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CONSIDERAÇÕES FINAIS DA ANÁLISE DE PEQUENOS SUICÍDIOS

Durante a tentativa de descrição do desdobramento da dramaturgia, percebi quão complexo é traduzir a linguagem visual em linguagem verbal. Segundo Wollf, a imagem ignora o passado e o futuro, tendo o próprio tempo do “agora eterno”. De acordo com ele, tudo se dá no presente, e ela é pura afirmação:

É exatamente por isso que a humanidade inventou dois sistemas de representação: a linguagem, sonora, temporal, fruto da inteligência, instrumento extremamente sutil, aperfeiçoado, que pode dizer todas as nuances do tempo, do pensamento, do julgamento, todas as modalidades da abstração e da generalidade, mas que não pode tornar verdadeiramente presentes os verdadeiros ausentes, os mortos e os deuses; e o outro sistema, a imagem, visual, espacial, fruto da imaginação, muito mais rudimentar, mas surpreendente e impressionante, e que tem o poder mágico de fazer viver os mortos e fazer existir o céu sobre a terra. 171

Nesse processo, compreendi a dificuldade de escrever uma dramaturgia para o teatro de objetos e para outras manifestações do Teatro de Formas Animadas. A tessitura cênica desses trabalhos, atrelados à linguagem visual, é extremamente complexa, difícil de ser apreendida, descrita ou traduzida por palavras. Existem muitas camadas de significações a serem observadas/analisadas: o ator, o público, os objetos, o ator como a extensão dos objetos. Ainda que as ações cênicas e o modo com que os objetos são utilizados sejam minuciosamente descritos, um grande buraco permanece, pois falta a lacuna poética, preenchida pelas presenças do ator e do espectador, responsáveis pela efetivação do acontecimento teatral.

170 Entrevista realizada com Carles Cañellas durante o Festival Internacional de Teatro de Objetos (Recife, 12 e 13 de novembro de 2011). Cf. página 132.

171 Wolff, F. Por trás do espetáculo: o poder das imagens. In: Muito além do espetáculo. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2005. p. 28.

Os objetos escolhidos para esse espetáculo possuem, predominantemente, a característica de existirem para serem transformados. Nos suicídios, eles não fingem morrer; eles realmente deixam de existir aos olhos de toda audiência. Essas metamorfoses visuais contribuem expressivamente para dar ao espetáculo uma tônica poética, trágica e provocadora. Pequenas coisas, extremamente simples, como um palito de fósforo e um grão de café, são transmutadas em imagens simbólicas, capazes de despertar a nossa sensibilidade diante da vida, da morte, da aceitação, da perda, do tempo que nos escapa, da constante transformação que sofremos e da nossa perenidade. Essas propriedades também revelam as bases que fundamentam a concepção do grotesco para Bakhtin, discutidas no capítulo anterior.

A morte, mesmo sendo o tema principal, não é velada nem tratada como tabu ou como fator de surpresa; ela já está expressa no próprio título do espetáculo, não sendo manipulada para se criar uma expectativa no desfecho das pequenas narrativas. O que importa não são exatamente as histórias dos pequenos suicídios, mas os caminhos percorridos e as soluções poéticas encontradas para chegar a esse fim:

Como em um drama grego, o espectador sabe ou pode chegar a saber qual vai ser o fim do protagonista. Porque nada está oculto. A tragédia está sob a água desde o primeiro instante. O copo com água está lá. Portanto, é possível supor que este seja o seu final (do comprimido efervescente). Mas o que realmente importa é como se chega a este final. 172

Isso implica uma escolha exata e bastante consciente dos elementos que compõem cada uma das narrativas. No caso do sal de frutas, a sua vulnerabilidade à água simboliza a perenidade da vida, tanto do personagem quanto de toda a assistência. Segundo Carles, não faz sentido apresentar esse espetáculo em um lugar em que as pessoas não conheçam as propriedades de um comprimido efervescente. Assim, quando viaja com o espetáculo, Carles preocupa-se com os signos próprios de cada cultura, investigando produtos que contenham a mesma carga de significados para evitar alteração do sentido do espetáculo:

172 Entrevista realizada com Carles Cañellas durante o Festival Internacional de Teatro de Objetos (Recife, 12 e 13 de novembro de 2011). Cf. página 132.

Na Espanha, não utilizo um Sonrisal, porque lá ele não existe. Uso outra marca, chamada Alka-Seltzer, que todo mundo conhece. É um antiácido exatamente igual ao Sonrisal. E os bombons não são da “Garoto”, mas de outra marca conhecida. Em cada lugar busco um produto que seja referência. Como por exemplo, o creme de barbear que aqui tem uma marca mais conhecida (Bozzano). Logo, tem que se adequar, porque cada objeto, mesmo sendo igual, pode ter um significado distinto em função da cultura, em função dos produtos do mercado. Em cada lugar primeiro faço um trabalho de investigação para saber se as pessoas entenderão efetivamente o significado disso que estou fazendo.

Neste espetáculo, assim como em outros trabalhos com objetos, como já explanado, a percepção do tamanho das coisas é frequentemente alterada. Elementos mínimos, como um palito de fósforo, um grão de café, um sal de frutas, um bombom, uma vagem de amendoim, postos em relação uns com os outros e com o ator, tornam-se protagonistas capazes de serem percebidos além do alcance cotidiano do olhar. A mão do artista torna-se enorme ao lado da pequenez e da fragilidade dessas coisas. O seu corpo, então, é proporcionalmente gigantesco a um palito de fósforo. A percepção alterada dessas coisas também lhes permite exalar a singularidade de suas existências, praticamente imperceptíveis quando inseridas em situações prosaicas.

Constantemente Cañellas põe em choque a realidade do espectador com a do espetáculo, criando significados e desconstruindo-os, sequencialmente. Como já foi exposto, o ator anuncia o início de cada cena e apresenta os objetos que usará como parceiros. Os dois relógios que estavam sobre a mesa logo no começo da apresentação também funcionam como detonadores da ilusão, pontuando o tempo real no começo e no final do espetáculo; além disso, a própria incursão que Carles faz, de estar dentro e fora dos objetos, ora emprestando seu corpo para a matéria se expressar, ora usando esse mesmo corpo para comentar o que se passa na cena, perturba a dramaturgia e as realidades que coexistem no tempo do espetáculo.