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Primeira estrofe – o retorno

3.4 O TEMPO: POESIA TRAGICÔMICA SOBRE O PASSAR DO TEMPO

3.4.2 Primeira estrofe – o retorno

A sala fica completamente escura, e Carles emite sons e buzinas de carros. Nessa paisagem urbana criada por ruídos, e ainda no escuro, ele “aborda” uma senhora para pedir- lhe informação. No início do diálogo, o ator acende uma lâmpada que ele segura com uma das mãos enquanto analisa o mapa e conversa com a informante. O espectador não vê o seu rosto, pois ele está oculto pelo mapa, aberto na altura de seu peito. É difícil compreender o que eles conversam, mas entendo que o ator procura, naquele mapa, uma rua chamada “Rakstat”167. A senhora percebe que ele não é de Budapeste e descreve, com o indicador fazendo uma sombra no mapa, o trajeto que Carles deve seguir até a rua procurada. Ele agradece pela informação e abaixa o mapa, dispondo-o sobre o banco de madeira. Iluminando-o com a lâmpada (que também está dentro de um saco de papel, assim como aquela suspensa sobre a mesa), o ator analisa o trajeto indicado pela senhora. Depois, sobe no mapa e percorre o caminho, repetindo

166 Kantor, T. Op. cit., p.136.

167 Procurei esta rua no mapa de Budapeste e não consegui localizá-la, assim, é possível que a escritura correta seja outra.

as instruções da informante até chegar ao endereço. Olha para os seus pés e indica a localização do prédio: número 44.

O espectador ri, ao perceber que aquele é o número do sapato que o ator calça, e mais risos surgem na sequência da cena: para subir os pavimentos do prédio, Carles coloca um pé sobre o outro e diz: “Primeiro piso, segundo piso, terceiro piso, quarto piso”. De um bolso interno do paletó, o ator pega uma carteira e a abre, puxando um papel com quatro fotos em 3x4 da tia de Gyula Molnár, dispostas uma ao lado da outra. Carles dirige-se a ela como se fosse o próprio Gyula. Durante a visita, o ator impõe movimentos e ritmos ao seu corpo que suscitam o deslocamento pela casa, enquanto descreve sua percepção do lugar. Ele assegura que tudo está igual ao que era antes: o tapete, o sofá, a cômoda, a cozinha e até mesmo o seu avô. A visita é curta, logo ele despede-se da tia e segreda aos espectadores suas impressões da visita. Transcreverei essas falas, pois as considero importantes para a compreensão de algumas questões que discutirei a seguir:

Ao voltar depois de tantos anos ao lugar em que eu havia vivido quando era pequeno, talvez 15 ou 16 anos depois, e isso já faz um montão de anos (desce do banco, coloca a lâmpada sobre a mesa, com o foco na direção do banco e se assenta nele. Enquanto narra a sensação de Gyula ao retornar à casa da tia, Carles tira vagens de amendoins do bolso do paletó, sacode-as perto do ouvido e deposita-as sobre o banco), eu lembro que me dei conta que, conforme entrava naquele lugar, na casa em que eu havia vivido como menino, eu tinha a estranha sensação de que tudo havia se apequenado (pega uma vagem de amendoins, sacode-a perto do ouvido e deposita-a sobre o banco). As luzes da rua “Rakstat” me pareceram mais baixas (pega outra vagem e repete os mesmos movimentos de antes), inclusive a casa, número 44, me pareceu mais baixa (pega outra vagem e repete os movimentos anteriores). Ao subir pela escada, estreitíssima! (pega mais uma vagem e repete os mesmos movimentos) Toquei a campainha de uma porta pequeníssima (mesma sequência de movimentos) e veio-me abrir a porta uma tia pequena, pequena, pequena, pequena... (mesma sequência de movimentos) E então comecei a pensar em como que tudo aquilo havia diminuído de medida, minguado (mesma sequência de movimentos). Foi aí que me dei conta de que, na verdade, nada havia minguado, mas que eu havia crescido. (Carles levanta-se do banco e vai até a mesa) E quando alguém se dá conta disso, parece ser mais velho do que na realidade ele é. (apaga a luz)

Esta estrofe é permeada por ambivalências factuais/ficcionais. Ela inclui pessoas e lugares que Molnár conheceu, configurando-se um relato real, uma história de vida; as falas se dão em primeira pessoa, mas são ecos das falas de outra primeira pessoa; narrando Molnár, Carles comporta-se como Carles, que se veste de Molnár. O ator não altera suas expressões,

seu timbre de voz ou suas partituras corporais para tentar representar o “dono” da história. Diante dessas ambivalências, o espectador testemunha duas realidades que se entrelaçam e duas presenças que se complementam, pois, nessa estrofe, Carles e Molnár apresentam-se na primeira pessoa do singular.

Gostaria de destacar os procedimentos que construíram as relações com o espaço: primeiramente, a paisagem urbana foi evocada graças a imagens sonoras criadas por Carles. Esse espaço imaginado pelo espectador, incutido como informação prévia, adquire concretude nas situações apresentadas posteriormente.

Uma dessas situações é o deslocamento do ator sobre um mapa, outra extraordinária relação com o espaço. Sua locomoção pela cidade suscita a transgressão das nossas referências espaciais, experiência semelhante à de testemunhar um mágico extraindo de sua cartola objetos que jamais caberiam ali dentro ou ter experiências cinematográficas capazes de alterar o tamanho e a relação das coisas. Um exemplo apropriado é o sonho “Corvos” do filme “Sonhos”, de Akira Kurosawa: ao observar um quadro de Van Gogh, um homem é levado para dentro da obra, passeando por esboços e texturas criadas pelo pintor. Obviamente, Carles não entra efetivamente no mapa, mas graças à imaginação, o espectador pode ver o ator percorrendo as ruas até a casa da tia, assim como o observador de Van Gogh percorreu caminhos e paisagens concebidos pelo artista. Essa alteração do senso espacial também remete ao conceito de Bachelard anteriormente discutido, da miniatura como “umas das moradas da grandeza”. Um mapa configura-se como miniaturização do espaço real, ou seja, ele é um potente veículo da imaginação.

Nesta estrofe, o corpo de Carles funciona mais uma vez como suporte expressivo propondo e caracterizando lugares; o número do prédio é a numeração dos seus sapatos; o quarto piso é alcançado com um pé pisando o outro; a campainha 168 da porta da casa da tia é

acionada na garganta do ator. Até mesmo o crescimento físico se torna matéria narrativa vinculada à relação espacial, pois o que antes era visto como grande se apequenou. Ao se descrever esse embate de impressões, duas imagens dos mesmos lugares se constroem: uma vivida com olhos de criança; a outra, com olhos de um adulto. Dissonantes, elas geram percepções completamente distintas da realidade.