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Estudar. Entre ler e escrever. Algo (se) passa. Perder-se em uma biblioteca em chamas. Exercitar-se no silêncio. Habitar labirintos. Aprender a ler e escrever cada vez de novo. Defender a liberdade, a solidão, o desejo que permanece desejo. O estudante tem que começar a escrever. O mais difícil é começar (LARROSA, 2003, p. 115).

Toda pesquisa num determinado momento precisa ser arrematada em um texto final. No entanto, a sensação é de que o texto nunca estará pronto. Isso se deve ao fato de ser impossível escrever sobre a totalidade de um objeto. No caso desta dissertação, a pesquisa desenvolvida pretendia responder à seguinte questão: Por que, quando questionados sobre os tempos escolares, os entrevistados relatavam questões acerca do disciplinamento e punições?

O objetivo foi, pela memória de ex-alunos, acessar informações que resultariam numa dissertação e que desenvolvessem uma narrativa sobre como os castigos e disciplinamento estavam colocados no Grupo Escolar Nossa Senhora do Sagrado Coração e qual o lugar do castigo escolar, seja ele moral ou físico, nesse cotidiano. Compreende-se que realizar o trabalho utilizando as memórias é um meio de superar o que estava nas páginas oficiais da história. Assim, as autoras Lopes e Galvão (2005, p. 30) lembram que “uma história da educação baseada apenas em documentos oficiais representa um passado educacional que expressa muito mais um desejo daquilo que se almejava do que a realidade do cotidiano escolar”. Dessa forma, pretendeu-se trabalhar com o prescrito e também com as memórias.

Compreende-se que o trabalho, por meio da memória de alguns sujeitos que fizeram parte do Grupo Escolar Nossa Senhora do Sagrado Coração, foi um meio de reconstruir lembranças com base em múltiplas sensações e visões do experienciado e compartilhado com os colegas de sala, com os professores e demais pessoas. Sendo assim, entendeu-se que houve um processo em que a pesquisadora escutou atentamente o que o entrevistado estava relatando, para que assim fosse possível, com os fragmentos das lembranças, movimentar o texto e poder significar o que está sendo relatado.

Os ex-estudantes relatam a respeito dos castigos e de como eram disciplinados em razão da abrangência que esses fatos tinham em seu cotidiano escolar. Eram aspectos de uma educação voltada para

adestrar os corpos e as mentes das crianças, futuras gerações produtivas, e que, por isso mesmo, se fazia elemento central na educação escolar. A educação era tomada como um meio de civilizar a criança, seja pelo disciplinamento, seja pelos castigos, incutindo valores e obrigações que permaneceram como principais ensinamentos recebidos pelos alunos na instituição escolar.

Os entrevistados não recordam de seus tempos escolares com mágoas ou sofrimento, pelo contrário, eles relatam rindo, como se estivessem contando piadas, fazendo graça do acontecido e relembrando com saudosismo sua vida escolar. De acordo com eles, naquele tempo, as crianças sabiam como se comportar e entendiam que na escola era o lugar para adquirir conhecimentos, mas também para aprender a obedecer e viver em sociedade. São em frases como “naquele tempo era cada coisa no seu lugar, era tudo muito organizado”66

ou “a educação era de forma muito exemplar assim, muito organizada e eu agradeço a educação que eu recebi no colégio”67

, que se pode inferir que a dita organização, citada pelos entrevistados, era e é compreendida como algo que caracterizava aquela escola e que, para eles, foi aspecto imprescindível em suas vidas escolares e na formação adulta.

Ainda, na tentativa de responder às questões levantadas, buscou-se nas páginas precedentes estruturá-las de forma a entender desde as primeiras pedagogias, perpassando por legislações-chave de como os castigos estavam sendo colocados e alterados ao longo dos tempos. O que se estabeleceu é que, no início do século XX, os castigos escolares eram mais um instrumento utilizado por professores e responsáveis na tentativa de manter o controle na sala de aula e “educar” as crianças segundo os ideais postos para cada sociedade e, por isso, precisavam estar resguardados em lei.

O papel de se educar as crianças era desempenhado pelas escolas, nas quais as crianças deveriam adquirir hábitos salutares, além de aprenderem a ser cidadãos obedientes e produtivos para a sociedade moderna e capitalista daquele início de século. As leis e decretos elaborados para o trabalho nas instituições de ensino davam conta de como os castigos físicos deveriam ser substituídos pelo castigo moral, já que este era considerado mais “leve” e adequado ao mundo moderno.

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Entrevista concedida à Daniela Eli por Maria Elisabete Goetmann. São José, 30 de maio de 2013.

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Entrevista concedida à Daniela Eli por Maria Aparecida Zimmermann. Angelina, 25 de julho de 2013.

