complexa, que evolui e vai se modificando, ao longo do romance (tipo de personagem conhecido como round character), cuja narrativa segue uma estrutura narrativa semelhante à de Ulysses, de Joyce.

Mais adiante, em To the Lighthouse, 1927, pode-se observer a autora brincando com o elemento temporal da narrativa. A ação se restringe a uma noite, entre 6,00h e a hora do jantar, sendo que mediante uma ordem da personagem Mrs. Ramsay, de repente, tudo pára, e “o tempo estanca”,

time stand still (BLACKSTONE, 1956,16). Mas depois dessa suspensão

temporal, num segundo momento, a vida volta ao normal e a casa acaba caindo em ruínas. Finalmente, num terceiro segmento, a memória toma conta da narrativa e o presente dilui-se no passado.

Essa lógica temporal diluída volta a ser explorada na narrativa paródica e fantasiosa de Orlando (1928), em que a personagem central viaja durante quatro séculos e em que transita, de modo flexível, de um sexo para outro. Assim, a narrativa de Virginia Woolf atinge um ápice de diluição temporal e espacial, surgindo, então, uma paródia das mais ousadas.

Em The Waves,1931, há uma supressão do enredo e uma diluição das descrições externas da narrativa. A escritora conta a história de seis personagens focalizadas desde a infância até se tornarem homens e mulheres. Mas o estranho é que elas nunca estabelecem qualquer tipo de relação entre si, mas entram e saem, como se pertencessem a um ballet grotesco. A complexidade de cada uma dessas mentes é descrita de modo a espelhar as imagens fragmentadas que compõem tal narrativa fluida.

O próximo romance, The Years, 1937, evidencia uma regressão quanto à técnica temporal de The Voyage Out e Night and Day, embora a narração do primeiro livro espelhe uma série de impressões fragmentadas e associações temporais das personagens que compõem a trama.

Em Between the Acts, 1941, seu último romance, Virginia Woolf constrói uma prosa poética mais fluida, espelhando ainda a influência que sofrera da obra Aspects of the Novel e concentrando a sua narrativa na mente das personagens, especialmente explorando o mundo interior de uma criança (BLACKSTONE, 1956,9).

Como se pode perceber ao rever a obra de Virginia Woolf, há toda uma caminhada na produção literária da autora, que a leva a escrever Orlando, uma biografia revolucionária. Uma narrativa que desafia quaisquer unidades de tempo e espaço. Um texto que rompe com qualquer lógica linear cartesiana, tendo sido construído dentro de uma lógica interna própria. E, como se pode perceber, não só na sua caminhada como romancista, mas também como autora de ensaios críticos e contos, ou responsável por traduções e prefácio de algumas obras, tudo isso comprova que se trata de uma vida dedicada à literatura. Em suma, tem-se uma experiência multifacetada, que iria desabrochar com Orlando, que revela a força da criação poética de Virginia Woolf.

Portanto, o seu interesse por técnicas narrativas mais livres, mais fluidas, é atestado por seus ensaios críticos sobre o assunto ou por seu texto transgressor. Também o seu interesse por biografias, como se pode observar, é reiterado em diversos momentos de sua caminhada, além de se perceber a sua familiaridade com os romances psicológicos russos, os quais teria se aventurado a traduzir. Além disso, o seu universo de criação elegeria uma linguagem visual, tematizando a fotografia e a pintura, detendo-se em descrições plasticamente ricas em suas obras, além de privilegiar uma estética visual ao prefaciar livros sobre artes plásticas. Tudo isso aparece em Orlando, uma obra em que a visualidade e a flexibilidade serão a tônica da criação.

É nessa conjunção de crenças e forças em que predomina a flexibilidade, a fluidez, inclusive sexual, que a ‘resiliência’, considerada uma tônica dominante em Orlando, consegue florescer. E floresce na trajetória literária de Virginia Woolf, fortalecida e sustentada pela crença no potencial feminino de criação, que haverá de sair vencedor contra toda a sorte de adversidades. Há uma lição de resiliência que vale a pena contemplar na obra de Virginia Woolf, cuja crença no sentido da vida se pode ler nas entrelinhas de sua obra, na coragem que a autora tem de lutar pelas próprias idéias, exercitando a liberdade de expressão através da palavra. Esta tenacidade se reflete em muitos de seus personagens que saem fortalecidos de uma situação adversa, além de serem capazes de exercitar tal competência, pois é a ausência de rigidez que conduz o indivíduo a enxergar para além da mesmice do lugar comum.

Orlando é uma obra em que a personagem principal, ao se ver impedida

momento em que a personagem Orlando passa um período em uma comunidade de ciganos, onde não existe nem papel nem tinta para que ela possa escrever. Mas, mesmo assim, consegue vislumbrar uma solução,

“Oh, se ao menos, pudesse escrever!” - gritava (pois padecia do estranho preconceito dos escritores de que as palavras escritas são palavras compartilhadas). Não tinha nenhuma tinta e dispunha de muito pouco papel. Mas fez tinta com cerejas e vinho e, encontrando algumas margens e espaços em branco no manuscrito de “O Carvalho”, conseguiu, através de uma espécie de taquigrafia, descrever o cenário num longo poema em verso livre e redigir um breve diálogo consigo mesma sobre a beleza e a verdade. Com isso, ficou profundamente feliz por longas horas (WOOLF, 1978,80-81)63.

Que mensagem de resiliência, esta personagem consegue dar! E essa é uma força capaz de levar o indivíduo a ser, cada vez mais, o sujeito do seu próprio discurso, senhor de sua própria criação, responsável por suas escolhas, além de sair fortalecido da situação hostil em que se encontra, como, no caso de Orlando, ao se deparar com os preconceitos de uma sociedade patriarcal, onde a mulher não tem vez nem voz. Assim, sobrevivência, fortalecimento, crescimento, crença no sentido da existência e no próprio poder criativo são palavras-chave, que parecem embutidas na lição de alguém que usa “cerejas e vinho” em lugar de tinta para escrever a sua poesia. Ou que aproveita qualquer espaço de um manuscrito velho para colocar suas idéias para o papel. A mensagem que provém de uma ideologia resiliente é que cabe a cada um buscar a sua própria dimensão e o sentido de sua existência, que é particular e individualizado para cada ser humano, sejam eles homens e mulheres.

Portanto, esse traço de resiliência está presente no romance de Virginia Woolf e, conforme se constatará, foi habilmente transposto para o cinema por Sally Potter, décadas mais tarde. De que modo, então, se poderia associar o termo ‘Resiliência’ à produção cinemática de Orlando?

Contextualizando S. Potter: sobrevivência através da música e nas