No entanto, o que se percebeu é que, mesmo proibidos, os castigos físicos permaneciam no âmbito escolar e estão presentes nos relatos dos entrevistados.

Porém, no decorrer dos anos, o que se constatou foi uma tentativa de mudança no método de se controlar as crianças. Busca-se diminuir a utilização dos castigos morais e físicos, e volta-se a atenção para o processo de disciplinamento dos corpos, por meio dos dispositivos citados no capítulo 3. Surgiram elementos na escola que proporcionaram a manutenção da ordem, entre eles: distribuição dos alunos em classe, horários estabelecidos, filas, a arquitetura do prédio escolar.

Esses métodos disciplinares buscavam evitar o mau comportamento da criança, colocavam-na numa posição individual para diminuir a possibilidade de cometer uma falta. A disciplina era utilizada num caráter preventivo, dado que sua premissa era evitar ao máximo a utilização do castigo. Segundo Foucault (1994, p. 126), para se ter a disciplina por parte das crianças, é preciso implicar uma coerção ininterrupta, “que vela sobre os processos da atividade mais que sobre seu resultado e se exerce de acordo com uma codificação que esquadrinha ao máximo o tempo, o espaço, os movimentos”.

Outro fator relevante, quando se busca construir uma narrativa de tempos passados, refere-se às dificuldades encontradas para acessar documentos, como leis e decretos, seja por existirem poucos exemplares, seja pelas condições deterioradas em que se encontram. Esse aspecto não impediu o desenvolver da pesquisa, mas poderia ser o causador de algumas lacunas que as fontes não permitiram preencher. No entanto, quando se faz pesquisa, deve-se entender que, por mais que nos aproximemos do passado, não conseguiremos vê-lo

em sua inteireza e completude, o passado nunca será completamente conhecido e compreendido; no limite, poderemos entendê-lo em seus fragmentos, em suas incertezas. Por mais que o pesquisador tente se aproximar de uma verdade sobre o passado, apostando no rigor metodológico, permanecem sempre fluídos e fugidios os pedaços de história que se quer reconstruir (LOPES; GALVÃO, 2005, p. 77). Enfim, quando iniciado o trabalho havia muitas dúvidas. Em pensamentos, o tema de pesquisa soava não ter relevância ao campo científico da forma como se estava propondo. Seria suficiente entrevistar oito sujeitos de uma pequena cidade? Foi nesse momento que se

encontrou em Grazziotin e Almeida (2012) amparo e respostas ao desassossego da pesquisadora. No processo de doutoramento, as autoras sentiam a mesma insatisfação e encontraram em Bachelard (1974) uma nova significação para a história que estavam narrando. Segundo Bachelard (1974, p. 322), não existem fenômenos simples em investigações científicas; não se pode encontrar uma história simples, já que, para as coisas a serem entendidas, precisam estar colocadas em um sistema complexo de pensamentos e experiências. Ainda, segundo Grazziotin e Almeida (2012, p. 14),

depende do pesquisador a possibilidade de fazer com que a documentação selecionada ‘faça dizer’, sem estabelecer escalas entre histórias consideradas grandes ou pequenas. Também, não há que se pensar que as memórias desses indivíduos silenciados possam ser vulneráveis e, assim, comprometer a ‘cientificidade’ da história que se quer investigar.

O que deve ser considerado é o trabalho valioso e complexo que se faz com a memória de sujeitos dispostos a compartilhar suas lembranças a fim de se constituir como um documento histórico. Pensar e pesquisar determinado tema pelo período de dois anos nos faz sentir “proprietários” de tal objeto. Entretanto, quando se chega ao fim e é necessário entregar o texto o que vem em mente é: todo este trabalho não foi só para satisfazer a curiosidade da pesquisadora, o texto escrito se tornou uma dissertação com potencial para trazer algo de novo para o campo educacional.

Ainda, gostaria de retomar o que mencionei na introdução deste trabalho: sempre ouvia meus familiares, especialmente meu avô paterno, relatando sobre seus tempos escolares. Com seu contar, eu ria e viajava no tempo buscando reviver tais situações, colocando-me em seu tempo, que mesmo sendo uma educação disciplinadora e punitiva, parecia-me tão cheia de detalhes, tão cheia de vida. Desenvolver essa pesquisa possibilitou aprender e crescer profissionalmente, compreendendo que “não saímos de uma pesquisa do mesmo jeito que entramos, porque, como pesquisadores, somos também atores sociais desse processo de elaboração” (ZAGO, 2003, p. 308). Por fim, espero que a leitura do texto auxilie outros interessados pelo tema, e que novas questões possam surgir desta leitura.

FONTES/DOCUMENTOS